São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998

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OS DIAS INGLESES
Um gênio em formação


"Diário da Inglaterra", que a Ed. da UFRJ lança no segundo semestre, reúne pela primeira vez em livro os escritos íntimos do cineasta Mário Peixoto quando estudava no país em 1927


JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Se o filme "Limite" (1931) é um fenômeno que não cessa de desafiar a inteligência de estudiosos e críticos, a vida de seu criador, Mário Peixoto (1908-92), é igualmente um manancial de mistérios e estranhezas.
A publicação em livro, prevista para o segundo semestre, do "Diário" escrito por Mário Peixoto na Inglaterra em 1927, deverá lançar luz sobre a formação do caráter e da imaginação criadora desse artista singular, que, além de "Limite", produziu o romance "O Inútil de Cada Um" (1933, ampliado em 1984), o livro de poemas "Mundéu" (1931) e inúmeros poemas, contos e roteiros de cinema.
O "Diário da Inglaterra" -de que o Mais! publica trechos nesta edição- foi organizado e comentado pelo crítico e pesquisador Saulo Pereira de Mello, 65, que traduziu o texto, escrito originalmente em inglês, com a ajuda de sua mulher, a também pesquisadora Ayla Pereira de Mello. O livro será publicado pela Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e contará com farto material fotográfico.
Mas a onda de trabalhos em torno de Mário Peixoto não termina aí. No início de julho fica pronto um CD-ROM sobre "Limite" (leia à pág. 5-7). Até o final do ano devem ser publicados dois roteiros do cineasta: "Onde a Terra Acaba" (que ele começou a filmar em 1933, mas não concluiu) e "Outono ou o Jardim Petrificado", escrito em parceria com Saulo Pereira de Mello e nunca filmado.
Além disso, dois filmes estão sendo preparados: um documentário sobre Mário Peixoto, a ser dirigido por Sérgio Machado, e o longa de ficção "A Invenção de Limite", por Joel Pizzini (leia à pág. 5-7).
Para Saulo Pereira de Mello, o "Diário da Inglaterra" é um documento precioso por revelar um Mário Peixoto desnudo e transparente, em contraste com o artista que passou a mitificar a própria vida e inventar disfarces para se esconder do mundo (leia entrevista às págs. 5-6 e 5-7).
O cineasta escreveu o "Diário" entre os 18 e os 19 anos, quando estudava num "college" próximo à cidadezinha de Eastbourne, em Sussex, Grã-Bretanha. De família burguesa do Rio de Janeiro, educado por um pai severo, mimado pela avó e pelas primas, Mário Peixoto via-se de repente sozinho num ambiente hostil -o mundo austero e frio das escolas britânicas.
No "Diário" acompanhamos o impacto dessa experiência em sua sensibilidade, ao mesmo tempo em que observamos a formação de seu gosto estético e literário -sobretudo sua admiração pelo cinema silencioso alemão.
De acordo com Saulo Pereira de Mello, o "Diário" revela especialmente o horror de Mário Peixoto à passagem do tempo, assim como a dolorosa tomada de consciência da limitação humana -duas idéias-chave para o entendimento de "Limite" e de toda a obra do cineasta e escritor.

Filme-poema
Apesar de sua variada produção literária, Mário Peixoto é praticamente sinônimo de "Limite", obra única na cinematografia brasileira e mundial.
Filme de uma radicalidade experimental assombrosa, que contrasta com tudo o que se fazia no cinema brasileiro da época, "Limite" não narra propriamente uma história: apresenta quatro personagens em situações aparentemente desconexas, mas que obedecem a uma estrutura poética e musical.
Os críticos viram em "Limite" uma maneira absolutamente pessoal de absorver influências da "avant-garde" francesa dos anos 20 e do expressionismo alemão.
O curioso é que Mário Peixoto, que escreveu o roteiro com 20 anos de idade, não queria, inicialmente, dirigir o filme. Só depois que Adhemar Gonzaga e Humberto Mauro se recusaram a filmar o roteiro -que consideraram "demasiado pessoal"-, o jovem cineasta tomou em suas mãos a direção de "Limite", com a ajuda preciosa do diretor de fotografia Edgar Brasil.
Juntos, Peixoto e Brazil criaram equipamentos e técnicas que tornaram possíveis os enquadramentos e movimentos de câmera insólitos do filme.
"Limite", que nunca teve uma exibição comercial em sua época, foi durante várias décadas um filme muito comentado e pouco visto, objeto de culto de alguns raros admiradores, como o escritor Octavio de Faria e o poeta Vinícius de Moraes.
No calor dos debates dos anos 60, o cinemanovista Glauber Rocha, que não tinha visto o filme, chegou a citá-lo como exemplo do cinema "formalista" e "alienado" ao qual o Cinema Novo, herdeiro de Humberto Mauro, vinha se contrapor.
Só no final dos anos 70, com a cuidadosa restauração do filme por Plínio Sussekind Rocha e Saulo Pereira de Mello, "Limite" veio finalmente à luz para as novas gerações -e sua força revelou-se intacta. Hoje "Limite" é um ponto de referência obrigatório para a historiografia do cinema brasileiro e internacional.
Paralelamente ao crescimento do mito em torno de "Limite", seu criador, Mário Peixoto, entregou-se a um isolamento crescente. Encerrou-se durante quase quatro décadas em seu Sítio do Morcego, na Ilha Grande, região de Angra dos Reis (RJ), onde se dedicou a criar e recriar minuciosamente seu próprio passado.
A obsessão de "Limite" nunca o abandonou. Chegou a escrever sequências inteiras do roteiro e dizer que tinham sido filmadas e cortadas posteriormente.
Fez algo semelhante com o romance "O Inútil de Cada Um". Escreveu, já na maturidade, cinco outros volumes do livro; depois disse que se tratava de manuscritos dos anos 30, e que o romance, em sua primeira versão, tinha sido cortado por seu pai, junto com Manuel Bandeira e Augusto Frederico Schmidt. Em 1984, publicou uma nova versão do romance, mais alentada, mas ainda em um volume.

Poema inédito
O Mais! publica, além de trechos do "Diário da Inglaterra", um poema de Mário Peixoto, "Horizon Boy" (leia ao lado), que o próprio cineasta definia como uma balada que acompanharia seu filme "Sad Bird" ou "Pássaro Triste".
De acordo com Saulo Pereira de Mello, Mário Peixoto lhe disse, algum tempo antes de morrer, que já estava na página 17 do roteiro de "Pássaro Triste". "É a melhor coisa que eu já fiz", afirmara o cineasta. O manuscrito do roteiro, entretanto, nunca foi encontrado. Restou apenas o poema.
"Acho que ele estava mobilizando seu instinto poético para fazer brotar dali um filme, um filme que talvez ele nem tivesse a pretensão de que fosse feito", diz Mello. "Ele achava que, uma vez o roteiro pronto, o filme estava pronto."



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