São Paulo, domingo, 14 de setembro de 1997.



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Despertar em Chicago

da Reportagem Local

Eram 17h de um domingo quando William Faulkner chegou como um dos representantes dos EUA (ao lado do poeta Robert Frost, que viria mais tarde) para participar do Congresso Internacional de Escritores, promovido em comemoração ao Quarto Centenário de São Paulo.
A cidade completava 400 anos e passava por uma temporada de festividades, acompanhando com atenção a crise política no país. Entre congressos de médicos, engenheiros e contadores, Faulkner era uma das estrelas da celebração.
O avião da companhia Braniff havia pousado uma hora antes do esperado. Faulkner matou o tempo no bar do aeroporto de Congonhas, esperando que alguém surgisse para apanhá-lo.
O crítico Osmar Pimentel (que morreu em 1989) chegou acompanhado de John Campbell e Leroy Benoit, membros do consulado norte-americano, e encontrou, como escreveria 12 anos mais tarde em um texto memorialístico, uma figura "imperturbável".
Faulkner estava encostado em uma pilastra, fumando cachimbo. Usava um terno marrom, um lenço branco no bolso e outro vermelho, guardado na manga esquerda do paletó, que ele tirava como "num passe de mágica" (escreveu na época um jornal), a fim de com ele poder enxugar o rosto. Estava bêbado.
Começava a experiência brasileira do autor de "Palmeiras Selvagens", que incluiria, ao longo dos dias, cobras, fazendas, entrevistas e sempre muito álcool.
Do apego ao uísque nasce uma de suas mais famosas lendas. A de que teria acordado na manhã de segunda-feira, em um quarto do Esplanada Hotel, que funcionava em um luxuoso prédio no centro da cidade, e, após olhar pela janela, perguntado: "Mas que diabos vim fazer em Chicago?". O caso permanece sem confirmação.
"Na verdade, ele passou o tempo todo embriagado, o que impediu que eu tivesse um contado maior com ele", recorda o crítico literário Wilson Martins, um dos participantes do congresso de 54.
Martins falou à Folha sobre outra particularidade do escritor. A extrema atração por cavalos: "Ele preferia estar em um haras do que em qualquer outro lugar da cidade discutindo literatura. Não participou de quase nada", conta, e ri ao evocar a lembrança.
"Sou um homem da terra que escreve histórias", dizia Faulkner para a imprensa paulista, que estranhava sua ausência nas atividades programadas que aconteciam na Biblioteca Municipal (hoje Biblioteca Mário de Andrade).
Faulkner, apesar de ser o vice-presidente do Congresso de Escritores (o ensaísta Paulo Duarte era o presidente), passou os primeiros três dias de sua estada no quarto -e no bar- do Esplanada. Saía apenas para jantares, como em um restaurante de comida russa, na rua Ana Cintra, no centro da capital, onde, para homenageá-lo, uma orquestra local tocou a folclórica canção "Saint Louis Blues". Faulkner, irônico, perguntou se alguém do consulado havia nascido no Alabama.
Outro encontro com intelectuais locais aconteceu em uma noite do dia 9 de agosto, no apartamento dos escritores Maria Lourdes Teixeira e José Geraldo Vieira, no Largo do Arouche. O casal ofereceu a Faulkner um coquetel.
Entre os convidados, os poetas João Cabral de Melo Neto e Péricles Eugênio da Silva Ramos e o cronista Rubem Braga.
Também participava um jovem promotor, filho da anfitriã, que, naquela tarde, havia tomado um trem da cidade de Jaboticabal (SP) para se encontrar com Faulkner: o romancista e ensaísta Rubens Teixeira Scavone, hoje com 72 anos, autor de dois livros sobre a obra do escritor e atual presidente da Academia Paulista de Letras.
"Quando cheguei à casa de minha mãe, o coquetel já havia começado. Faulkner estava calado em um canto do apartamento e eu me aproximei, falando de sua obra. Ficou um pouco surpreso com o que eu sabia sobre ele. Foi uma pessoa muito afável."
Scavone quis saber de Faulkner se o Nobel fora a maior emoção de sua vida. Segurando o cachimbo, o escritor respondeu que recebera o prêmio em dezembro de 1950 e, por isso, já não sabia. "Reconstituir sentimentos não é algo fácil", disse.
Em 1984, Scavone publicaria parte de sua conversa com o escritor no livro "Faulkner & Companhia" (ed. Soma). Em sua casa, guarda ainda um volume de contos faulknerianos, editado nos anos 50, e que traz, em uma de suas páginas iniciais, uma assinatura em letra pequena: "William Faulkner, Sao Paolo, 1954."


Continua à pág. 5-5


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