São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

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+ música

Sucesso do tecno nas raves e pistas de dança obscurece o potencial criativo da música eletrônica experimental

O imprevisível ruído do assombro

Livio Tragtenberg
especial para a Folha

Já há algum tempo vivemos uma nova realidade na produção e criação musicais. Em parte, um desdobramento das novas tecnologias mas também resultado de uma nova demanda social que reposiciona parâmetros e funções em relação à tradição do fazer musical. A partir de categorias herdadas do século 19, não é possível uma análise da cena atual, baseada em novas práticas e demandas socioestéticas. Assim, de um lado, é preciso abandonar o status quo da chamada música culta como baliza na abordagem da cena atual; e, de outro, evitar o culto da facilidade como moeda qualitativa da criação musical. O modo de produção da música mudou, se industrializou, mas ao mesmo tempo proporcionou uma nova "artesania" individual, à medida que ampliou o acesso a equipamentos básicos graças a seu barateamento. A figura tradicional do compositor e do músico passa a dividir espaço com o músico-misturador, que aprende com a prática nos equipamentos de edição e mixagem, longe dos instrumentos acústicos e das regras acadêmicas. Enfim, um músico autodidata e franco-atirador, descompromissado com a tradição historicista da música européia ocidental. Sendo sobretudo um coordenador de sonoridades, sua idéia de composição é basicamente edição (justaposição e sobreposição) de material sonoro preexistente e reprocessado. A acusação de que não são "músicos" porque não têm treinamento tradicional involuntariamente lança luz sobre essa característica importante desse novo personagem. Um dos aspectos que irritam o meio musical estabelecido é o fato de que essa nova criação acontece à margem do corpo da tradição musical e, mais ainda, atua de forma agressiva, anti-histórica e libertária na devoração do acervo dessa mesma tradição. Essa espécie de componente punk -um verdadeiro faça-você-mesmo musical- coloca de lado categorias, estruturas e políticas do establishment musical. Vive à margem do universo comercial das grandes gravadoras e dos grandes veículos de mídia.

Animadores de festas
Portanto as críticas do meio musical tradicional à atividade dos DJs e da chamada IDM ("Intelligent Dance Music", de resto, uma denominação boba) partem de um pressuposto viciado, atrelado ao fazer musical acústico-eletrônico da música erudita européia. Mas não há dúvida de que, na maioria dos casos, esses personagens "rodopiantes" não passam de profissionais animadores de festas. Em Portugal, são chamados de gira-disquistas, numa forma substantiva.
A valorização do poder psicofisiológico do som é de longe o que mais chama a atenção nessas músicas; historicamente a própria "Quinta Sinfonia" de Beethoven (1770-1827) foi recebida como um "ruído assombroso" em seu tempo. Ela retoma ainda uma certa idéia de coletivização na fruição da música. Espacialmente, sem um palco, sem um músico com uma performance tradicional ao vivo e sem um ponto central de atenção sonoro-visual, as raves pulverizam o foco de atração e, como num ritual coletivo de anestesia (esvaziado de conteúdos religiosos ou políticos), o participante dança livremente. Comportamento que busca ser capitalizado pelo marketing de produtos para o mundo jovem.
Tem-se levantado, como contraponto, o nome do compositor Karlheinz Stockhausen e sua geração da música eletrônica do pós-guerra para desqualificar a cena "eletrônica" atual. Mas acontece que as esferas de pesquisa, atuação e objetivos entre eles são essencialmente diferentes. Qualquer comparação é descabida. O que se deve destacar é que graças ao trabalho dessa geração -e subsequentes- de compositores e engenheiros de som foi possível à indústria se apropriar de (e desenvolver) meios e equipamentos que hoje possibilitam tecnicamente a atuação dos gira-disquistas.
Noutras palavras, não faz sentido desqualificar a música eletrônica de pista e ramificações com a régua e os rigores da música eletrônica experimental européia do pós-guerra. Essa postura esconde, no fundo, uma vocação para o monoteísmo estético -e ainda se baseia em obsoletas dicotomias de culto-inculto, erudito-popular. Já no meio da música popular (o que é isso, hoje? Alguém que me explique...), as restrições passam por uma crítica a uma "música feita por máquinas", por não-músicos, fácil e repetitiva. Uma vez mais, tenta-se vestir as velhas roupas do "Imperador" para qualificar o outro, o diferente.
Esse Fla-Flu não leva em conta -e desconhece- criadores, experimentadores que à sua maneira e ao seu tempo se localizam reordenando os elementos sonoros segundo combinações nada ortodoxas, como Otomo Yoshihide, Geir Jenssen (e seu projeto Substrata: www.touch.demon.co.uk/substrata.html), Zbignew Karkowski, Alfredo Triff, Silvia Ocougne, François Kevorkian & Rob Rives, Bruce Gilbert, entre outros tantos.
Todo um universo de criação musical hoje trafega entre as tradições (populares, étnicas e experimentais) e os meios eletrônicos e acústicos, realizando uma síntese atual, momentânea, sobretudo não-excludente. A veiculação desse tipo de música também é transversa. Dá-se em pequenos selos, pela internet, por festivais heterodoxos, misto de show, concerto, festa. Nosso meio musical dificulta a veiculação desse tipo de música, uma vez que os promotores ainda se apegam às categorias de erudito, popular ou impopular -como escreveu o maestro Júlio Medaglia.
Essas músicas que incorporam, pilham, deformam e reformam as tradições musicais também operam a transformação dos formatos e estilos, além das sonoridades. Por exemplo, a canção ganha tratamentos combinados de voz falada, cantada, sampleada, pessoal, impessoal, coletiva. As durações não seguem o padrão "tocar no rádio" de dois a três minutos, são elásticas no tempo; os textos combinam simultaneamente diferentes líricas: a do eu, do humor, do amor, da reportagem. Padrões de instrumentação com baixo, ritmo constante, harmonia e melodia redimensionam-se num mosaico de sons reprocessados, de origens as mais diversas. Nelas, melodia, ritmo e harmonia são elementos possíveis, mas sempre imprevisíveis.
Na verdade, o que aparece dessa "música eletrônica" na mídia é o reflexo de sua face mais comercial de uma forma de fazer musical múltipla, que já é praticada há mais de 15 anos na cena musical transversal. Nesse meio os sons são tratados em tábula rasa, o que propicia uma liberdade extrema de combinação de elementos abstratos com étnicos, culturas populares e literárias num "melting pot" instável, mas que reflete nosso momento de saturação na oferta e circulação de informações.
Não se trata de defender essa nova música eletrônica contra ataques acadêmicos, mas de destacar que, junto a essa explosão da música eletrônica de pista, existe um amplo universo de criadores, que já não cabem mais no figurino do erudito, experimental ou popular. Critica-se hoje a mediocridade da música brasileira atual etc. Mas a responsabilidade por esse estado de coisas é das cabeças que se recusam a ampliar e incorporar novos elementos ao seu arroz-com-feijão sonoro. Todos nós, cúmplices da preguiça e do comodismo -músicos, críticos, promotores de cultura, público-, somos co-partícipes desse "ground zero".


Livio Tragtenberg é compositor e autor de "Música de Cena" (ed. Perspectiva) e "Contraponto" (Edusp). Em maio estreou peça com direção de J. Kresnik, em Dresden, na Alemanha.


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