São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

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Ponto de fuga

Captar o efêmero

Jorge Coli
especial para a Folha

Há um livro de Julio Verne (1828-1905) intitulado "O Castelo dos Cárpatos", ou antes, "O Castello dos Carpathos", como está sobre a capa vermelha da velha edição Bertrand. Foi traduzido para o português por Pinheiro Chagas, que lhe conferiu um estilo talvez mais saboroso do que o do próprio original. Um barão da Transilvânia apaixonou-se por uma cantora de ópera, a jovem Stilla. Ela possuía dons extraordinários, mas morreu em meio a uma representação. O barão consegue, assistido por um cientista genial e com meios que pareciam prodigiosos para a época, guardar a voz e a imagem em movimento de sua amada. Passava os dias em seu castelo, ouvindo e contemplando a cantora nas poucas árias que gravara.
Essa situação é a chave de um mistério tecido por Julio Verne, onde a poesia do imaginário se mescla às novidades técnicas: em 1896, quando o livro foi escrito, o fonógrafo engatinhava e a primeira projeção do cinematógrafo ocorrera apenas um ano antes. A essas duas invenções que modificariam de modo decisivo as relações do homem com o espaço e com o tempo, o gênio de Julio Verne associa o intenso amor que a ópera consegue provocar. Antes, só na memória melancólica se podia guardar a voz dos cantores que passaram. Agora, elas seriam preservadas para sempre. O registro visual associado ao canto, que surgiria a partir dos anos de 1930 com o cinema falado, foi parco, porém, em relação à ópera. É assim que, de Maria Callas (1923-1977), já bem mais tarde, restam raros testemunhos em filme.

Ectoplasma - A voz de Maria Callas reunia extensão, volume e beleza de timbre. Permitia-lhe cantar Kundry, de "Parsifal", e Lucia de Lamermoor; Isolda e Amina, da "Sonnambula", cujas tessituras e exigências vocais são extremas e opostas; Callas foi única ao fazê-lo, sem dúvida. Mas era ainda maior por outro motivo: intuía como ninguém o sentido musical e o sentido dramático daquilo que cantava. As gravações que fez em estúdio, ou as apreendidas ao vivo, revelam esse equilíbrio inefável entre música e drama. Todos os que a puderam ver em cena concordam com sua formidável força trágica.
Foi dirigida por Pasolini, num filme de 1970. O tema era Medéia: a grega Callas retomava então um mito grego, mas não cantava. Para "ver" o canto de Maria Callas restam apenas três registros com certa qualidade: uma noite de gala em Paris, de 1958, onde ela apresenta algumas árias e o segundo ato da "Tosca"; e dois recitais com orquestra, em Hamburgo, um em 1959, outro em 1962. Filmados em preto-e-branco para a televisão, foram reeditados em DVD pela EMI Classics. É pouco; nos recitais de Hamburgo Callas está frágil; no último, ela, temerosa, faz o nome do Pai, antes de cantar! Tropeça no texto da Habanera e do "Don Fatale". Sua carreira declinava. Mas não importa. É preciso vê-la, às vezes admirável de beleza, às vezes quase feia, os ombros estreitos, os braços longos, as mãos enormes, ser habitada, quase sem gestos, por seus personagens.

Retorno - Constantina Araújo (1922-1966), soprano brasileira que fez carreira na Europa, com triunfos no Scala, na Ópera de Paris, no Covent Garden, morreu cedo. Dela restaram fotografias, louvores na imprensa, lembranças. Sabia-se de uma gravação sua, para uma transmissão de rádio na Itália, um "Ernani", de Verdi. Não faz muito tempo, a marca Myto a lançou em CD. Nela, Mario del Monaco é um Ernani de voz atlética; Siepi afirma um Silva de autoridade incomparável e, Sereni, um Carlo musical e sedutor. Entre os três, ergue-se, poderoso, o timbre sensual de Constantina Araújo, com o seu vibrato nervoso que se estreita nos agudos.

Expectativa - Haveria uma outra gravação em fita de Constantina Araújo, ao lado de Valdengo e Rossi Lemeni, dirigidos por de Sabata: "L'Amore dei Tre Re", de Montemezzi, uma esplêndida ópera, bastante rara. Quando sairá ela em CD? (Para melhor conhecer Constantina Araújo: site http://manrico.tripod.com.br/ tributetoconstantinaaraujo19221966/).


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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