São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

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+ arte

O português Julião Sarmento, que está expondo em SP, devassa o desejo nas pinturas da série "Pornstar"

UM JOGO DE ESCONDE-ESCONDE

Juliana Monachesi
free-lance para a Folha

O crítico português Delfim Sardo, curador independente e professor na Universidade de Lisboa, já definiu as obras de Julião Sarmento como tentativas de capturar figuras em fuga que, por isso mesmo, escapam pelas margens da tela. Os trabalhos do artista, sejam pintura, desenho, fotografia ou vídeo, têm em comum a fragmentação, a perversidade com o espectador e um caráter tátil e algo sujo, indicando uma intencionalidade de seduzir e de perturbar.
O pintor das pulsões acrescentou mais algumas peças à coleção de imagens de desejo, incompletude e recalque que vem criando ao longo dos 26 anos de sua trajetória: são obras inéditas da série "Pornstar", que o artista português -um nome fundamental da arte contemporânea- apresentou em sala especial na Bienal de São Paulo e mostra, até 27 de julho, na galeria Fortes Vilaça (0/xx/11/3032-7066), em SP.
Nascido em 1948, em Lisboa, e portanto contemporânea dos igualmente consagrados artistas portugueses Paula Rego, Jorge Molder e Pedro Cabrita Reis, Sarmento bebeu na fonte do pós-conceitualismo dos anos 70 e da nova figuração dos 80, mas emergiu das influências com um discurso plástico próprio, legitimado no convite para participar de edições da Bienal de Veneza e da Documenta de Kassel, na Alemanha.
Na última edição da mostra italiana, apresentou a videoinstalação "Close", feita em parceria com o cineasta canadense Atom Egoyan, diretor de filmes perturbadores como "O Doce Amanhã" e "O Fio da Inocência". O vídeo, projetado em uma tela enorme, tinha de ser visto em um corredor estreito, que impossibilitava o distanciamento necessário para enxergar nitidamente a cena.
Fetichista e cruel, a imagem mostrava alguém cortando as unhas dos pés, os pedaços de unha caindo na boca de outra pessoa. A imagem em close do pé e da boca era acompanhada da narração dos percalços de uma relação amorosa. Em outro vídeo, "Doppelgänger" (2002), Sarmento novamente mascara identidades e aprisiona duas personagens à Lynch, uma no interior da outra.
"A referência ao desejo na obra de Sarmento não compreende apenas a representação de figuras e situações explicitamente ou potencialmente sexuais. Há uma dimensão do desejo presente antes, depois e além da figuração: solidão, memória, silêncio e escuridão. Uma dimensão secreta habitada por signos tão agudos que os sentidos quase não conseguem capturá-los, assim como a imaginação, surpresa por tais imagens fulminantes, quase não consegue retê-los", escreveu, a respeito do artista, Alexandre Melo, uma das principais autoridades em arte e cultura portuguesas.
De fato, em trabalhos anteriores às pinturas de "Pornstar", as personagens, sempre sem identidade (Sarmento afirma que, ao retirar-lhes os rostos, aproxima-se de sua essência), eram mais solitárias e, por vezes, mais esboçadas e apagadas, como na série "Secrets and Lies" (Segredos e Mentiras, 1999), em que figuravam corpos femininos atados pelos braços, soltos no centro da tela. O fragmento, na obra do artista, segundo Melo, acena ao que é interdito, representa a impossibilidade de representar o objeto do desejo, expressa sua desintegração. Um título emprestado ao diretor de cinema favorito de Sarmento, que falou ao Mais! por telefone de seu ateliê em Lisboa, poderia abarcar toda a sua obra: "Esse Obscuro Objeto do Desejo".

O seu trabalho é conhecido pelo caráter voyeurístico, quando na verdade trata mais do que não se pode ver. Como o sr. encara essa leitura da sua pintura?
Acho que essas coisas dependem do olhar de cada um. Mas creio que essa interpretação, muitas vezes dada, de ser um trabalho voyeurístico é devida justamente ao fato de que as obras escondem muito mais do que mostram, é porque se tenta ver aquilo que não está lá, ou seja, a obra em si não é um trabalho voyeurístico, voyeurístico é o trabalho de quem olha. Trata-se de um jogo de esconde-esconde, não é um trabalho óbvio, é um trabalho que se deixa adivinhar; não mostra nada, esconde tudo, mostra aquilo que está escondido ou mostra que estão coisas escondidas que não se mostram.
Ao optar por enquadramentos que fragmentam as figuras, o sr. pretende que o espectador complete a imagem ou acredita que o fragmento tem automia? Existe um fascínio pela poética do desmembramento na sua obra?
Sim, é claro. Quando eu digo que pretendo que o espectador faça isso ou aquilo, não pretendo nada. Quer dizer, meu trabalho já não é dogmático e muito menos programático, portanto, ao fim e ao cabo, se o espectador quiser completar a parte fragmentária, que complete, se não quiser, não completa. A única coisa que me interessa são detalhes, detalhes que têm a ver com o tempo e com o espaço. Um exemplo que talvez ilustre bem em termos conceituais aquilo que eu pretendo: se você está a falar com uma pessoa e de repente percebe pelo canto do olho uma pessoa a seu lado, você não viu, mas apercebeu-se de que se trata de uma pessoa; a única coisa que me interessa é isso, é esse relance de uma passagem, não a imagem da pessoa, mas o espaço deixado vazio por essa passagem. Portanto o que me interessa é uma noção de tempo entre dois espaços, são os fragmentos do antes e do depois, muito mais do que o tempo presente.
Por isso nunca a figura é representada em sua inteireza?
Exatamente, nunca está, porque no fundo a própria descrição dos personagens -em todas as obras, não só nas que estão nesta exposição em São Paulo mas no meu trabalho em geral- é sempre feita de gestos suspensos, de coisas que ou se passaram ou ainda estão por se passar.
Por que sua paleta vem se tornando mais e mais sintética a ponto de as novas pinturas serem feitas de preto sobre branco simplesmente?
Porque acho que basta. É assim: eu não falo muito, também falo só aquilo que acho que é o suficiente. No dia em que eu achar que, para as coisas que eu estou a fazer, é necessário utilizar mais cores, eu utilizarei, sem problema nenhum, ou seja, eu não tenho nenhum esquema moral ou ético quanto às coisas, simplesmente acho que, para o discurso que eu quero transmitir através do trabalho que faço, basta que seja preto e branco, não precisa ter cor. Se houver cor, é capaz de acrescentar qualquer coisa que não é estritamente necessária àquilo que eu quero e que é de certo modo uma espécie de engodo.
Suas pinturas estão se tornando cada vez mais abstratas, o preto ocupando cada vez mais a superfície da tela, mas nunca vão ser um Soulages... A permanência da figuração funciona como uma luta contra o formalismo?
Curiosamente, en passant, essa luta contra o formalismo -você disse muito bem, porque no fundo é uma luta, é uma opção- é feita utilizando as próprias armas do inimigo, se se puder dizer assim, porque essas pinturas são absolutamente realistas, embora não pareçam. Sabe como essas pinturas são feitas? É um slide, uma transparência, que é projetado em uma tela branca e é pintado por cima, ou seja, ele é fotográfico e você olha e não se apercebe disso. A própria realidade pode enganar. Mas, em termos absolutos, esses são meus quadros mais realistas. Podia contar um pouco mais da gênese da série "Pornstar", qual o motivo do título, existe intenção de formar uma narrativa com as pinturas ou são todas autônomas? Elas não formam narrativa nenhuma entre si, são todas entidades unas. O título "Pornstar" é por uma razão muito simples, é porque todas as fotografias são de revistas pornográficas, só que não se percebe, ou seja, toda a ação está escondida porque está contida na sua própria imagem, uma vez que a única coisa que é óbvia são os esquemas de contorno visual, tudo aquilo que se passa, passa-se dentro do preto, digamos, dentro do escuro, dentro daquilo que não se vê, mas são todas fotografias altamente obscenas, todas. Digamos que isso foi uma espécie de subtexto que eu resolvi dar à série, que obviamente sai desta noção da pornografia pura e dura, tem muito mais a ver com níveis sociológicos e até arquitetural.
Na videoinstalação feita em parceria com Atom Egoyan para a Bienal de Veneza (2001), havia uma evidente perversidade em relação ao espectador, que não conseguia se apoderar da imagem por completo. Pode-se dizer que o raciocínio desse trabalho é o mesmo das pinturas?
Acho que a perversidade é uma coisa que está sempre presente, é uma espécie de "segundo nome" do trabalho que eu faço. Há uma grande perversão, no bom sentido, obviamente, nas minhas obras, que passa pela ambiguidade dos temas, pela duplicidade do conceito, passa por uma quantidade de coisas significarem a mesma coisa e, portanto, não significarem, pelo fato de a pessoa pensar estar a ver uma coisa e estar a ver outra. E isso existe na peça que eu fiz com Egoyan porque, ao fim e ao cabo, é um trabalho entre dois artistas que de certa maneira utilizam ambos esse princípio da perversão. De fato, há uma grande afinidade entre o meu trabalho e o dele.
Então não existem diferenças substanciais de linguagem ao se modificarem os suportes da obra?
Não. O suporte para mim é uma ferramenta, única e exclusivamente. Diferentes instrumentos podem ser utilizados para canalizar o mesmo discurso, e é isso que eu faço. Os "media" que eu utilizo, sejam tinta e tela ou câmera digital e écran, são apenas canais diferentes para um discurso que é o meu.
O sr. tem optado bastante pelo suporte do vídeo...
Sim, eu apresentei recentemente na Lisson Gallery, em Londres, um filme chamado "Doppelgänger", que, como o nome indica, é sobre a noção do duplo: é um filme que se passa em dois écrans (deixe-me dizer já que é um bocado difícil para mim estar a verbalizar aquilo que não é verbalizável), um ao lado do outro, em que há duas personagens, duas mulheres que trocam de lugar uma com a outra. A partir de um instante o espectador perde um bocado a noção de quem é uma e de quem é outra, porque as duas fazem exatamente a mesma coisa, têm o mesmo tipo de diálogo e o mesmo tipo de discurso.
O sr. acompanha a arte brasileira? Identifica-se com a produção de quais artistas daqui?
Eu gosto de muita coisa na arte brasileira, mas não acompanho tanto porque os artistas brasileiros apenas nos últimos anos começaram a sair para o exterior, pelo menos para este lado. Mas conheço desde gerações mais antigas, como Hélio Oiticica e Lygia Clark etc. até as gerações intermédias, de Cildo a Tunga, até as gerações mais novas como Ernesto Neto, Adriana Varejão e os mais novinhos, como o Mauro Piva [que realiza exposição paralela à de Sarmento na Fortes Vilaça]. Mas, em relação a possíveis identidades entre a arte brasileira e a arte portuguesa, acho que não têm nada a ver uma coisa com a outra, e ainda bem, porque senão seria uma chatice.



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