São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

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Zoológicos humanos


Obra que está saindo na França rastreia as exposições que foram sucesso de público em toda a Europa, no século 19, ao reunir em parques e cabarés os povos "exóticos" das colônias


Caio Caramico Soares
da Redação

Um "bando de animais, acompanhados por indivíduos não menos singulares". Assim um veículo da imprensa francesa definia, em 1877, uma das atrações de maior apelo popular daquele ano em Paris: a "exposição etnológica" de esquimós, entre outros povos "selvagens", no Jardim de Aclimatação. Esse é o tema do livro "Zoos Humains" [Zoológicos Humanos" que está saindo na França.
Criado no Bois de Boulogne, em 1859, por Napoleão 3º, o jardim tinha a princípio o objetivo de reunir espécimes "exóticos", como gorilas, girafas, cangurus, afirma o historiador Nicolas Bancel, 36, que é um dos cinco organizadores. Trazendo para a França a novidade, lançada pouco antes na Alemanha, de hospedar "povos puramente naturais", o local teve, entre 1877 e 1912, um salto no lucro e na afluência -o público dobrou logo no primeiro ano.
Professor na Universidade de Paris 11, Bancel explica na entrevista ao lado, concedida por telefone de Paris, que nem só de interesses comerciais se nutriam tais "zoológicos humanos". Espalhados por toda a Europa e EUA, eles atraíam também a atenção de antropólogos físicos, interessados em estudar e catalogar os resquícios do que, acreditava-se, seriam as "raças humanas inferiores", prestes a serem atropeladas pela marcha do "progresso" universal.
Reunindo artigos de 50 historiadores e antropólogos de diversos países, "Zoológicos Humanos" discute uma atividade que, camuflada na maioria dos manuais de história nacionais, teria tido papel crucial na construção do imaginário imperialista.
Desfilando, dançando e ostentando seus corpos nus a platéias "civilizadas", os nativos fizeram desses parques humanos os verdadeiros responsáveis pela legitimação da ideologia do racismo cientifico, afirma Bancel.
Hegemônica na Europa desde o início do século 19, a crença científica na desigualdade racial remonta aos esforços de nomes como o barão Georges Cuvier [1769-1832", zoólogo e estadista francês que foi pioneiro no estabelecimento da anatomia comparada e da paleontologia. Para Bancel, mesmo a antropologia cultural de um ícone como Bronislaw Malinówski [1884-1942, autor de obras como "Vida Sexual dos Selvagens", ed. Francisco Alves", preocupada que estava em reconstituir -sem prejulgar- as formas de vida não-ocidentais em seus contextos específicos, não chegou a se livrar totalmente dos clichês sobre o "outro" legados pelo evolucionismo do século 19. E, alerta o historiador, tais clichês tendem a ressurgir com força em momentos de crise como a atual -Bancel cita o exemplo do recente crescimento eleitoral da direita na Europa.

Por que a expressão "zoológico humano"? Há aqui alguma alusão ao conceito de "parque humano", do filósofo alemão Peter Sloterdijk?
Não, não há nenhuma relação com as idéias desse filósofo. "Zoológico humano" é uma expressão que aparece após a aparição desses "espetáculos antrozoopológicos", que tinham por função representar as populações exóticas das colônias européias do fim do século 19. Tais espetáculos podiam ocorrer literalmente em zoológicos, ao lado de animais de todo o tipo, bem como em cabarés. Há uma continuidade estrutural entre os zoológicos propriamente ditos, de animais, e esses espetáculos, que prolongavam o interesse de inventariar e reunir as espécies de seres vivos -no caso, as "raças humanas", como definidas pela antropologia física da época. A Escola de Antropologia de Paris irá utilizar esses espetáculos para realizar suas próprias medições antropométricas, o que dá uma legitimação científica a tais espetáculos, altamente rentáveis para seus realizadores e para os intermediários, que, com a anuência das administrações coloniais, "importavam" esses grupos.
Que tipo de envolvimento os governos nacionais tiveram nesse empreendimento?
Num período inicial, entre 1875 e 1885, os governos não tiveram participação ativa nessas iniciativas, que eram inteiramente privadas. Depois, começaram as exposições coloniais, em diferentes países da Europa, que vão apresentar as "cidades negras", e essas exposições tinham financiamento de dois tipos, privado, por comerciantes, e público, por Estados que se utilizavam desses eventos como uma espécie de vitrine da propaganda colonial. Essas exposições serviam à difusão da ideologia imperial e colonial da França e de outras metrópoles européias.
Esse quadro se altera a partir dos anos 1930. Por quê?
As autoridades coloniais começam a fazer a propaganda do "progresso" das colônias, em termos de saúde, de educação, de higiene. Apresentar populações canibais, quer dizer, ainda não civilizadas, passa a representar uma contradição em relação a esse discurso. Por exemplo, a grande exposição colonial de 1931, que teve 1 milhão de visitantes, já se recusou a apresentar a população dos indígenas da tribo Kanak, que seriam apresentados como "os Kanak canibais". Passa a haver uma disjunção entre os interesses dos Estados coloniais e os dos empreendedores desses espetáculos.
Por que eles atraíam tanto público?
De fato, essas apresentações tinham muito apelo popular. O público frequentador do Jardim de Aclimatação dobrou, chegando perto de 1 milhão de pessoas em 1877, ano em que ocorreu o primeiro desses espetáculos. Por que essa sedução? Sobretudo porque é algo exótico. O exotismo estava muito em voga naquele período, seja na literatura, nos espetáculos de teatro, em relatos de viagem, em conferências de exploradores. O segundo aspecto é que, com a ideologia da desigualdade racial, difundida pela antropologia física e usada como justificativa da conquista colonial, ir ao zoológico para ver o outro, o não-europeu, era um meio de se convencer de sua própria superioridade. A terceira razão do sucesso desse espetáculo tem a ver com as "transgressões" que esses eventos implicavam. Essa transgressão assumia múltiplas formas. A primeira era a da nudez, proibida para as pessoas de cor branca, mas autorizada para os povos colonizados. Uma outra era a sexualidade dos primitivos, vista como "animal", instintiva, que repugnava e ao mesmo tempo causava fascínio. Os europeus se encontravam submetidos a coações morais muito fortes naquele final de século 19 e viam nos povos colonizados uma liberdade enorme, que parece irracional, frenética, avessa às normas familiares e sexuais. Essa "exotização", claro, não tinha nenhuma consistência etnográfica, era completamente artificial.
Como os nativos eram tratados nos zoológicos? Eles sofriam violência física?
Não há muitos testemunhos a respeito, mas há indícios de maus-tratos, sobretudo no início. A partir do fim do século 19, porém, cresce um tipo de relação "contratual", monetária; os grupos de nativos passam a se assemelhar a trupes de atores, o que torna os sinais de maus-tratos menos evidentes. Por outro lado, a mortalidade foi sempre muito alta, de cerca de 50% em média, por causa de fatores climáticos, doenças, falta de condições de higiene. A violência, porém, era menos física do que simbólica; era, sobretudo, a violência do olhar dirigido a essas populações. Entre os que sobreviviam, era usual que ganhassem a vida ligados ao sistema de representação que desempenhavam nos zoológicos humanos, fazendo, por exemplo, mise-en-scènes em que podiam reconstituir eventos como a conquista colonial.
Por que os "primitivos" da Índia eram considerados "doces" e "graciosos" em relação aos de outras regiões?
Para os europeus, a civilização indiana estaria no ápice entre as civilizações não-européias. Ela era percebida como já dotada de certa complexidade social, de uma religiosidade desenvolvida, daí ter sido menos estigmatizada do que os povos da África negra.
Em artigo no "Le Monde Diplomatique", o sr. diz que os zoológicos humanos cristalizaram estereótipos sobre o "outro", o não-ocidental. Nesse sentido, como o sr. avalia o recente crescimento eleitoral da direita xenófoba na Europa? Ele tem relação com o racismo do século 19?
Para mim, não há dúvida de que sim. Essa é uma questão um tanto complexa. Todas as culturas têm esquemas que as estruturam. Os Estados modernos, entre 1850 e 1900, passaram por grandes transformações econômicas, políticas, tecnológicas, que operaram uma completa reviravolta no regime de sociabilidade e no modo de representar o universo social. A nação se tornou uma entidade social transcendente, que funda a comunidade -caso sobretudo da França, em que se reverencia a língua, a cultura nacional, a idéia de escolaridade obrigatória. A partir do momento em que essa comunidade está constituída, ela sente a necessidade de esboçar os contornos de um mundo... e de construir arquétipos que serão uma espécie de espelho invertido.
Creio que foi assim que se construíram as identidades nacionais. Não por acaso os zoológicos humanos são fenômenos do século 19: eles permitem fixar o estatuto da alteridade, da diferença, do "outro", em toda a sua diversidade, hierarquizando-a. Essa função identificatória, que está nas origens do racismo e permeia toda a nossa cultura popular e mesmo científica, foi constante ao longo de toda a colonização e, mesmo depois dela, ressurge constantemente na história da França e da Europa. Um exemplo é a França dos anos 30, onde, após a chegada da crise iniciada nos EUA em 1929, é deflagrada uma campanha extremamente violenta e racista contra os imigrantes argelinos. E essa figura arquetípica, que permite estigmatizar o "outro", ressurge a cada crise, como ocorre nos dias de hoje.
É possível, portanto, dizer que o preconceito étnico faz parte de uma espécie de inconsciente coletivo no imaginário do Ocidente?
Sim, trata-se de uma estrutura que pode se enfraquecer em algumas épocas, como ocorreu nos anos 1960, mas que nem por isso deixa de existir. Fica, sim, em estado de latência, sendo atualizada em situações de crise. É um pouco o que demonstra Daniel Goldhagen falando sobre o nazismo e os alemães, no livro "Os Carrascos Voluntários de Hitler" [Companhia das Letras]. Não tenho dúvida de que tais arquétipos têm um papel importante no recente crescimento eleitoral da extrema direita em países da Europa. A depreciação dos imigrantes, em especial dos árabes, é subjacente ao discurso dos direitistas franceses em prol da "segurança". Trata-se de uma situação muito perigosa e deletéria.


Zoos Humains
480 págs., 32 euros Nicolas Bancel, Pascal Blanchard, Gilles Boetsch, Eric Deroo e Sandrine Lemaire (orgs.). Ed. La Découverte.

Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados, em São Paulo, à livraria Fnac (tel. 0/xx/11/ 3097-0022) e, no Rio de Janeiro, à livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/21/2533-2237).



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