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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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EM ENTREVISTA DADA POUCO ANTES DE MORRER, O CRÍTICO DESTACA A IMPORTÂNCIA DA SEMIÓTICA PARA COMPREENDER A ARTE, A POESIA E O CINEMA

A EFICÁCIA DO ÍCONE

Renato Becker
especial para a Folha

A conversa com Haroldo de Campos tinha o objetivo de esboçar as significações do mundo por meio da arte para, depois, entender essa relação como modelo fundamental na construção comportamental das sociedades. Ainda no início, disse a ele que a entrevista seria publicada na revista "Espresso", uma revista sobre cafés finos e os seus diversos ambientes de consumo, e ele mostrou um admirável conhecimento etimológico da palavra café, das propriedades alimentares, dos quadros de Portinari homenageando o café, e, se não parássemos, talvez passássemos o dia todo no tema. Quando entramos no assunto previsto para a entrevista, ele começou com uma contextualização das origens dos pensamentos em comunicação e semiótica para discutir, em seguida, as noções de criatividade, referencial, condicionamento, estética, arte concreta e, por fim, realidade virtual. A conversa, da qual se reproduz um trecho a seguir, aconteceu ao longo de três semanas, entre maio e junho deste ano, tanto pessoalmente como por troca de faxes.

Como o senhor explica comunicação e semiótica?
As disciplinas comunicação e semiótica [objeto do curso de pós-graduação da PUC-SP] procedem de matrizes diversas. A semiótica foi fundada por Charles Sanders Peirce (1839-1914), o maior filósofo americano e um dos maiores do seu tempo, falando-se em termos mais amplos. De formação variada, aluno de Harvard, Peirce era químico, meteorologista, matemático e, sobretudo, filósofo, de certa forma ligado à posteridade hegeliana. Suas peculiaridades de caráter e conduta extravagante acharam por incompatibilizá-lo com a puritana sociedade da Nova Inglaterra e, apesar de ter começado a carreira promissoramente, a partir de uma certa altura de sua vida as universidades americanas lhe fecharam as portas. Teve de sobreviver como conferencista avulso e escritor independente. A ele se deve o pragmatismo, que se costuma atribuir, sem maiores considerações, a seu amigo filósofo William James. Após sua morte, embora tardiamente (entre 1931 e 1958), a universidade norte-americana acabou curvando-se à sua grandeza. Harvard editou em oito volumes seus escritos, que ele em vida teve de dispersar por diferentes pequenas revistas e publicações avulsas. Mais recentemente foi lançado um novo projeto, mais completo, de edição prevista para cerca de 20 volumes, e que está sendo levado a efeito sob a tutela da Associação Internacional de Semiótica, fundada por Jakobson, de que Décio Pignatari, eu e Maria Lúcia Santaella ocupamos, sucessivamente, uma das vice-presidências. O filósofo, a quem Décio Pignatari chamou "Marx do signo", criou a semiótica, assentando-se numa divisão tricotômica do signo (verbal ou não-verbal), que abrange ícones (pense-se na metáfora, tão empregada na poesia), índices (ou sinais dêiticos, como, por exemplo, uma biruta de aeroporto, que assinala a direção dos ventos) e símbolos (entidades mais complexas, que servem à linguagem lógico-discursivo-conceitual). Essas três manifestações sígnicas não são estáticas, fechadas em si mesmas, monadológicas, mas dinâmicas, dialéticas (assim a metáfora verbal, antes mencionada, tem elementos com estatuto simbólico e participa da natureza do ícone; a configuração ou desenho coreográfico da sintaxe de uma língua é um diagrama e, como tal, participa das condições de ícone e de símbolo). A teoria triádica de Peirce, nesse sentido dialético de raiz hegeliana, supera as limitações da escola francesa de estudo dos signos, promovida pelo grande linguista genebrino Saussure (1857-1913), que é binária, trabalhando com as categorias de significante e significado. Já a teoria da comunicação deriva, entre outras, fontes, sobretudo de natureza científico-matemática, da cibernética de Norbert Wiener; envolve a polarização ordem (homeostisis)/desordem (caos, entropia, ruído num processo intercomunicativo).
Para a Gestalt, o processo de significação das coisas se dá por meio da associação. Se considerada como correta essa afirmação, não estará um artista submetido à criação do novo sempre em referência ao anterior?
Literatura se faz e se retroalimenta ("feedback") de literatura. O novo é sempre um acréscimo (uma nova combinação de elementos?) ao acervo do passado. Este é revivificado (repristinado) pela mirada sincrônica do presente. Em outra linha de idéias: no plano da sintaxe, do poema e de outros produtos artísticos como os do cinema, a associação gestáltica de formas (por justaposição) é o que explica o "método ideogrâmico", em poemas de Ezra Pound ou a montagem no cinema de Einsenstein e no teatro dialético de Brecht.
O senhor considera que a fragmentação da mensagem visual é o que justifica sua atratividade, pois não exige atenção concentrada do receptor, ou de fato a informação visual, preservada de seu valor estético original, é mais encantadora que a grafia linear?
O cérebro humano tem dois hemisférios: um digital (linear, associação por sequência de dígitos), outro analógico (associação por justaposição de imagens). A criatividade dos japoneses nas artes (não importando, aqui, o decisivo contributo chinês à escrita nipônica) pode ser, talvez, explicada pelo fato de que os filhos do sol nascente se utilizam, em sua comunicação escrita, de uma combinação de ideogramas (Kanji, analógicos) e de um silabário alfabético-digital (hiragana). Assim, desde a infância, faz o japonês, necessariamente, um aprendizado caligráfico analógico-digital, que manipula fragmentos de visualidade (pictogramas, complexificados em ideogramas) e sequências digitais (a escrita hiragana). Talvez, na era computacional em que vivemos, essa, por assim dizer, ductilidade ou abertura tradicional da mente nipônica possa servir de diretiva.
Como é um poema verbivocovisual?
Um poema verbivocovisual é aquele que tira partido de signos analógico-visuais e também (de maneira redutiva) de signos digitais (sintáticos). A dimensão vocal-frasal, a acústica e a visual estão conectadas no poema e em processo de mútua ativação, para o escopo de recepção. A expressão procede de Joyce.
Qual o nível de importância da arte concreta para uma sociedade que caminha para o ciberespaço? E por quê?
A poesia concreta é, reconhecidamente, premonitória em relação ao "mosaico televisivo" (Mc Luhan) e às possibilidades abertas pela rede computacional. Dos poetas que constituíram o grupo Noigandres, Augusto de Campos, meu irmão, é o que mais adiante tem levado essa linha de pesquisa e exploração poética, de um modo rigoroso e original. Augusto, hoje, produz todo um livro de poemas diretamente no computador. Walter Benjamin profetizou que o poeta do futuro seria aquele que desenvolveria uma escrita de eficácia icônica.


Renato Becker é editor da revista "Espresso".


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