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EM ENTREVISTA DADA POUCO ANTES DE MORRER, O CRÍTICO DESTACA A IMPORTÂNCIA DA SEMIÓTICA PARA COMPREENDER A ARTE, A POESIA E O CINEMA
A EFICÁCIA DO ÍCONE
Renato Becker
especial para a Folha
A conversa com Haroldo de Campos tinha o objetivo de esboçar as significações do mundo por
meio da arte para, depois, entender essa relação
como modelo fundamental na construção
comportamental das sociedades.
Ainda no início, disse a ele que a entrevista seria publicada na revista "Espresso", uma revista sobre cafés finos
e os seus diversos ambientes de consumo, e ele mostrou
um admirável conhecimento etimológico da palavra
café, das propriedades alimentares, dos quadros de
Portinari homenageando o café, e, se não parássemos,
talvez passássemos o dia todo no tema.
Quando entramos no assunto previsto para a entrevista, ele começou com uma contextualização das origens
dos pensamentos em comunicação e semiótica para
discutir, em seguida, as noções de criatividade, referencial, condicionamento, estética, arte concreta e, por fim,
realidade virtual.
A conversa, da qual se reproduz um trecho a seguir,
aconteceu ao longo de três semanas, entre maio e junho
deste ano, tanto pessoalmente como por troca de faxes.
Como o senhor explica comunicação e semiótica?
As disciplinas comunicação e semiótica [objeto do
curso de pós-graduação da PUC-SP] procedem de
matrizes diversas. A semiótica foi fundada por Charles Sanders Peirce (1839-1914), o maior filósofo americano e um dos maiores do seu tempo, falando-se
em termos mais amplos. De formação variada, aluno de Harvard, Peirce era químico, meteorologista,
matemático e, sobretudo, filósofo, de certa forma ligado à posteridade hegeliana.
Suas peculiaridades de caráter e conduta extravagante acharam por incompatibilizá-lo com a puritana sociedade da Nova Inglaterra e, apesar de ter começado a carreira promissoramente, a partir de uma
certa altura de sua vida as universidades americanas
lhe fecharam as portas. Teve de sobreviver como
conferencista avulso e escritor independente. A ele
se deve o pragmatismo, que se costuma atribuir, sem
maiores considerações, a seu amigo filósofo William
James. Após sua morte, embora tardiamente (entre
1931 e 1958), a universidade norte-americana acabou
curvando-se à sua grandeza.
Harvard editou em oito volumes seus escritos, que
ele em vida teve de dispersar por diferentes pequenas revistas e publicações avulsas.
Mais recentemente foi lançado um novo projeto,
mais completo, de edição prevista para cerca de 20
volumes, e que está sendo levado a efeito sob a tutela
da Associação Internacional de Semiótica, fundada
por Jakobson, de que Décio Pignatari, eu e Maria Lúcia Santaella ocupamos, sucessivamente, uma das
vice-presidências.
O filósofo, a quem Décio Pignatari chamou "Marx
do signo", criou a semiótica, assentando-se numa
divisão tricotômica do signo (verbal ou não-verbal),
que abrange ícones (pense-se na metáfora, tão empregada na poesia), índices (ou sinais dêiticos, como, por exemplo, uma biruta de aeroporto, que assinala a direção dos ventos) e símbolos (entidades
mais complexas, que servem à linguagem lógico-discursivo-conceitual).
Essas três manifestações sígnicas não são estáticas,
fechadas em si mesmas, monadológicas, mas dinâmicas, dialéticas (assim a metáfora verbal, antes
mencionada, tem elementos com estatuto simbólico
e participa da natureza do ícone; a configuração ou
desenho coreográfico da sintaxe de uma língua é um
diagrama e, como tal, participa das condições de ícone e de símbolo).
A teoria triádica de Peirce, nesse sentido dialético de
raiz hegeliana, supera as limitações da escola francesa de estudo dos signos, promovida pelo grande linguista genebrino Saussure (1857-1913), que é binária,
trabalhando com as categorias de significante e significado.
Já a teoria da comunicação deriva, entre outras, fontes, sobretudo de natureza científico-matemática, da
cibernética de Norbert Wiener; envolve a polarização ordem (homeostisis)/desordem (caos, entropia,
ruído num processo intercomunicativo).
Para a Gestalt, o processo de significação das coisas se dá
por meio da associação. Se considerada como correta essa afirmação, não estará um artista submetido à criação
do novo sempre em referência ao anterior?
Literatura se faz e se retroalimenta ("feedback") de
literatura. O novo é sempre um acréscimo (uma nova combinação de elementos?) ao acervo do passado. Este é revivificado (repristinado) pela mirada
sincrônica do presente.
Em outra linha de idéias: no plano da sintaxe, do
poema e de outros produtos artísticos como os do cinema, a associação gestáltica de formas (por justaposição) é o que explica o "método ideogrâmico",
em poemas de Ezra Pound ou a montagem no cinema de Einsenstein e no teatro dialético de Brecht.
O senhor considera que a fragmentação da mensagem visual é o que justifica sua atratividade, pois não exige
atenção concentrada do receptor, ou de fato a informação visual, preservada de seu valor estético original, é
mais encantadora que a grafia linear?
O cérebro humano tem dois hemisférios: um digital
(linear, associação por sequência de dígitos), outro
analógico (associação por justaposição de imagens).
A criatividade dos japoneses nas artes (não importando, aqui, o decisivo contributo chinês à escrita nipônica) pode ser, talvez, explicada pelo fato de que
os filhos do sol nascente se utilizam, em sua comunicação escrita, de uma combinação de ideogramas
(Kanji, analógicos) e de um silabário alfabético-digital (hiragana).
Assim, desde a infância, faz o japonês, necessariamente, um aprendizado caligráfico analógico-digital, que manipula fragmentos de visualidade (pictogramas, complexificados em ideogramas) e sequências digitais (a escrita hiragana). Talvez, na era computacional em que vivemos, essa, por assim dizer,
ductilidade ou abertura tradicional da mente nipônica possa servir de diretiva.
Como é um poema verbivocovisual?
Um poema verbivocovisual é aquele que tira partido
de signos analógico-visuais e também (de maneira
redutiva) de signos digitais (sintáticos). A dimensão
vocal-frasal, a acústica e a visual estão conectadas no
poema e em processo de mútua ativação, para o escopo de recepção. A expressão procede de Joyce.
Qual o nível de importância da arte concreta para uma
sociedade que caminha para o ciberespaço? E por quê?
A poesia concreta é, reconhecidamente, premonitória em relação ao "mosaico televisivo" (Mc Luhan) e
às possibilidades abertas pela rede computacional.
Dos poetas que constituíram o grupo Noigandres,
Augusto de Campos, meu irmão, é o que mais adiante tem levado essa linha de pesquisa e exploração
poética, de um modo rigoroso e original. Augusto,
hoje, produz todo um livro de poemas diretamente
no computador. Walter Benjamin profetizou que o
poeta do futuro seria aquele que desenvolveria uma
escrita de eficácia icônica.
Renato Becker é editor da revista "Espresso".
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