São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

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+ brasil 503 d.C.

A Revolução Francesa das letras

Sergio Paulo Rouanet

O bicentenário do nascimento de Victor Hugo (1802-1885) está passando quase despercebido no Brasil. E no entanto ele foi idolatrado por várias gerações de brasileiros, a começar por d. Pedro 2º, que o visitou em Paris, e por poetas como Gonçalves Dias, Castro Alves, Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Euclides da Cunha e Raimundo Correia. Mais de cem brasileiros traduziram Hugo, inclusive d. Pedro 2º, que traduziu um dos poemas da fase legitimista de Hugo, e Machado de Assis, que traduziu "Os Trabalhadores do Mar" (ed. Nova Alexandria). Hoje tudo isso passou. Hugo foi-se apagando entre nós, como um astro que se extingue depois de ter brilhado mais do que convinha. Não há mais no Brasil crianças batizadas com o nome de Victor Hugo, como aconteceu durante cem anos. Hoje a única homenagem que nosso registro civil presta à literatura universal está na quantidade desproporcional de crianças que recebem o nome de Marcus Vinicius, nome de um personagem de "Quo Vadis?" (1896), de Henryk Sienkiewicz (1846-1916). É verdade que se anuncia neste ano um simpósio internacional intitulado "Victor Hugo, um Génie sans Frontières" (Victor Hugo, um Gênio sem Fronteiras), a realizar-se entre 23 e 26 de julho, em Belo Horizonte, sob os auspícios da Universidade Federal de Minas Gerais. Fora isso, os suplementos literários publicam matérias esparsas, algumas de excelente nível, como as que saíram no suplemento "Idéias", do "Jornal do Brasil", e o suposto amor brasileiro de Victor Hugo, a enigmática Rosita Rosa, reaparece sob a forma de um samba-bossa gravado por Frédéric Pagès, denominado "Elle Vient de Ce Brésil" (Ela Vem Deste Brasil), lançado em março no Salão do Livro de Paris.

Da vida para os currículos
Do mesmo modo que a glorificação de Hugo entre nós refletia sua glorificação universal, seu eclipse no Brasil de hoje é um reflexo do seu eclipse no mundo. Esse declínio é visível na interminável série de farpas e ironias desferidas contra o poeta, algumas ainda em vida de Hugo. Ele foi chamado de "cretino sublime", por alusão à célebre expressão que Chateaubriand teria usado para descrever o jovem gênio -"criança sublime". Para Baudelaire, Hugo era um grande homem em que Deus, por uma insondável mistificação, amalgamou o gênio e a tolice. Seguindo a mesma linha, André Breton disse que Hugo "era surrealista, quando não era idiota". Jean Cocteau definiu Hugo como um louco que achava que era Victor Hugo. Resta a mais devastadora dessas farpas, a celebérrima frase com que Gide respondeu a quem lhe perguntava qual era o maior poeta da França: "Victor Hugo, hélas" -Victor Hugo, infelizmente. O que está por trás dessa hostilidade? Em parte, o declínio se deve ao próprio excesso de adulação que Hugo recebeu em vida. Ninguém assiste impunemente à sua própria apoteose. Além disso, a estatura de Hugo era tão descomunal que ele precisava ser posto de lado pelas gerações seguintes, para que elas tivessem um lugar ao Sol. O problema capital da literatura, depois de Hugo, era fazer algo de diferente do que ele fizera. Havia duas maneiras de livrar-se de Hugo -e as duas foram adotadas. A primeira foi a mumificação. Alguns grandes homens saem da vida para entrar na história. Victor Hugo saiu da vida para entrar nos currículos escolares. O grande demolidor dos clássicos foi transformado num clássico. Com isso, gerações de ginasianos passaram a odiá-lo. A batalha de "Hernani", que em 1830 tinha provocado duelos, passou depois a provocar bocejos, pois tinha se tornado tão irrelevante quanto a batalha de Poitiers. A segunda reação foi de crítica aberta. Alegava-se que Hugo tinha envelhecido tanto em sua retórica quanto em sua ideologia.


Como o próprio Victor Hugo escreveu, o idioma que encontrou ao estrear na vida literária era como o Antigo Regime, em que povo e nobreza viviam segregados em castas


É curioso: os que se revoltam hoje contra o estilo exuberante de Hugo estão repetindo, "mutatis mutandis", os argumentos dos clássicos de 1830 contra os exageros dos românticos. Para os clássicos, Hugo desrespeitava, por sua desmedida, a sobriedade, o decoro, o bom gosto que desde Racine caracterizavam o teatro francês, do mesmo modo que, com sua escandalosa mistura de sublime e de grotesco e com sua petulância em desconhecer a regra das três unidades, o inventor do drama romântico desmoralizava as bases da estética francesa, tal como ela fora codificada por Boileau para todos os tempos. Condenando o excesso de pirotecnia verbal de Hugo, sua ênfase, suas hipérboles, suas antíteses, suas personificações, os críticos de hoje não se dão conta de que estão se comportando com o mesmo filistinismo dos burgueses que na estréia de "Hernani" se indignavam com o colete vermelho de Théophile Gautier. Hugo disse que o romantismo era o liberalismo em literatura. A linguagem de Hugo foi mais que isso, foi a Revolução Francesa na literatura. Como ele próprio escreveu, o idioma que ele encontrou ao estrear na vida literária era como o Antigo Regime, em que povo e nobreza viviam segregados em castas. Havia a palavra nobre e a palavra familiar, que nenhum literato sério ousaria empregar. Havia vocábulos-duque e vocábulos-plebeu. Sobre os batalhões de alexandrinos, Hugo fez soprar um vento revolucionário e pôs um barrete frígio no velho dicionário. Os tropos, escondidos debaixo das saias da academia, tremeram. Hugo declarou as palavras livres e iguais. Então a ode, abraçando Rabelais, tomou uma bebedeira, enquanto as nove Musas, de seios nus, dançavam a Carmagnole. Sim, ele foi esse Danton, foi esse Robespierre. Bateu as mãos, bebeu o sangue das frases, tomou e demoliu a Bastilha das rimas, quebrou o jugo de ferro que prendia a palavra-povo, fez do pronome pessoal um jacobino, do particípio uma hiena e do verbo a hidra da anarquia. Graças a ele, a língua foi posta em liberdade. Fica difícil acusar de academicismo um poeta assim. Sim, o romantismo tinha que ser ultrapassado, mas sem em nenhum momento perder de vista que era da subversão romântica que vinha o impulso para a subversão modernista, e que sem a libertação da linguagem efetuada por Hugo não teríamos podido rebelar-nos contra o próprio Hugo. Tudo isso foi reconhecido por muitos dos que criticaram Hugo. Como lembrou Fernando Mendes Viana, os grandes precursores da poesia moderna seriam impensáveis sem Hugo. Baudelaire deve a Hugo a estética do grotesco, do repulsivo, sem a qual não teria composto a "Charogne"; Rimbaud viu em Hugo "o maior dos videntes"; e Mallarmé declarou ser Hugo "o verso personificado". O jovem "sans-culotte" do verso foi também par de França e acadêmico, mas sem ele as vanguardas do século 20 não teriam podido prosseguir a obra de destruição criadora iniciada pelo romantismo. Ultrapassada, a forma de Hugo? Ao contrário, é sobretudo pela forma que Hugo vive. Sua facilidade formal é tão prodigiosa que parece inverter a relação entre pensamento e linguagem: como notou Paul Valéry, tem-se a impressão de que para ele a linguagem deixa de ser um meio para a expressão do pensamento, e que o pensamento se converte num meio a serviço da linguagem poética.

História e destino individual
Há muito exagero nisso. Não é verdade que as idéias de Hugo estejam subordinadas à forma, mas a questão é saber se essas idéias continuam válidas. Mesmo os que admiram o estilo de Hugo duvidam disso. Suas opiniões derivariam de uma ideologia cientificista do século 19, hoje irremediavelmente antiquada. Mas antiquada segundo que parâmetros? A tese de uma descontinuidade radical entre as duas épocas precisa ser demonstrada. E não há melhor ocasião para isso do que uma efeméride como a do bicentenário, que precisamente junta as duas pontas de um arco temporal, estendendo-se entre o presente da comemoração e o passado a ser comemorado.
Sabemos qual é esse passado, no caso do bicentenário: é 1802. Quais as forças históricas que atuavam naquele ano?


O mundo vive hoje sob o jugo de uma nova realidade imperial: para uns, esse império é impessoal, e seu nome é globalização; para outros, tem um rosto e uma bandeira: é o império americano


Temos à nossa disposição, para responder a essa pergunta, um documento excepcional, o primeiro poema de "Folhas de Outono" (1831), que alude, justamente, a 1802: "Este Século Tinha Dois Anos". É um dos poemas mais dolorosamente subjetivos de Hugo e, ao mesmo tempo, aquele em que transparece mais claramente a interpenetração de destino individual e história externa.
Em sua dimensão subjetiva, 1802 foi o ano de nascimento do poeta. Nesse ano, vinha ao mundo, em Besançon, o filho do general Hugo, uma criança doentia, com poucas chances de sobrevivência, salva da morte pela dedicação materna, graças à qual ele fora "duas vezes o filho de sua mãe". Esse menino crescera, sofrera muito, meditara muito e, se escrevia romances irônicos e punha em cena personagens diversos, era porque tudo no mundo fazia reluzir e vibrar sua alma de cristal, aberta a todas as vozes, "eco sonoro" no centro de todas as coisas.
Mas 1802 foi também o ano em que o destino do mundo estava sendo determinado por colossais forças históricas. Quando o século tinha dois anos, diz Hugo, "Roma substituía Esparta/ Já Napoleão despontava sob Bonaparte/, E em muitos lugares a fronte do Imperador/ Quebrava a máscara estreita do Primeiro-Cônsul". Com isso, Hugo identifica duas dessas forças: a austeridade jacobina de Esparta e a glória militar de Roma, ou seja, em linguagem menos metafórica, a república e o império. No final do poema, aparece uma terceira força: a Vendéia, isto é, a tradição, o torrão natal, que em nome do Antigo Regime se opõe às duas vertentes da modernidade política, a republicana e a imperial. As três forças históricas se refratam nas escolhas adultas de Hugo.
Muito freudianamente, ele nos diz que suas posições políticas foram moldadas por duas influências familiares, a paterna, representando o império, e a materna, representando a tradição, e que ele evoluiu por escolha consciente, independentemente de protótipos familiares, em direção à constelação histórica remanescente, a liberdade republicana. Tudo isso está contido nos últimos seis versos: "Após ter cantado, escuto e contemplo,/ Ao Imperador caído erguendo um templo na sombra,/ Amando a liberdade por seus frutos, por suas flores,/ O trono por seu direito, o rei por seus infortúnios,/ Fiel enfim ao sangue que injetaram em minhas veias/ Meu pai, velho soldado, e minha mãe, vendeana!".
Hoje é o século 21 que tem dois anos. Supondo que neste momento esteja nascendo um novo Victor Hugo, como descreveria ele, quando se tornasse adulto, o ano de 2002? Estranhamente, tenho a impressão de que apesar das mudanças ocorridas nos últimos 200 anos, ele reencontraria em nossa época as três forças que o poema tinha inventariado em 1802: o império, a tradição e a república. Em 1802, o império era Napoleão, e hoje é Bush; a tradição era La Rochejaquelein, general da Vendéia feudal, e hoje é Le Pen, líder da Frente Nacional; a república era Mirabeau ou Robespierre, e hoje seriam os partidários de uma democracia mundial.
Primeiro, com o fim da Guerra Fria, o mundo vive hoje sob o jugo de uma nova realidade imperial. Para alguns, esse império é impessoal, anônimo, inevitável como uma força da natureza, e seu nome é globalização. Para outros, o império tem um rosto e uma bandeira: é o império americano. É possível que Hugo, acostumado com impérios que nada tinham de abstratos, achasse mais plausível essa segunda versão, e é sobre ela que vamos nos demorar. Sem dúvida, há diferenças de estilo e de QI entre o imperador dos franceses e o presidente dos EUA, mas nos dois casos a arrogância de César é a mesma. Como Napoleão, Bush quer impor sua lei ao mundo por uma autoridade usurpada: foi o próprio Bonaparte que pôs a coroa em sua cabeça, e foi o próprio Bush que se outorgou a estrela de xerife. Nos dois casos, o unilateralismo é a regra -e nos dois casos o poder militar é o argumento supremo.
Sabemos que numa certa fase de sua vida Hugo votou a Napoleão um culto irracional, manifestado em odes como "À Coluna da Praça Vendôme" (1827) ou "À Coluna" (1830). Mas sabemos também que desde o discurso de recepção na Academia Francesa, em 1841, Hugo temperava seu entusiasmo pela glória napoleônica com a condenação de sua política de guerra permanente. Mais tarde, Hugo se torna virulentamente antimonarquista e fustiga indistintamente reis e imperadores, com uma possível exceção a favor de d. Pedro 2º, que ele chamava de "grande cidadão".
Mesmo antes de declarar uma guerra pessoal a Napoleão 3º, Hugo já via em toda e qualquer política imperial a negação dos princípios de liberdade individual estabelecidos pela Revolução Francesa e do direito de autodeterminação dos povos que a consciência civilizada do universo estava impondo no século 19. O último poema de "Folhas de Outono" é um grande hino de cólera contra todas as prepotências imperiais:
"Odeio a opressão com um ódio profundo;/ Por isso, quando ouço, em qualquer canto do mundo,/ sob um céu inclemente, sob um rei assassino,/ Um povo que degolam debater-se e gritar;/ Quando pelos reis cristãos entregue aos carrascos turcos/ A Grécia, nossa mãe, agoniza trespassada pela espada.../ Quando Lisboa, outrora bela e festiva/ Pende enforcada, com os pés de Miguel na cabeça.../ Quando um cossaco horrível, possesso de raiva/ Estupra Varsóvia, descabelada e morta.../ Então, oh, eu maldigo em sua corte, em seu antro,/ Esses reis cujos cavalos têm sangue até o ventre!/ Sinto que o poeta é seu juiz! Sinto/ Que a musa indignada, com seus punhos possantes,/ Pode, como num pelourinho, amarrá-los em seu trono/ E fazer-lhes um jugo com sua covarde coroa.../ Marcados na testa com um verso que o futuro lerá."
Segundo, a ação avassaladora do império, quer ele assuma a forma da globalização, quer a do expansionismo americano, gera reações particularistas, defensivas, que se traduzem na reativação de especificidades locais, étnicas, culturais, religiosas. Reaparecem velhas patologias, que se julgavam há muito superadas, como o nacionalismo, o racismo e o fundamentalismo. Algo de semelhante aconteceu na Vendéia, na época da Revolução Francesa. O furacão universalista que soprava de Paris, com sua tendência a dissolver os costumes seculares das velhas Províncias francesas, sua religiosidade, suas fronteiras geográficas tradicionais, suas línguas, seus pesos e medidas, estimulou reações locais das quais a insurreição da Vendéia foi a mais perigosa para a jovem República.
Hoje como ontem, esses particularismos são problemáticos. Não se pode resistir a pressões globais por meios locais. Uma realidade imperial, cuja eficácia transborda todas as fronteiras, só pode ser combatida por meios igualmente transnacionais. Reações meramente locais são ou irrealistas, quando vêm da esquerda, ou perigosas, quando vêm da direita. Esse segundo caso é exemplificado por movimentos que pretendem lutar contra a globalização pela reativação dos valores tradicionais, como ocorre com a Frente Nacional do senhor Le Pen.
O que pensaria Victor Hugo a respeito?
Sabemos que no início o jovem ultramonarquista se identificava com a causa da Vendéia. Aos 17 anos, Hugo celebra


Hugo pregou a unificação da Europa, vendo-a como um passo decisivo em direção à república universal


numa ode dedicada a Chateaubriand os "mártires" que tinham dado seu sangue para lutar contra a república sacrílega instalada em Paris. Mas com a evolução das suas idéias políticas, o tom de Hugo se modifica. Em 1874, ele publica "Mil Setecentos e Noventa e Três", que tem entre os personagens principais um nobre implacável, o marquês de Lancenac, que mobiliza as simpatias feudais dos camponeses da Vendéia e os arrasta para crimes inomináveis em nome do trono e do altar. Em 1877, Hugo publica a segunda série da "Lenda dos Séculos", que contém um poema intitulado "Jean Chouan". Hugo continua admirando o heroísmo dos vendeanos, mas condena sem ambiguidade a sua causa: "Camponeses! Camponeses! Não tínheis razão/ Mas vossa recordação não apequena a França.../ Irmãos, nós todos combatemos; nós queríamos/ O futuro. Vós queríeis o passado, negros leões;/ O esforço que nós fazíamos para subir aos píncaros/ Ai de mim, vós o fazíeis para voltar ao abismo.../ Nós, para fechar o inferno; vós, para reabrir o túmulo". Não há dúvida: são elementos para uma reflexão ainda atual sobre os descaminhos do antiuniversalismo, quando ele assume a forma equivocada de uma volta a particularismos tradicionais. Terceiro, a democracia mundial é a melhor resposta aos riscos globais, porque só ela os enfrenta no próprio terreno em que eles se manifestam: o terreno internacional. Só uma democracia mundial pode fazer-nos participantes de todas as decisões que afetam os interesses do gênero humano, em vez de continuarmos sendo destinatários passivos de políticas adotadas à nossa revelia nos grandes centros de poder. É a grande idéia kantiana de uma república cosmopolita a única suscetível de assegurar uma paz perpétua. Assim como no tempo de Hugo a única alternativa aceitável ao império era a república, hoje a única alternativa possível ao império mundial é uma república mundial. De novo, o caminho foi mostrado por Victor Hugo. A evolução do jovem legitimista de 1820 em direção à república e à democracia é linear, sem nenhum retrocesso. E, desde a Revolução de 1848, ele falava em república universal. "A república universal é a última palavra do progresso", disse ele a Lamartine, chefe do governo provisório. Dias depois, termina um discurso improvisado feito quando se plantava uma árvore da liberdade na praça de Vosges, em frente à sua residência, com um grito veemente, muito aplaudido: "Viva a república universal!". Em 1867, o exilado de Guernesey entrevê o advento de uma grande nação: "Essa nação se chamará a Europa no século 20, e nos séculos seguintes, mais transfigurada ainda, será chamada a humanidade".

Terra, mar e ar
É evidente que para ele essa república só poderá ser democrática. É o que fica óbvio quando ele confronta a república terrorista de 1793, que oprimia os cidadãos através de uma ditadura da virtude, com a república da qual ele se declarava partidário, fundada no respeito aos direitos humanos, e não na guilhotina. E seria uma república social, porque para ele, mesmo que não fosse possível abolir o sofrimento humano, a abolição da pobreza era possível e necessária.
No Congresso da Paz, em Lausanne, em 1867, Hugo foi mais longe: essa república não seria somente social, seria socialista. "Cidadãos, o socialismo afirma a vida, a república afirma o direito. Um eleva o indivíduo à dignidade de homem, o outro eleva o homem à dignidade de cidadão. Existe acordo mais profundo?"
Utopia? Hugo pregou a unificação da Europa, vendo-a como um passo decisivo em direção à república universal, e isso na época era uma quimera. Hoje a Europa unida é uma realidade. É instrutivo saber como ele via, em 1855, os contornos dessa Europa: "O continente seria um só povo; as nacionalidades viveriam sua vida própria nessa vida comum. Não haveria mais guerra, e portanto não haveria mais exército... Uma moeda continental, única, tendo por ponto de apoio todo o capital europeu e por motor a atividade livre de 200 milhões de pessoas, substituiria e absorveria todas as absurdas variedades monetárias de hoje, efígies de príncipes, figuras da miséria".
Não, não é prudente ridicularizar as previsões de um autor que com 147 anos de antecedência anunciou o advento do euro. Ele profetizou ainda, num extraordinário poema, "O Sátiro", a conquista definitiva da terra, dos mares e dos ares, e anteviu, no final da "Lenda dos Séculos", não só o triunfo da navegação aérea mas também o advento das viagens espaciais. Por que não seria ele igualmente certeiro em sua antevisão de uma república universal, democrática e social?
Mas suponhamos que as grandes premonições do nosso profeta sejam realmente utópicas nas condições atuais. Nesse caso temos que fazer o que os psicanalistas fazem quando um paciente descarta uma interpretação verídica em nome da realidade: se isso acontece, é a realidade que é falsa, e não a interpretação. A realidade repressiva não pode ser usada como tribunal de última instância para refutar um pensamento libertador.
Mesmo que Lyotard tenha razão quando decreta a extinção dos grandes ideais iluministas -as chamadas "grandes narrativas"-, não é inútil invocá-los, porque sua rejeição pelo mundo moderno diz mais sobre este mundo que muitos conceitos extraídos da atualidade mais viva.
A relevância contemporânea de certas idéias pode estar em sua obsolescência, porque elas testemunham contra um presente que as transformou em anacronismos. Por esse critério, as guerras interétnicas e as agressões imperialistas que envergonham o segundo aniversário do nosso século não têm o poder de invalidar os sonhos de fraternidade universal de Hugo. É nosso presente que deve ser marcado com ferro em brasa por não ter sabido transformar esses sonhos em realidades históricas.
Quando o século 19 tinha dois anos, o Brasil era uma sociedade escravocrata. O pensamento de Hugo foi usado por nossos abolicionistas para defender a extinção do regime servil. Agora que é nosso século que tem dois anos, o que vemos em nosso país? A instituição monstruosa foi formalmente abolida, mas o que Nabuco chamava a "obra da escravidão" sobrevive em toda a sua infâmia: a pobreza abjeta em que vivem largas parcelas da população brasileira, composta em grande parte de descendentes dos antigos escravos. Não seria mal se fôssemos buscar no autor de "Os Miseráveis" a inspiração para erradicar essa terrível sequela da escravidão.
O "hélas" de Gide pesou durante cem anos sobre Hugo, como uma lápide funerária. Se não corrigirmos as injustiças que nos humilham diante do mundo, é bem possível que a lápide recaia sobre nós, sobre nosso povo, nossa terra, sobre o Brasil, "hélas".

Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de, entre outros, "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Cia. das Letras). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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