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INICIADA NOS ANOS 50,
OBRA ENSAÍSTICA
CONCILIA RIGOR E RADICALIDADE E ABORDA DESDE QUESTÕES DE TEORIA DA LINGUAGEM E HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA ATÉ REFLEXÕES SOBRE ESTÉTICA E POLÍTICA
O TEÓRICO E O CRÍTICO
por Leyla Perrone-Moisés
A obra ensaística de Haroldo de Campos compreende 18 livros, segundo a listagem fornecida
pelo próprio autor em "Crisantempo" (1998).
No primeiro deles, "A Arte no Horizonte do
Provável" (artigos datados de 1956 a 1969), o poeta-crítico resumia seu campo de reflexão: "Os problemas da
criação e da crítica hoje, os problemas de uma produção
textual de vanguarda e da reflexão metalinguística apta
a enfocá-los". O último, "O Arco-Íris Branco" (1997),
demonstra uma grande fidelidade àquelas questões, ao
mesmo tempo que uma notável capacidade de auto-revisão, levando em conta o tempo passado, os novos caminhos teóricos abertos e as perplexidades das duas últimas décadas.
Até meados dos anos 60, os textos teóricos assinados
por Haroldo de Campos não se distinguem substancialmente daqueles assinados por seus companheiros de
grupo; muitos desses textos, publicados em jornais e
nas revistas "Noigandres" e "Invenção", têm assinatura
coletiva. Eram textos de teor pragmático: visavam à divulgação da teoria da poesia concreta e de seu projeto.
Entretanto, com o passar dos anos e o encerramento da
fase heróica do concretismo, Haroldo de Campos foi-se
revelando como o autor da obra teórico-crítica mais extensa e mais variada do grupo: uma obra que inclui o
manifesto, o poema crítico, a tradução comentada, a
monografia crítica, o ensaio teórico abrangendo questões de teoria da linguagem e de historiografia literária,
além de reflexões gerais de ordem estética e política.
No final dos anos 60, com os livros "Metalinguagem"
(1967) e "A Arte no Horizonte do Provável" (1969), Haroldo de Campos firmou-se como ensaísta autônomo.
Nessa fase, o poeta se tornou também professor universitário de literatura, atividade que resultaria na elaboração de uma tese de doutoramento: "Morfologia do Macunaíma" (1972). A transformação do poeta em scholar
não significou, de modo algum, sua acomodação a uma
postura acadêmica de bom comportamento estilístico e
de adesão aos valores referendados. O momento era o
da difusão do formalismo russo, do estruturalismo
francês, das novas correntes linguísticas e da semiótica,
tendências propícias ao prosseguimento do projeto
concretista, cujo objetivo maior era aquilo que passou a
designar-se, então, como "trabalho do significante".
Foi um período de extraordinária ebulição teórica e,
para Haroldo de Campos, um momento eufórico em
que ele produziu alguns de seus melhores textos criativos, como as "Galáxias", e alguns de seus ensaios mais
instigantes, como "Poética Sincrônica" (1967) e "Texto
e História" (1969). Seu repertório teórico se ampliou
consideravelmente nessa fase. Entre seus inspiradores,
ganharam força os formalistas e semióticos russos, em
especial Bakhtin e Jakobson, que além de inspirador se
tornou um interlocutor. Pontuam também suas reflexões referências aos pensadores da Escola de Frankfurt,
sobretudo Benjamin, e à então recente estética da recepção, de Jauss.
Na década de 80, sempre informado e atento aos novos rumos dos estudos literários, ele percebeu as possibilidades de recolocar alguns dos problemas teóricos que havia muito lhe interessavam: as condições de uma
criação poética de vanguarda numa cultura derivada e
ex-cêntrica, a dialética do antigo e do novo, do universal
e do particular.
Os ventos da pós-modernidade, demolidores das
grandes teorias e projetos, portadores da desconfiança
nas utopias políticas e artísticas, também foram detectados pelos radares sensíveis de Haroldo de Campos,
que em 1984 escreveu o ensaio intitulado "Poesia e Modernidade - Da Morte da Arte à Constelação. O Poema
Pós-Utópico", texto dedicado à celebração dos 70 anos
de seu amigo e colaborador Octavio Paz.
Tendo traçado, em linhas gerais que não lhe fazem
justiça, o riquíssimo percurso teórico-crítico de Haroldo de Campos, farei algumas incursões em sua obra ensaística, a partir de alguns tópicos, lugares privilegiados
de um vasto território que vale a pena explorar.
Vanguarda
O movimento concreto, segundo o
próprio Haroldo de Campos num balanço efetuado em
1984, "foi o último movimento de vanguarda coletivo e
internacional". Concebida para combater o retrocesso
formal que então se verificava na poesia brasileira com
relação às conquistas da vanguarda histórica dos anos
20, a teoria da poesia concreta retomava as atitudes
aguerridas e provocadoras daquela e colocava-se como
ponta-de-lança vetorizada para o futuro.
Pertinente e necessária naquele momento, a palavra
"vanguarda" foi sendo pouco a pouco abandonada pelo
poeta-crítico, mas não o projeto que ela então designava. A "obra de vanguarda" por ele teorizada e praticada
revelou-se, progressivamente, como sinônima da "obra
aberta" (que ele nomeou antes que Umberto Eco o fizesse), da "obra portadora de informação nova", da
"obra radical" (na ousadia de seu projeto e no rigor de
sua execução), do "texto" no sentido forte do termo, enfim, da "obra moderna" em sua forma exemplar. O
conceito de "vanguarda", na obra de Haroldo de Campos, não é um conceito historicista, mas um conceito
qualitativo, que só pode ser entendido em relação à prática da "poética sincrônica".
Poética sincrônica
Desde seu primeiro livro de ensaios, Haroldo de Campos reafirmou aquilo que estava
nos manifestos da poesia concreta: "Todo presente de
criação propõe uma leitura sincrônica do passado de
cultura. A apreensão do novo representa a continuidade e a extensão da nossa experiência do que já foi feito".
O projeto de releitura da tradição literária, em função
das necessidades criativas do presente e do futuro imediato, foi colhido nas obras teóricas de Pound e Eliot. O
conceito poundiano de "paideuma" foi definido e redefinido por Haroldo de Campos uma infinidade de vezes; uma das fórmulas mais concisas é a seguinte:
"Aproximação seletiva realizada pela imaginação criadora para "nutrimento do impulso"."
Nos anos 60, o "traçado poundiano de morfologia
cultural" foi sendo repensado pelo poeta em convergência com outras propostas afins, em especial a de Jakobson em "Linguistic and Poetics" (1960). Os conceitos linguísticos de diacronia e sincronia, postos em circulação naquela década, serviram-lhe para colocar de
modo mais rigoroso os problemas de uma história literária que não fosse um mero catálogo, mas uma seleção
significativa e inspiradora. Ao mesmo tempo, as reflexões de Bakhtin acerca dos anacronismos que complicam o processo histórico-literário vieram reforçar a argumentação de Haroldo de Campos contra o "fatalismo
linear-evolutivo" da historiografia escatológica.
Assim, as propostas incisivas de Pound foram sendo
desenvolvidas e ampliadas por ele, com apoio nas disciplinas mais recentes: linguística, semiótica e estética da
recepção. Apesar do afinco com que se informou dessas
teorias, Haroldo de Campos nunca sofreu a tentação do
cientificismo. As teorias lhe interessavam como argumentos "ad hoc" para a melhor fruição da literatura, como jogos intelectuais afinados com os jogos poéticos.
Escolha e rigor
Rigor e radicalidade são palavras
constantes nos textos teóricos de Haroldo de Campos.
Desde sua primeira fase, sua produção poética e crítica
se colocou sob a máxima de Valéry: "A maior liberdade
nasce do maior rigor". Assim, suas escolhas críticas
sempre incidiram sobre os autores que, no trato da linguagem, manifestaram o maior rigor formal e a maior
radicalidade experimental: Mallarmé, Pound, Joyce e
companhia. Correlatamente, ele sempre manifestou
desconfiança com relação às experiências mais confiantes na "inspiração" e no acaso, como as dos surrealistas.
Da mesma forma, distinguia os "românticos intrínsecos" (Hölderlin, Leopardi), "que resolveram a função
emotiva em termos de linguagem", dos "românticos
extrínsecos", que se detiveram na emoção "sem alcançar sua configuração estética".
Tudo o que é meio-termo, conciliação, tepidez sempre lhe repugnou, e disso podemos dar alguns exemplos. A experiência de Raymond Queneau em "Cent
Mille Milliard de Poèmes", obra aparentemente ousada
pela proposta de uma combinatória aberta de versos,
foi julgada limitada, pela manutenção da forma e da
métrica tradicionais do soneto em alexandrinos. Em
outro trabalho, sobre o kitsch e suas relações complexas
com a pop art, este é finalmente definido, em consonância teórica com Umberto Eco, como "mentira estética"
e rejeitado, na literatura, como versão "mid-cult" e "beletrística" daquilo que um dia foi vanguarda.
Foi com esse rigor seletivo que Haroldo de Campos se
propôs, desde o início de sua trajetória, efetuar uma revisão crítica da história da literatura brasileira, à luz do
valor "invenção". Desde 1963, ele propunha uma "história criativa da poesia brasileira". Em 1967, tendo alimentado esse projeto com reflexões mais recentes, esboçou o índice de uma "Antologia da Poesia Brasileira
de Invenção", retomado em 1969. Ele distinguia então
uma "história textual", seletiva e sincrônica, de uma
"história literária", cumulativa e diacrônica. O projeto
da "antologia" não chegou a realizar-se como tal, mas
foi sendo explorado na forma de ensaios monográficos.
E a reflexão sobre a história literária levou-o a pensar, de
modo original e estimulante, a antiga dicotomia literária "nacional-internacional".
O rigor de Haroldo de Campos beirou muitas vezes a
intransigência, e frequentes foram as acusações que recebeu nesse sentido. Entretanto é preciso convir que toda a sua aventura poética, crítica e tradutória só fazia
sentido na radicalidade. E a poesia concreta, como típico movimento de vanguarda que foi, não teria tido a
importância que teve na história literária se não tivesse
sido intransigente quanto aos princípios que desejava
implantar.
O rigor de Haroldo de Campos beirou muitas vezes a intransigência, e frequentes foram as acusações que recebeu nesse sentido; entretanto é preciso convir que toda a sua aventura poética, crítica e tradutória só fazia sentido na radicalidade
Nacional-internacional
Passado o momento
concretista, o internacionalismo vanguardista tornou-se para Haroldo de Campos menos o projeto de uma
ação conjunta do que uma questão de valoração, que o
levaria a refletir cada vez mais acerca da relação centro-periferia no que se refere à produção artística. Segundo
ele, assim como a avaliação sincrônica da tradição se
realiza em função de um padrão transistórico, a avaliação das literaturas nacionais deve ter em conta um padrão internacional. Preocupado com a literatura de seu
país, mas recusando-se a adotar uma postura nacionalista condescendente, que colocasse a produção artística brasileira na dependência estreita das condições econômicas, sociais e políticas, o poeta prosseguiu sua revisão da história da literatura brasileira tendo em mente
um alto padrão de produção e recepção.
Citando a afirmação de Engels, de que "países economicamente retardatários podem, não obstante, tocar o
primeiro violino em filosofia" (carta a Conrad Schmidt,
27/ 10/1890), Haroldo de Campos continuou perseguindo um padrão de "Weltliteratur", o único, segundo ele,
capaz de arrancar as literaturas nacionais da condição
de provincianas e, as literaturas emergentes, da condição de derivadas e menores. "Só concebo o nacionalismo de um ponto de vista modal, não-ontológico: a maneira brasileira de dialogar com o universal, articulando
diferencialmente sua combinatória, especificando escolhas, renovando-se e também inovando" ("O Arco-Íris Branco", 1997).
Para pensar os fenômenos literários de um ângulo ex-cêntrico como o da literatura brasileira, Haroldo de
Campos empreendeu uma instigante aliança teórica
dos princípios da desconstrução, de Jacques Derrida,
com a proposta de "antropofagia cultural" de Oswald
de Andrade.
O "descentramento", como desconstrução da essencialidade metafísica, e a "devoração do Outro", como antídoto às angústias originárias do nacionalismo, foram
postos em relação no ensaio "Da Razão Antropofágica
-Diálogo e Diferença na Literatura Brasileira" (1980),
que foi traduzido em várias línguas e publicado em revistas de vários países. A demonstração prática dessa
postura teórica foi uma retomada crítica da historiografia literária brasileira. Sua concepção da história literária como um espaço em que ocorre uma evolução morfológica, mas não uma progressão axiológica, levou-o a
revalorizar um período que teria sido "sequestrado", no
Brasil, pela historiografia progressista: o barroco.
Barroco
As questões estéticas, axiológicas e históricas colocadas pelo barroco sempre estiveram presentes
na ensaística de Haroldo de Campos. Para avaliar o
quanto a questão do barroco é fundamental em sua
obra, basta lembrar que esse é um dos poucos pontos
em que ele discorda de Pound, que não tinha grande
apreço por essa tendência. Seguindo entretanto o próprio método de Pound, ele apontou uma "arquitextura"
transistórica e transnacional do barroco, numa linhagem que incluiria o grego Lícofron, o chinês Li Shang-Yin, o espanhol Gongora (naturalmente), o francês Mallarmé e os modernos escritores latino-americanos.
Paralelamente à reflexão acerca do barroco histórico
ou estilístico, o poeta foi desenvolvendo cada vez mais a
vertente barroca de sua própria obra, em poemas longos, ardilosos e lexicalmente preciosos. O barroco é, assim, uma das pedras de toque da obra de Haroldo de
Campos e poderíamos mesmo dizer de sua personalidade psicológica e intelectual. Seus ensaios teóricos e
críticos nunca são textos neutros, porque nascem, segundo suas próprias palavras, de uma "paixão nunca
exaurida, a poesia". De fato, o que liga as múltiplas facetas do poeta-crítico e lhes dá sabor é sua qualidade de
produtos de um "intelletto d'amore".
"Intelletto d'amore"
Se bem observarmos as
motivações de Haroldo de Campos, veremos que há
sempre, na origem de suas propostas e de suas recusas,
uma disposição afetiva que o anima, na defesa do novo
contra o velho, do ardente contra o morno. A crítica literária, por exemplo, só lhe interessa quando engajada
"no vivo da experiência literária, no fazer em progresso,
na própria evolução de formas que redimensiona e qualifica o mundo da criação", e não quando é um "discurso de beira-túmulo", "uma neutra relojoaria de conceitos" ou "uma terapêutica ocupacional para uso do receituário didático" ("Metalinguagem e Outras Metas",
1992).
Poesia e tradução, teoria e crítica foram, para Haroldo
de Campos, atividades de "devoção e amor", formas da
generosidade. Mais de uma geração de jovens poetas e
críticos brasileiros formaram seu gosto e seu juízo crítico, ampliaram seu repertório de leituras e conceitos
graças à sua atividade generosa e obstinada. Uma atividade que transbordou das fronteiras nacionais e fez
com que ele fosse conhecido e apreciado em todos os
lugares onde se cultiva a poesia.
Leyla Perrone-Moisés é professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de, entre outros, "Altas
Literaturas" e "Inútil Poesia" (Companhia das Letras).
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