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INSERINDO-SE NA TRADIÇÃO DO
POETA-PENSADOR, AUTOR TRABALHOU
A CONVERGÊNCIA ENTRE SENSIBILIDADE
E RAZÃO E PERSEGUIU O MODO BRASILEIRO DE SER UNIVERSAL
O PRAZER DA PALAVRA E A ESCRITA JUSTA
por Celso Lafer
Qohélet" -o que sabe, "buscou descobrir o
prazer das palavras e a escrita justa". Essa é a
transcriação de Haroldo de Campos do "Eclesiastes" 12-10. Ela exprime, na mútua complementaridade entre "o prazer das palavras" e "a escrita
justa", o sentido do seu percurso e da sua obra. Uma
"obra aberta", que resultou de uma "ars combinatoria",
fruto do entusiasmo e rigor.
Entusiasmo pela criatividade da língua portuguesa.
Esse entusiasmo, que está na raiz de sua admiração por
Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, explica o seu empenho na ampliação e enriquecimento da função poética da nossa língua, por meio do pleno aproveitamento
de suas possibilidades e latências.
Rigor no fazer poético, que ele tanto apreciava em
João Cabral. Foi por conta de sua vocação pela disciplina poética que Haroldo submeteu, na sua obra, o seu
entusiasmo ao rigor, associando a função emotiva à
função reflexiva da linguagem para viver "o prazer das
palavras" e obter "a escrita justa".
Fernando Pessoa nomeou o padre Antonio Vieira imperador da língua portuguesa. Foi seguindo o alcance
dessa investidura que Haroldo recorreu à imagem do
"xadrez de estrelas", do "Sermão da Sexagésima", em
"Teoria e Prática do Poema" (1952) e, posteriormente,
dela se valeu para denominar a antologia poética que
recolhe o seu percurso de 1949 a 1974.
"A fonte imediata da obra de arte é a capacidade humana de pensar", diz Hannah Arendt, ao tratar do "homo faber" em "A Condição Humana". Haroldo, na sua
trajetória, porque trabalhou a convergência entre sensibilidade e razão, se inseriu no que ele denominou a tradição do poeta-pensador. Confrontou-se com a modernidade e buscou seu esquivo significado.
Nessa busca, Haroldo, que se autodefiniu "um cidadão ecumênico da língua portuguesa", procurou a maneira brasileira de ser universal. Via no concretismo,
que liderou em parceria com o seu irmão Augusto de
Campos e Décio Pignatari, uma vanguarda de alcance
internacional, em cujo âmbito o nacional era o indispensável movimento dialógico da diferença com o universal. Entendia também que era uma vanguarda que
não recusava o passado. Sabia que "Mnemosyne" -a
memória- é a mãe de todas as musas. Por isso observou que Camões "ressoa sempre como um eco de buzio, nos ouvidos dos poetas de língua portuguesa".
Nessa recordação do passado fazia, no entanto, uma
nova leitura -na sua poesia, nas suas transcriações, na
sua crítica- em sincronia com o presente da criação.
Daí sua adesão ao lema de Ezra Pound -"make it
new"- e a sua coincidência com o espírito da razão antropofágica de Oswald de Andrade, na qual o remastigar da herança cultural nutre o impulso de renovação.
Haroldo operava dessa maneira uma poética de leitura.
O texto era, para ele, como para Borges, espaço e ocasião da poesia. Em "A Máquina do Mundo Repensada",
Dante, Camões e Carlos Drummond de Andrade são os
fortes estímulos de sua criação poética.
Na obra de Haroldo pulsa, para falar com Octavio Paz,
"libertad bajo palabra". Na sua poesia e nas suas transcriações, norteadas pelo seu superior engenho crítico,
convivem, heuristicamente, tanto a redução minimalista da linguagem quanto a epifania da rarefação dos limites entre a poesia e a prosa.
Evoquei Octavio Paz pois foi ele o forte elo inicial da
minha amizade com Haroldo. Com efeito, em 1968, depois de ter tido o privilégio de ser aluno de Paz na Universidade Cornell, nos EUA, retomei contato com Haroldo, a quem conhecera no início dos anos 60 na casa
de Vilém Flusser, participando de discussões sobre língua e realidade. Tive a convicção-intuição, depois de ter
assistido ao curso de Paz sobre poesia do simbolismo
aos nossos dias e de ter lido "Signos em Rotação", de
que havia entre os dois afinidades eletivas que cabia mediar.
Fui bem-sucedido nessa empreitada, como Haroldo
relatou inúmeras vezes. Organizamos em conjunto a
primeira antologia dos escritos de Paz no Brasil, publicada em 1972 pela editora Perspectiva. Nesse volume
Haroldo inseriu sua "Constelação para Octavio Paz" e
transcriou em português uma pequena antologia que
refletia a sua escolha para o presente da criação, do que
considerou mais instigante até aquele momento do percurso do grande poeta mexicano.
Ele entendia o concretismo como uma vanguarda que não recusava o passado
Transcriação de "Blanco"
Compartilhei o aprofundamento da amizade entre Haroldo e Octavio e segui de perto a extraordinária e bem-sucedida elaboração que levou à transcriação de "Blanco". Das inúmeras
conversas que tivemos sobre Paz ficou o registro estruturado do nosso diálogo de 1984 sobre sua obra, que está inserido na segunda edição, publicada pela editora
Siciliano em 1994, de "Transblanco - Em torno a "Blanco" de Octavio Paz".
O nosso comum interesse por Octavio Paz e pela sua
obra teve os naturais desdobramentos, fruto de inúmeras afinidades. Foi por meio de Haroldo que conheci
Roman Jakobson e Julio Cortázar. Mergulhei na "Morfologia do Macunaíma" para participar, em 1972, da
banca examinadora de sua tese de doutorado, em letras,
na USP. Acompanhei deslumbrado o que ele foi fazendo no correr dos anos em matéria de transcriação. Como professor de direito e lembrando que Haroldo foi
advogado, diria que, subjacente ao seu processo de
transcriação, está presente, com engenho e arte, o conceito de analogia, pois ele preenche, na tradução, as lacunas estéticas da literalidade pelas bem-sucedidas soluções extensivas, dadas pela semelhança relevante.
Das concepções de Haroldo me vali, como ministro
das Relações Exteriores, para explicar que a política externa como tradução de necessidades internas em possibilidades externas não é uma tradução literal, mas
criativa. É uma transcriação representativa, quando
bem-sucedida, de um exercício de inteligência e sensibilidade, ensejadora de novas possibilidades de ação
que não estavam dadas ou não eram percebidas. Na
mesma linha observei que a diplomacia brasileira deve
ser concebida como uma "obra aberta", cabendo a cada
chanceler agregar algo de novo, detectando na memória dos antecedentes a leitura relevante, sincronicamente apta para o desafio criativo do presente.
Haroldo viveu generosamente a amizade como a aristotélica igualdade da estima recíproca, fundada no bem.
A amizade era uma de suas virtudes, e a filia com seus
parceiros era a sua maneira de compartilhar a sensação
comum da existência em ato, do processo de criação.
Como um dos seus numerosos amigos, na multiplicidade de vertentes do seu percurso, evoco, neste preito
de saudades, a lição de Cícero: "Graças à amizade, os
ausentes são presentes e o que é difícil de dizer, os mortos vivem: vivem na honra, na memória, na dor dos
amigos".
Celso Lafer é professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi ministro das Relações Exteriores e de Desenvolvimento, Indústria e Comércio no governo FHC e das Relações Exteriores no governo Collor. É
autor de "JK e o Programa de Metas" (ed. FGV).
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