|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TRADUÇÃO DA "ILÍADA", DE HOMERO, EVIDENCIA O RIGOR EXTREMO
E A MEMÓRIA PRODIGIOSA DO POETA DE "GALÁXIAS"
UM MESTRE NO HORIZONTE DO IMPREVISTO
por Trajano Vieira
Caro editor do Mais!, você me pede um depoimento sobre minha participação no trabalho de
tradução que Haroldo de Campos fez da "Ilíada". Não sei se serei capaz de corresponder à
sua solicitação, pois, além de se estender por 12 anos, essa atividade não obedeceu a uma metodologia regular.
Haroldo surpreendia sempre. Preservo a folha, com dedicatória, de sua "primeira lição de casa" (depois da primeira aula de grego!), "do fileleno aluno", datada de 28
de maio de 1990: os 16 primeiros versos da "Ilíada" (faltavam, pois, pouco menos de 16 mil, para a conclusão
da obra). Como apêndice, os cinco versos iniciais da
"Odisséia" (ele faria pelo menos mais duas versões do
começo desse poema, em épocas diferentes: 1) Do homem poliastuto, Musa, os feitos canta; 2) Do homem
poliengenhoso, Musa, dá-me conta...).
Conversávamos quase diariamente sobre Homero e
muitos outros assuntos. Embora se autodenominasse
um "não-especialista", um "desespecialista", estava
bem informado sobre os estudos homéricos. Minha
participação em seu projeto se restringiu a organizar o
material que me enviava por fax e a comentar algumas
passagens. Seria difícil lembrar todas as edições críticas
com que trabalhou e o número exato de traduções poéticas que tivemos em mãos. Fomos comprando ao longo dos anos muitas obras, algumas em lugares inesperados. Achamos, num sebo australiano, a edição de
Hermosilla, tão cara a Leautréamont.
Haroldo tinha predileção por duas, a de Voss, para o
alemão, e a de Odorico Mendes. Não exagero em dizer
que todas as folhas de seus manuscritos contêm, além
da tradução, anotações filológicas, lembretes para eventuais comentários, citações em grego, latim, alemão, inglês, italiano, francês. O modo como Haroldo preenchia
a folha branca surpreenderá os poetas do futuro. Todas
as direções do papel trazem a marca de sua caligrafia incomum, algumas vezes de cabeça para baixo. Frequentemente as palavras multicores configuram um labirinto sinuoso e indecifrável. Redigia no papel que estivesse
à mão, sem desprezar os já escritos.
Orson Welles e Cronos
Creio que ele manteve esse
hábito até o final da vida: certa manhã, convocou-me
para uma reunião de trabalho no hospital. Com sua generosidade de sempre, queria que eu lhe lesse a tradução que preparo do "Édipo em Colono". Tentei ponderar que talvez não fosse o momento mais propício, mas
ele insistiu. E seus amigos sabem o que quero dizer com
"insistiu": nesses instantes, sua fisionomia podia perder
os traços de Orson Welles para ganhar ares do filho de
Cronos. Foram três horas inesquecíveis, num quarto
que começava a parecer uma biblioteca: o último número da "Magazine Littéraire" e do "Monde Diplomatique", alguns volumes de historiografia latina lidos e comentados, presentes de Ivan [filho de Haroldo de Campos], com quem ele planejava escrever sobre o assunto
(aliás, deixou-nos, entre seus numerosíssimos inéditos,
o poema "Visitando Domus Aurea", que percorreu
com o filho, químico e admirador de Salústio.
Não só: deixou também versões de poemas latinos de
autores obscuros, dignos de figurar nas páginas de
Huysmans). A maior parte do tempo foi Haroldo quem
me leu o conteúdo de um caderno encapado em couro
bruno (palavra que gostava de empregar) que Carmen
lhe dera em Israel. Cada página exibia estratos de obras
diferentes. A principal (se é possível dizê-lo) referia-se
ao estudo introdutório da vasta Antologia Sincrônica
da Poesia Brasileira que começamos a organizar. Haroldo girava a folha em outra direção e descobria traduções da poesia nahuatl (chegou a compor um belo acervo sobre o assunto, a respeito do qual se correspondia
com vários especialistas), parte de um livro que, se não
me engano, será publicado no México.
Em outros momentos, encontrava material de mais
uma obra que desenvolvia ultimamente, para a qual já
havia escrito a introdução e feito traduções, intitulada
"Hélas, Victor Hugo", referência à famosa expressão
cunhada por Gide para uma enquete da revista "L'Ermitage". Passagens de santo Agostinho e poemas egípcios (Haroldo trouxera muitos livros sobre esse tema da
Alemanha, quando participou de um congresso a respeito de Humboldt. Posteriormente, importou o monumental dicionário egípcio-inglês de Oxford) também
fazem parte desse caderno precioso. Falou-me de sua
intenção de examinar a métrica do "Messiada", de
Klopstock. Estava animado com a edição próxima de
um livro de poemas de Augusto de Campos na coleção
que dirigia na Perspectiva ("meu irmão é o maior poeta
visual que conheço; o maior tradutor de poesia também", repetiu-me na ocasião).
É impossível manter a linearidade quando se fala de
Haroldo. Essa capacidade de transformar os espaços
mais banais (e tristes) em ambiente de trabalho era uma constante em sua vida. Certa vez, aconteceu-me encontrá-lo em Nova York. Ele estava de passagem na cidade,
em direção a Montreal, onde receberia o título de professor honoris causa. No hall do hotel em que costumava se hospedar, nas imediações da Gotham Book Mart
(como não?), camareiros lhe traziam faxes, alguns, se
não me falha a memória, de Charles Bernstein, com
quem Haroldo passara a tarde, num bate-papo sobre
poesia felizmente gravado.
Parece que Bernstein respondia a uma consulta sobre
trechos de um poema difícil, transcriado a pedido de
David Jackson, conforme me informou há pouco o professor de Yale. "Em lugar de palavras cruzadas, traduzo
Homero nas salas de espera dos consultórios", costumava ironizar. Não só. Revejo-o, numa poltrona de
avião, traduzindo e anotando "Sein und Zeit" ["Ser e
Tempo", de Heidegger]!
"Em lugar de palavras cruzadas, traduzo Homero nas salas de espera dos consultórios", costumava ironizar; não só: revejo-o, numa poltrona de avião, traduzindo e anotando "Ser e Tempo", de Heidegger
Poesia via fax
Imagino que ninguém tenha se servido de um aparelho de fax como ele. Suas remessas não
se restringiam a Homero. Certa vez, mencionei uma referência que Byron fazia a Humboldt no "Don Juan".
Horas depois, enviou-me esta pequena jóia de coloquialismo irônico:
"Humboldt, viajor primeiro, não porém
O último, se é acurado o que relata-se,
Inventou do nome eu não lembro bem,
Nem da sublime descoberta a data-,
Um etéreo instrumento que convém
A medir a atmosfera em forma exata,
Um intensômetro dos graus do azul:
Ó Lady Dafne, dá que eu te mesure!"
Preparava uma antologia de poesia italiana, que desejava incluir na edição brasileira de um livro de seu amigo Piero Boitani ("não conte ao Jacó, pois quero lhe fazer surpresa"). Como sempre, seu trabalho excedeu o
planejado: aprofundou-se tanto no assunto que suas
versões de poemas de D'Annunzio, Pascoli, Foscolo,
Carducci ultrapassam o tema do livro do professor da
[Universidade La] Sapienza. Havia elaborado uma cronologia detalhada sobre esses autores. Sua generosidade era ilimitada. Manifestava-a mesmo à distância. Numa noite, recém-chegado a Atenas, ao abrir meus e-mails, deparei-me com sua tradução do poema de Kaváfis sobre um cortejo dionisíaco.
Do poeta grego, diga-se de passagem, Haroldo verteu
um número de poemas suficiente para compor um livro. Engana-se quem imaginar que, no âmbito dos neogregos, sua produção se resumia a esse escritor. Solomós e Elytis também faziam parte do seu rol de interesses. Não sei por que me vem à mente outra de suas traduções não-publicadas: "Sebastião Sonhando", de
Georg Trakl. E como um sonho leva a outro e acordar é
duro, outro inédito, a tradução de "Booz Adormecido"
de Victor Hugo, onde Haroldo encontra rima para a palavra "Eurrym'mendadus".
Como se pode ver, caro editor, fui além do que me solicitou, mas seria impossível proceder de outra forma.
Haroldo era (é) mundos inúmeros. Tinha memória
prodigiosa. Dançava, fosfórico, entre as idéias. Havia
suspendido, por ora, a publicação de respostas a seus
críticos, apesar de elas estarem redigidas. Dizia que não
podia perder tempo, pois havia muito trabalho pela
frente. Entre eles, um estudo sobre "A Carne", em razão
do qual dialogava com colegas de profissão sobre questões jurídicas da época de Júlio Ribeiro.
"Chegou a hora"
Em nossa última conversa, pediu que eu separasse seus livros de grego, para realizarmos um antigo projeto: a tradução do "Agamêmnon",
de Ésquilo. "Chegou a hora", acrescentou. Como sempre, rigorosíssimo, havia anos Haroldo preparava-se
para mais essa empreitada (já havia resolvido o complexo trocadilho com o nome de Helena, presente na peça). Adquiríamos, em viagens, material sobre o drama
grego. Um desses livros, pelo qual Haroldo nutria interesse especial, era a tradução de Robert Browning. "Não
se esqueça da tradução de Browning", foi um dos últimos pedidos que me fez. Desde então sua gata recolheu-se no andar superior do sobrado da rua Monte
Alegre. Não será fácil, Lady Bi, nada fácil!
Trajano Vieira é professor de literatura grega na Universidade Estadual de Campinas e tradutor de "Ájax" e "Édipo Rei", de Sófocles, e
"Prometeu Prisioneiro", de Ésquilo (ed. Perspectiva).
Texto Anterior: Percebi que a coisa era grave quando... Próximo Texto: A eficácia do ícone Índice
|