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+(L)ivros
Cidades profundas
Sai nos EUA "As Lágrimas de Meu Pai", volume de contos inéditos
em que John Updike, morto em janeiro, mapeia a vida da classe média do país
MICHIKO KAKUTANI
Fairchild, o herói de um
dos belos e elegíacos
contos em "My Father's Tears and Other
Stories" ["As Lágrimas
de Meu Pai e Outras Histórias"], de John Updike, que
morreu em janeiro, é um cavalheiro idoso que sofre um assalto e ferimentos leves em uma
viagem à Espanha. E considera
o burburinho da experiência
por que passou estranhamente
revigorante.
Por que um acontecimento
tão infortunado lhe parece
agradável?
"Foi, suponho, o elemento de
contato. No seu universo em
acelerada expansão, ele desfrutava de menos e menos contato. Aposentado, perdera contato com os antigos colegas, ainda que a despedida tivesse sido
acompanhada por inúmeras
promessas sociáveis."
Os filhos dele, já adultos, viviam dispersos, e seus netos expressavam apenas "interesse
polido" pelos presentes que ele
tinha a oferecer.
Sua velha turma de pôquer
enfrentava dificuldades para
reunir cinco jogadores, e o
quarteto de golfe do qual ele
era parte "havia se dispersado
em direção à enfermidade ou à
Flórida, se não ao túmulo".
Ilhado na vida
Fairchild se descobre, na prática, "ilhado".
O mesmo pode ser dito sobre
todos os protagonistas desses
contos: precariamente equilibrados diante do precipício da
velhice, encarando a perspectiva da morte cada vez mais próxima e enfrentando diariamente o crescente isolamento que
surge com as forças centrífugas
do tempo que afasta famílias e
deixa fora de alcance um grupo
de amigos já cada vez menor.
Muitos apresentam detalhes
biográficos semelhantes aos de
Updike: uma infância em cidade pequena como filho único e
mimado; a fuga para uma universidade de elite na Nova Inglaterra; um casamento prematuro, seguido por filhos, separação, divórcio e, por fim, um segundo casamento.
Garantia espiritual
E muitos compartilham da
perspectiva existencial e da
preocupação com a mortalidade que caracterizam Harry
Angstrom, Henry Bech e tantos
outros personagens do escritor.
São homens que anseiam por
uma garantia espiritual ou religiosa de que são mais que "um
grão de poeira condenado a saber que é um grão de poeira".
Preocupam-se por "a vida ser
um subterfúgio surrado", enquanto "a morte é real e escura
e imensa". E se veem, mesmo
em idade avançada, presos entre a "domesticidade" e a liberdade, a responsabilidade e a
realização pessoal, entre "a
besta-amor" do sexo e a ruminação solitária.
Na verdade, este último volume de contos inéditos de Updike é, sob muitos aspectos, uma
perfeita parelha para "Pigeon
Feathers" ["Penas do Pombo"],
a precoce coleção de contos
que, quase cinco décadas atrás,
anunciava a descoberta da inimitável voz literária do escritor, então com 30 anos.
Os mesmos temas são tratados em ambos os volumes: recriação de uma infância e juventude na Pensilvânia, recordações de antigas namoradas e
paixões não consumadas; preocupações, como definiu o autor
em seus contos primeiro publicados em 1962, de que a morte
está correndo em nossa direção
"como um trem expresso".
E esses mesmos temas são
retomados, com variações menores, nos poemas mais pessoais de "Endpoint" [Ponto de
Chegada]. A principal diferença
é que em "As Lágrimas de Meu
Pai" e em "Ponto de Chegada",
Updike estava contemplando
seu passado de uma distância
ainda maior pelo telescópio, e
não por uma lente de aumento.
Memórias dedilhadas
Suas reflexões sobre o amor
por meio do desenho que marcou sua infância, as amizades
que tinha na escola, suas namoradas, mulheres e amantes parecem menos esforços de recapturar o passado do que excursões curtas ao passado.
São memórias dedilhadas,
tocadas por um homem idoso
que tenta recordar a paixão que
um dia sentiu por uma garota, o
pesar por uma oportunidade
perdida ou a compreensão, como afirma em um poema, de
que "tudo de que um escritor
precisa" na verdade existia lá
em sua cidade natal, com seus
"bondes e pequenas fábricas,
milharais e árvores, folhas
queimadas, flocos de neve, abóboras, cartões de namoro".
Updike escreve, nesses contos e poemas, com a segurança
silenciosa de alguém que domina completamente seu ofício.
Em lugar de explorar desajeitadamente territórios novos ou
ceder à tentação de exercícios
de criação literária (quando
tentou escrever do ponto de
vista de um dinossauro suburbano ou de uma mancha na superfície de um lago), ele adere
aqui ao que sempre fez de melhor: celebrar o comum, as alegrias e pesares e confusões comuns da vida suburbana de
classe média.
Ele mapeia a maneira pela
qual cidades pequenas, nas
quais as pessoas jogavam canastra e croqué e levavam as
namoradas a sorveterias, deram lugar a shopping centers
suburbanos e casarões falsamente luxuosos.
Estes, enfim, seriam sucedidos por subúrbios mais endinheirados, povoados por casais
que tiravam férias no exterior a
cada ano, acompanhavam o
mercado de ações e se envolviam em disputas com seus filhos e que hoje já estão em
avançada meia-idade.
Mundo visível
Ao fazê-lo, Updike mapeou
uma fatia estreita, mas fértil, da
vida norte-americana, o seu
"quinhão de planeta", instantaneamente reconhecível.
No começo dos anos 80, Updike declarou em entrevista
que "existe uma cristalização
que acontece em um poema a
qual um jovem é capaz de propiciar, mas é impossível a um
homem de meia-idade".
Os dois últimos livros que
deixou, no entanto, demonstram que sua competência nesses dois gêneros se manteve intocada até o final.
E que, ao despejar sua vida
"em forma de palavras", ele não
só preservou "a coisa consumida", mas também ofereceu um
duradouro "brinde ao mundo
visível", que celebrou com tamanho ardor e precisão.
A íntegra deste texto saiu no "New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci .
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