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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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TRADUÇÃO DA "ILÍADA", DE HOMERO, EVIDENCIA O RIGOR EXTREMO E A MEMÓRIA PRODIGIOSA DO POETA DE "GALÁXIAS"

UM MESTRE NO HORIZONTE DO IMPREVISTO

por Trajano Vieira

Caro editor do Mais!, você me pede um depoimento sobre minha participação no trabalho de tradução que Haroldo de Campos fez da "Ilíada". Não sei se serei capaz de corresponder à sua solicitação, pois, além de se estender por 12 anos, essa atividade não obedeceu a uma metodologia regular. Haroldo surpreendia sempre. Preservo a folha, com dedicatória, de sua "primeira lição de casa" (depois da primeira aula de grego!), "do fileleno aluno", datada de 28 de maio de 1990: os 16 primeiros versos da "Ilíada" (faltavam, pois, pouco menos de 16 mil, para a conclusão da obra). Como apêndice, os cinco versos iniciais da "Odisséia" (ele faria pelo menos mais duas versões do começo desse poema, em épocas diferentes: 1) Do homem poliastuto, Musa, os feitos canta; 2) Do homem poliengenhoso, Musa, dá-me conta...). Conversávamos quase diariamente sobre Homero e muitos outros assuntos. Embora se autodenominasse um "não-especialista", um "desespecialista", estava bem informado sobre os estudos homéricos. Minha participação em seu projeto se restringiu a organizar o material que me enviava por fax e a comentar algumas passagens. Seria difícil lembrar todas as edições críticas com que trabalhou e o número exato de traduções poéticas que tivemos em mãos. Fomos comprando ao longo dos anos muitas obras, algumas em lugares inesperados. Achamos, num sebo australiano, a edição de Hermosilla, tão cara a Leautréamont. Haroldo tinha predileção por duas, a de Voss, para o alemão, e a de Odorico Mendes. Não exagero em dizer que todas as folhas de seus manuscritos contêm, além da tradução, anotações filológicas, lembretes para eventuais comentários, citações em grego, latim, alemão, inglês, italiano, francês. O modo como Haroldo preenchia a folha branca surpreenderá os poetas do futuro. Todas as direções do papel trazem a marca de sua caligrafia incomum, algumas vezes de cabeça para baixo. Frequentemente as palavras multicores configuram um labirinto sinuoso e indecifrável. Redigia no papel que estivesse à mão, sem desprezar os já escritos.

Orson Welles e Cronos
Creio que ele manteve esse hábito até o final da vida: certa manhã, convocou-me para uma reunião de trabalho no hospital. Com sua generosidade de sempre, queria que eu lhe lesse a tradução que preparo do "Édipo em Colono". Tentei ponderar que talvez não fosse o momento mais propício, mas ele insistiu. E seus amigos sabem o que quero dizer com "insistiu": nesses instantes, sua fisionomia podia perder os traços de Orson Welles para ganhar ares do filho de Cronos. Foram três horas inesquecíveis, num quarto que começava a parecer uma biblioteca: o último número da "Magazine Littéraire" e do "Monde Diplomatique", alguns volumes de historiografia latina lidos e comentados, presentes de Ivan [filho de Haroldo de Campos], com quem ele planejava escrever sobre o assunto (aliás, deixou-nos, entre seus numerosíssimos inéditos, o poema "Visitando Domus Aurea", que percorreu com o filho, químico e admirador de Salústio.
Não só: deixou também versões de poemas latinos de autores obscuros, dignos de figurar nas páginas de Huysmans). A maior parte do tempo foi Haroldo quem me leu o conteúdo de um caderno encapado em couro bruno (palavra que gostava de empregar) que Carmen lhe dera em Israel. Cada página exibia estratos de obras diferentes. A principal (se é possível dizê-lo) referia-se ao estudo introdutório da vasta Antologia Sincrônica da Poesia Brasileira que começamos a organizar. Haroldo girava a folha em outra direção e descobria traduções da poesia nahuatl (chegou a compor um belo acervo sobre o assunto, a respeito do qual se correspondia com vários especialistas), parte de um livro que, se não me engano, será publicado no México.
Em outros momentos, encontrava material de mais uma obra que desenvolvia ultimamente, para a qual já havia escrito a introdução e feito traduções, intitulada "Hélas, Victor Hugo", referência à famosa expressão cunhada por Gide para uma enquete da revista "L'Ermitage". Passagens de santo Agostinho e poemas egípcios (Haroldo trouxera muitos livros sobre esse tema da Alemanha, quando participou de um congresso a respeito de Humboldt. Posteriormente, importou o monumental dicionário egípcio-inglês de Oxford) também fazem parte desse caderno precioso. Falou-me de sua intenção de examinar a métrica do "Messiada", de Klopstock. Estava animado com a edição próxima de um livro de poemas de Augusto de Campos na coleção que dirigia na Perspectiva ("meu irmão é o maior poeta visual que conheço; o maior tradutor de poesia também", repetiu-me na ocasião).
É impossível manter a linearidade quando se fala de Haroldo. Essa capacidade de transformar os espaços mais banais (e tristes) em ambiente de trabalho era uma constante em sua vida. Certa vez, aconteceu-me encontrá-lo em Nova York. Ele estava de passagem na cidade, em direção a Montreal, onde receberia o título de professor honoris causa. No hall do hotel em que costumava se hospedar, nas imediações da Gotham Book Mart (como não?), camareiros lhe traziam faxes, alguns, se não me falha a memória, de Charles Bernstein, com quem Haroldo passara a tarde, num bate-papo sobre poesia felizmente gravado. Parece que Bernstein respondia a uma consulta sobre trechos de um poema difícil, transcriado a pedido de David Jackson, conforme me informou há pouco o professor de Yale. "Em lugar de palavras cruzadas, traduzo Homero nas salas de espera dos consultórios", costumava ironizar. Não só. Revejo-o, numa poltrona de avião, traduzindo e anotando "Sein und Zeit" ["Ser e Tempo", de Heidegger]!

"Em lugar de palavras cruzadas, traduzo Homero nas salas de espera dos consultórios", costumava ironizar; não só: revejo-o, numa poltrona de avião, traduzindo e anotando "Ser e Tempo", de Heidegger

Poesia via fax
Imagino que ninguém tenha se servido de um aparelho de fax como ele. Suas remessas não se restringiam a Homero. Certa vez, mencionei uma referência que Byron fazia a Humboldt no "Don Juan". Horas depois, enviou-me esta pequena jóia de coloquialismo irônico: "Humboldt, viajor primeiro, não porém O último, se é acurado o que relata-se, Inventou do nome eu não lembro bem, Nem da sublime descoberta a data-, Um etéreo instrumento que convém A medir a atmosfera em forma exata, Um intensômetro dos graus do azul: Ó Lady Dafne, dá que eu te mesure!" Preparava uma antologia de poesia italiana, que desejava incluir na edição brasileira de um livro de seu amigo Piero Boitani ("não conte ao Jacó, pois quero lhe fazer surpresa"). Como sempre, seu trabalho excedeu o planejado: aprofundou-se tanto no assunto que suas versões de poemas de D'Annunzio, Pascoli, Foscolo, Carducci ultrapassam o tema do livro do professor da [Universidade La] Sapienza. Havia elaborado uma cronologia detalhada sobre esses autores. Sua generosidade era ilimitada. Manifestava-a mesmo à distância. Numa noite, recém-chegado a Atenas, ao abrir meus e-mails, deparei-me com sua tradução do poema de Kaváfis sobre um cortejo dionisíaco. Do poeta grego, diga-se de passagem, Haroldo verteu um número de poemas suficiente para compor um livro. Engana-se quem imaginar que, no âmbito dos neogregos, sua produção se resumia a esse escritor. Solomós e Elytis também faziam parte do seu rol de interesses. Não sei por que me vem à mente outra de suas traduções não-publicadas: "Sebastião Sonhando", de Georg Trakl. E como um sonho leva a outro e acordar é duro, outro inédito, a tradução de "Booz Adormecido" de Victor Hugo, onde Haroldo encontra rima para a palavra "Eurrym'mendadus". Como se pode ver, caro editor, fui além do que me solicitou, mas seria impossível proceder de outra forma. Haroldo era (é) mundos inúmeros. Tinha memória prodigiosa. Dançava, fosfórico, entre as idéias. Havia suspendido, por ora, a publicação de respostas a seus críticos, apesar de elas estarem redigidas. Dizia que não podia perder tempo, pois havia muito trabalho pela frente. Entre eles, um estudo sobre "A Carne", em razão do qual dialogava com colegas de profissão sobre questões jurídicas da época de Júlio Ribeiro.

"Chegou a hora"
Em nossa última conversa, pediu que eu separasse seus livros de grego, para realizarmos um antigo projeto: a tradução do "Agamêmnon", de Ésquilo. "Chegou a hora", acrescentou. Como sempre, rigorosíssimo, havia anos Haroldo preparava-se para mais essa empreitada (já havia resolvido o complexo trocadilho com o nome de Helena, presente na peça). Adquiríamos, em viagens, material sobre o drama grego. Um desses livros, pelo qual Haroldo nutria interesse especial, era a tradução de Robert Browning. "Não se esqueça da tradução de Browning", foi um dos últimos pedidos que me fez. Desde então sua gata recolheu-se no andar superior do sobrado da rua Monte Alegre. Não será fácil, Lady Bi, nada fácil!


Trajano Vieira é professor de literatura grega na Universidade Estadual de Campinas e tradutor de "Ájax" e "Édipo Rei", de Sófocles, e "Prometeu Prisioneiro", de Ésquilo (ed. Perspectiva).


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