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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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+ cultura

Os artistas alemães, que inauguram mostra em São Paulo na próxima quinta-feira, discutem a relação entre memória, cidade e Holocausto

FACHADAS DO ESQUECIMENTO

Lucrecia Zappi
free-lance para a Folha

Em "Tristes Trópicos", no capítulo intitulado "São Paulo", Lévi-Strauss afirma que a cidade oscila entre o frescor do novo e a decadência que, sem a auto-reflexão, não atinge a própria maturidade. Quase 60 anos depois, a situação parece ter se invertido. Talvez, numa tentativa de aliviar o peso da tradição, muitos artistas europeus, como os alemães Horst Hoheisel e Andreas Knitz, se impressionam com essa cidade em perpétua construção, numa tentativa de conciliar a paisagem natural com o resgate de uma memória presente. Na quinta-feira, dia 18, Horst e Andreas, o argentino Marcelo Brodsky e a brasileira Fulvia Molina inauguram a exposição "MemoriAntonia", no Centro Universitário Maria Antônia (tel. 0/ xx/ 11/3237-1815). O local, que abrigou a antiga sede da Faculdade de Filosofia da USP, é considerado símbolo da resistência ao militarismo. A série de instalações criada pelos artistas é composta de objetos recuperados da demolição parcial de um dos edifícios, que passa por uma reforma estrutural [trata-se da futura sede do IAC, Instituto de Arte Contemporânea]. Na entrevista a seguir, Hoheisel e Knitz -que conceberam a instalação "Pássaro Livre", exibida na Pinacoteca até a semana passado- falam de São Paulo, da repercussão do trabalho deles na Alemanha e das representações da memória.
Como a obra de vocês se insere no contexto de uma cidade dinâmica como São Paulo, que tende a olhar para o futuro, e não para o passado?
Andreas Knitz - Como arquiteto, eu gosto muito de São Paulo porque existem tantas imagens diferentes, tudo é tão rápido. A cidade não tem nenhuma espécie de memória, acho que as pessoas não gostam de pensar no que aconteceu talvez há cinco anos ou antes. Todos vivem no agora. Por causa da história alemã, estamos acostumados a pensar o passado e usá-lo para ir para o futuro. É outro ponto de vista. No Brasil, penso que essa questão é abordada de uma forma mais imediata, como a memória do que é familiar às pessoas, não uma memória de peso histórico. Eu estava conversando com o Rodrigo Naves e o Nuno Ramos e eles me perguntaram: "O que você quer com a memória? Ninguém está interessado na memória!" (risos).
Horst Hoheisel - Foi o tema de um workshop que fizemos em São Paulo. Um dos participantes trouxe fotos de edifícios comerciais da cidade, feitas há dois anos. Foi aos locais procurar os prédios retratados, mas já estavam completamente diferentes ou fechados. É um ótimo exemplo para mostrar o ritmo de São Paulo. Em 2001, fui a uma rua chamada Ladeira da Memória, que sempre vai para baixo!
Em São Paulo, fachadas neoclássicas continuam sendo construídas, em pleno século 21. Você acredita que esse revestimento decorativo seja uma busca sistemática de uma memória sem passado?
Knitz -
Poderia ser. Eu não gosto dessas fachadas que evocam a história. Esses edifícios tentam contar uma história que nunca tiveram, eles tentam mentir, como na Alemanha, onde muitas cidades foram bombardeadas e os edifícios neoclássicos foram destruídos e depois totalmente reconstruídos, como réplicas. É uma tentativa de esquecimento, que ocorreu em grandes cidades, como Frankfurt. Fui para o litoral norte de São Paulo, onde há casas que imitam castelos de 200 anos atrás, mas que têm na verdade, quando muito, 20 anos. Terrível.
Hoheisel - Na Maria Antônia temos a mesma situação dos edifícios da Gestapo em Weimar: tudo foi demolido, só sobrou a fachada.
Diversos artistas alemães, desde o período dos pós-guerra, tiveram a preocupação de incorporar em suas obras o peso da história, de Beuys a Kiefer. Como é trabalhar em cima dessa herança?
Hoheisel -
Parece que os artistas alemães começaram com toda essa discussão da memória do holocausto em Berlim com Eisenman. Eu comecei mais cedo, ao final dos 80. Dez anos depois do memorial de Berlim ter sido criado, eu penso que a situação se tornou perigosa.
Por que perigosa?
Hoheisel - Porque eles buscam a grande identidade alemã, que foi rompida. Muitas pessoas pensam que, após 60 anos terem se passado desde o término da guerra, temos que olhar apenas para a frente. Ao mesmo tempo há muitos neonazistas na Alemanha. Há três anos, em Kassel, quando eu fiz uma réplica invertida de uma fonte que foi destruída, em memória dos judeus, os "neonazis" chegaram a atacar a minha família, e estivemos por mais de um ano sob a proteção do Estado, porque eu frequentemente estou nas discussões públicas sobre as formas de memoriais.
Quais são suas principais influências?
Hoheisel -
Estou olhando daqui da janela da minha casa os "Sete Mil Carvalhos" [intervenção feita na Documenta de 1982,em Kassel, que ainda pode ser vista em diversos lugares da cidade], de Beuys, que é um trabalho muito bonito. Eu gosto do aspecto social de sua arte.

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