São Paulo, domingo, 14 de junho de 2009

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+(L)ivros

Cidades profundas

Sai nos EUA "As Lágrimas de Meu Pai", volume de contos inéditos em que John Updike, morto em janeiro, mapeia a vida da classe média do país

MICHIKO KAKUTANI

Fairchild, o herói de um dos belos e elegíacos contos em "My Father's Tears and Other Stories" ["As Lágrimas de Meu Pai e Outras Histórias"], de John Updike, que morreu em janeiro, é um cavalheiro idoso que sofre um assalto e ferimentos leves em uma viagem à Espanha. E considera o burburinho da experiência por que passou estranhamente revigorante.
Por que um acontecimento tão infortunado lhe parece agradável?
"Foi, suponho, o elemento de contato. No seu universo em acelerada expansão, ele desfrutava de menos e menos contato. Aposentado, perdera contato com os antigos colegas, ainda que a despedida tivesse sido acompanhada por inúmeras promessas sociáveis."
Os filhos dele, já adultos, viviam dispersos, e seus netos expressavam apenas "interesse polido" pelos presentes que ele tinha a oferecer.
Sua velha turma de pôquer enfrentava dificuldades para reunir cinco jogadores, e o quarteto de golfe do qual ele era parte "havia se dispersado em direção à enfermidade ou à Flórida, se não ao túmulo".

Ilhado na vida
Fairchild se descobre, na prática, "ilhado".
O mesmo pode ser dito sobre todos os protagonistas desses contos: precariamente equilibrados diante do precipício da velhice, encarando a perspectiva da morte cada vez mais próxima e enfrentando diariamente o crescente isolamento que surge com as forças centrífugas do tempo que afasta famílias e deixa fora de alcance um grupo de amigos já cada vez menor.
Muitos apresentam detalhes biográficos semelhantes aos de Updike: uma infância em cidade pequena como filho único e mimado; a fuga para uma universidade de elite na Nova Inglaterra; um casamento prematuro, seguido por filhos, separação, divórcio e, por fim, um segundo casamento.

Garantia espiritual
E muitos compartilham da perspectiva existencial e da preocupação com a mortalidade que caracterizam Harry Angstrom, Henry Bech e tantos outros personagens do escritor.
São homens que anseiam por uma garantia espiritual ou religiosa de que são mais que "um grão de poeira condenado a saber que é um grão de poeira".
Preocupam-se por "a vida ser um subterfúgio surrado", enquanto "a morte é real e escura e imensa". E se veem, mesmo em idade avançada, presos entre a "domesticidade" e a liberdade, a responsabilidade e a realização pessoal, entre "a besta-amor" do sexo e a ruminação solitária.
Na verdade, este último volume de contos inéditos de Updike é, sob muitos aspectos, uma perfeita parelha para "Pigeon Feathers" ["Penas do Pombo"], a precoce coleção de contos que, quase cinco décadas atrás, anunciava a descoberta da inimitável voz literária do escritor, então com 30 anos.
Os mesmos temas são tratados em ambos os volumes: recriação de uma infância e juventude na Pensilvânia, recordações de antigas namoradas e paixões não consumadas; preocupações, como definiu o autor em seus contos primeiro publicados em 1962, de que a morte está correndo em nossa direção "como um trem expresso".
E esses mesmos temas são retomados, com variações menores, nos poemas mais pessoais de "Endpoint" [Ponto de Chegada]. A principal diferença é que em "As Lágrimas de Meu Pai" e em "Ponto de Chegada", Updike estava contemplando seu passado de uma distância ainda maior pelo telescópio, e não por uma lente de aumento.

Memórias dedilhadas
Suas reflexões sobre o amor por meio do desenho que marcou sua infância, as amizades que tinha na escola, suas namoradas, mulheres e amantes parecem menos esforços de recapturar o passado do que excursões curtas ao passado.
São memórias dedilhadas, tocadas por um homem idoso que tenta recordar a paixão que um dia sentiu por uma garota, o pesar por uma oportunidade perdida ou a compreensão, como afirma em um poema, de que "tudo de que um escritor precisa" na verdade existia lá em sua cidade natal, com seus "bondes e pequenas fábricas, milharais e árvores, folhas queimadas, flocos de neve, abóboras, cartões de namoro".
Updike escreve, nesses contos e poemas, com a segurança silenciosa de alguém que domina completamente seu ofício.
Em lugar de explorar desajeitadamente territórios novos ou ceder à tentação de exercícios de criação literária (quando tentou escrever do ponto de vista de um dinossauro suburbano ou de uma mancha na superfície de um lago), ele adere aqui ao que sempre fez de melhor: celebrar o comum, as alegrias e pesares e confusões comuns da vida suburbana de classe média.
Ele mapeia a maneira pela qual cidades pequenas, nas quais as pessoas jogavam canastra e croqué e levavam as namoradas a sorveterias, deram lugar a shopping centers suburbanos e casarões falsamente luxuosos.
Estes, enfim, seriam sucedidos por subúrbios mais endinheirados, povoados por casais que tiravam férias no exterior a cada ano, acompanhavam o mercado de ações e se envolviam em disputas com seus filhos e que hoje já estão em avançada meia-idade.

Mundo visível
Ao fazê-lo, Updike mapeou uma fatia estreita, mas fértil, da vida norte-americana, o seu "quinhão de planeta", instantaneamente reconhecível.
No começo dos anos 80, Updike declarou em entrevista que "existe uma cristalização que acontece em um poema a qual um jovem é capaz de propiciar, mas é impossível a um homem de meia-idade".
Os dois últimos livros que deixou, no entanto, demonstram que sua competência nesses dois gêneros se manteve intocada até o final. E que, ao despejar sua vida "em forma de palavras", ele não só preservou "a coisa consumida", mas também ofereceu um duradouro "brinde ao mundo visível", que celebrou com tamanho ardor e precisão.


A íntegra deste texto saiu no "New York Times".
Tradução de Paulo Migliacci .

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