São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

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QUEIMANDO O FUTURO

France Presse - 23.mar.1998
Incêndio em Mucajaí, perto de reserva indígena ianomâmi, em Roraima



"Um Sopro de Destruição" mapeou textos de autores como José Bonifácio, Joaquim Nabuco e André Rebouças que alertam para as consequências sociais da destruição de florestas, erosão dos solos e dos desequilíbrios climáticos


por Laymert Garcia dos Santos

Em 19 de junho passado o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística) publicou, pela primeira vez, o relatório "Indicadores de Desenvolvimento Sustentável", que veio corroborar o que todos sabemos: do ponto de vista ambiental, o padrão de desenvolvimento do Brasil é insustentável. Pior ainda: dez anos depois da Eco-92, enquanto os dados comprovados indicam que aumenta a taxa de desmatamento, de 2000 para 2001 o número de focos de queimada detectados por satélite cresceu de 104 mil para 145 mil. Constatação óbvia: a devastação continua alegremente. Mas, na mesma notícia, o presidente do IBGE, Sérgio Besserman Vianna, anuncia que o Brasil tem trunfos extraordinários para mostrar na Rio +10, que começa em 26 de agosto, em Johannesburgo, na África do Sul: "Temos uma natureza riquíssima e uma população consciente e alerta para as questões do ambiente. No entanto o país precisa combater a desigualdade". Qualquer pessoa minimamente lúcida, ao ler o parágrafo anterior, pensaria que há algo muito errado... ou muito louco. E, no entanto, nem se pode dizer que algum dos seus enunciados seja novidade: a convivência da banalidade do mal e do ufanismo em relação à "nossa" natureza é tão arraigada e tão antiga que já perdemos a noção do absurdo, aceitando-o sem questionamentos. Parece que ainda não despertamos de nossa conduta insana em virtude da dimensão continental do Brasil. Havia e ainda há tanto para queimar que podemos seguir por mais algum tempo na trilha inaugurada há 500 anos. E, quando o líder indígena nos diz que a atitude dos brasileiros para com a terra permaneceu fundamentalmente a mesma, que a mentalidade predatória atravessou incólume todos esses séculos, somos obrigados a reconhecer que, embora ele tenha razão, não estamos dispostos a mudar. Até hoje há perguntas que nunca podem ser feitas, que devem ser incessantemente recalcadas: por que insistimos em considerar que a natureza brasileira era "natural", isto é, não manejada, quando os portugueses aqui aportaram, mesmo sabendo que milhões de indígenas habitaram o território durante milhares de anos sem comprometê-la? Por que a destruição sistemática dos recursos naturais só tem início com a ocupação territorial pelos europeus? Por que consideramos que o descobrimento e a colonização dão início a uma evolução, e não a uma involução? Por que a superioridade da sociedade que promove o desenvolvimento da destruição foi e continua sendo um tabu?

Tradição esquecida
Tais questões foram suscitadas pelo auspicioso lançamento do livro "Um Sopro de Destruição - Pensamento Político e Crítica Ambiental no Brasil Escravista (1786-1888)" [R$ 29,50, 320 págs., Jorge Zahar Editor", no qual José Augusto Pádua lança uma luz esclarecedora sobre o modo como a devastação foi percebida no fim do período colonial e ao longo do império. Com efeito, sua leitura reavivou uma forte sensação de desconforto com nossa irresponsabilidade e principalmente nossa incapacidade de transformarmos a consciência de que os recursos do país estão sendo dilapidados numa ação efetiva que mude o curso das coisas. O livro de Pádua tem, antes de tudo, o mérito de deslocar no tempo uma discussão que se quer eminentemente contemporânea, para mostrar que as gerações passadas já se preocupavam com questões ambientais e, sobretudo, já viam o desmatamento como uma questão política. Pádua faz parte da nova historiografia que vem investigando as origens da controvérsia ambiental e focalizando a importância das colônias tropicais européias para o seu aparecimento.


FAZENDEIROS, ESCRAVOS, ESTRANGEIROS, ESTADO... TODOS PARTICIPAM IMPUNEMENTE DA DEVASTAÇÃO, NINGUÉM É RESPONSABILIZADO POR NADA E NÃO HÁ MEDIDA LEGAL DE PROTEÇÃO QUE SE EFETIVE


Como ele mesmo afirma na introdução, seu trabalho apresenta pela primeira vez uma análise exaustiva do lugar do Brasil nesse processo de rediscussão: "(...) Não resta dúvida, comparado com o que tem sido descoberto em outros países, que estamos diante de uma das maiores expressões nacionais, no período anterior ao século 20, do que pode ser chamado de preocupação intelectual com a degradação do ambiente. O material que fui capaz de levantar incluiu cerca de 150 textos, produzidos por mais de 50 autores, nos quais se discutiram de forma direta, em um período de 102 anos, as consequências sociais da destruição das florestas, da erosão dos solos, do esgotamento das minas, dos desequilíbrios climáticos etc.". A descoberta, reconstrução e análise desse corpus -efetuada a partir de um texto de José Bonifácio escrito em 1823, que serviu de detonador da pesquisa- produziram no cientista político a convicção de que se encontrava diante de uma tradição, e não de um conjunto de autores esparsos. Mais ainda: urgia recuperar tal tradição esquecida para mostrar que discussão ambiental não é uma importação descabida ou "fora do lugar" no debate político brasileiro; muito ao contrário, sua própria existência já indica que, no Brasil, sociedade e natureza vêm sendo pensadas conjuntamente há muito tempo, muito embora essa reflexão sempre tenha sido feita por correntes minoritárias da intelectualidade. Reconstituindo a linhagem de pensadores que atravessa o século 19, Pádua mostrou que há entre eles um denominador comum: como herdeiros do Iluminismo, todos trazem a marca de um enfoque político, cientificista, antropocêntrico e economicamente progressista. "Os pensadores (...) não defenderam o ambiente natural com base em sentimentos de simpatia pelo valor intrínseco, seja em sentido estético, ético ou espiritual, mas sim devido à sua importância para a construção nacional. Os recursos naturais constituíam o grande trunfo para o progresso futuro do país, devendo ser utilizados de forma inteligente e cuidadosa. A destruição e o desperdício dos mesmos eram considerados uma espécie de crime histórico, que deveria ser duramente combatido." Nesse sentido, a solução do problema ambiental pressupunha a revogação da mentalidade e das práticas do colonialismo predatório e a modernização do sistema produtivo e das instituições; pois, como observa o autor, com argúcia, "a destruição do ambiente natural não era entendida como um "preço do progresso", como na visão hoje dominante, mas sim como um "preço do atraso'". Daí o nexo causal entre escravidão e devastação. Pádua analisa, portanto, o legado do primeiro ciclo teórico da crítica ambiental brasileira, que se inaugura em 1786 com o "Discurso" de Baltasar da Silva Lisboa, primeiro ensaio escrito por um brasileiro com reflexões políticas amplas sobre os problemas ambientais do país, e se fecha em 1888, com a abolição da escravidão.

Iluminismo brasileiro
Estruturado em cinco capítulos, o livro parte da inserção dos primeiros críticos no contexto do Iluminismo luso-brasileiro; analisa a realidade predatória da economia colonial e o choque que ela provocou nos intelectuais retornados da Europa; discute a síntese político-ambiental apresentada pela obra de José Bonifácio (1763-1838), considerado o fundador da crítica sistemática da destruição ambiental no Brasil; e explora, nos capítulos finais, duas vertentes da intelectualidade: a vertente da elite imperial, que se preocupou com a degradação do território a partir de um reformismo tecnológico e administrativo, e a vertente abolicionista, que retomou o pensamento de José Bonifácio e, através de Joaquim Nabuco, André Rebouças e Frederico Burlamaque, definiu o fim do escravismo como condição necessária para o estabelecimento de uma relação não-destrutiva com a natureza.
Ao longo das páginas, o leitor vê evoluir a percepção da constante queima das matas, do comprometimento das águas, da destruição estúpida de animais e plantas, que hoje denominamos biodiversidade. Fazendeiros, escravos, estrangeiros, Estado... Todos participam impunemente da devastação, ninguém é responsabilizado por nada e não há medida legal de proteção que se efetive. Às vezes irrompe no texto uma ou outra menção ao extermínio dos índios ou à sua "integração".
Como o comentário de Muniz de Sousa, em 1834, que escreve: "Tenho ouvido alguns homens, que pensam filosoficamente, dizerem que não há vida igual à dos índios, porque seguem a ordem da natureza. Não duvido. Porém só enquanto não é interrompida por nós, ou pela nossa ordem social, a qual é toda contraditória com a ordem da natureza que eles seguem. Além disso, ocorre mais que nós lhes temos tomado grande parte de seus terrenos e matas e por consequência os temos privado de todos os socorros e comunidades que lhes franqueou a natureza. Por isso vivem em continuada miséria". Mesmo então, jamais é questionada a necessidade de converter os povos indígenas em nome do ideal do progresso.
Os intelectuais progressistas do império acreditavam que o fim da devastação estava vinculado ao fim do escravismo. Apesar de eles não deixarem de ter razão em muitos pontos, o tempo se encarregou de mostrar que não era bem assim. É que o sopro da destruição não procedia, "apenas", do sistema escravista colonial, como pensava Nabuco. O próprio Pádua escreve: "Apesar da rápida transição para o trabalho livre, a permanência das queimadas e das monoculturas continuou produzindo intensa destruição -destruição que, na verdade, foi intensificada pela abertura de novas regiões florestais e pela maior capacidade de impacto fornecida pela tecnologia industrial".

Laymert Garcia dos Santos é professor do departamento de sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas e autor de "Tempo de Ensaio" (Cia. das Letras).


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