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POETA REINVENTOU A RELAÇÃO ENTRE VERSO E VOZ, FALA E PALAVRA NA LITERATURA BRASILEIRA
A BABEL SONORA
por Livio Tragtenberg
Haroldo de Campos foi um inventor de sonoridades na língua portuguesa. As músicas que
inventou para suas traduções do hebraico,
grego, japonês, alemão, entre tantos outros
idiomas, revelam a importância central do aspecto sonoro na sua criação poética. É por ignorância que ainda
não se reconhece, por exemplo, na poesia concreta a dimensão da vocalidade como um elemento essencial.
Já a reinvenção do hebraico para o português o levou
a elaborações complexas com relação aos metros, ritmos, acentos e às melodias originais. Elas mesmas, ainda objeto de controvérsias entre os especialistas em
poesia bíblica e judaísmo.
Haroldo debruçou-se sobre esse desafio, buscando alcançar e contemplar essas diferentes camadas que envolviam aquele texto bíblico.
Seu resultado sonoro pôde ser ouvido nas várias leituras bilíngues conduzidas pelo próprio poeta e também,
em tempo musical, no espetáculo "A Cena da Origem"
(1989), no qual eram sobrepostos o texto em hebraico e
em português por cantores e um "chazan".
Esclarece que, "para a a reimaginação da música original", ele contou com uma gravação do texto em hebraico e que ela funcionava como "uma pauta sonora
subsidiária" no trabalho de "reorquestração poética"
do texto bíblico em português.
A recriação de sonoridades tão específicas do hebraico, desde o fonema até a elaboração dos ritmos e acentos, com seu delicado jogo de pausas, constitui uma verdadeira "reorquestração" polifônica. Que resultou em
novas construções, como, "névoa-nada", "vento-que-some", entre outras tantas. E que objetivou também
uma qualidade de oralidade no texto em português. Esse é apenas um exemplo no universo múltiplo da construção sonora na poesia de Haroldo de Campos.
Já na transcriação de "Hagoromo - O Manto de Plumas", peça de teatro nô escrita por Zeami (1363-1443), o
resultado sonoro recupera a concentração da estrutura
miniaturizada do haicai com seus efeitos, em que imagens soam, com o uso de aliterações e surpresas fônicas.
Haroldo "coreografa" verbalmente a dança do anjo
central na peça alternando ritmos e imagens: "A dança-arco-íris da veste-de-plumas".
Em "Galáxias" (1963-76), combina com virtuosismo
ritmos contrastantes, buscando por vezes uma oralidade fluente e, no instante seguinte, mergulhando num
tresloucado quebra-língua lancinante -como num solo de Charlie Parker. "Galáxias" tem sido musicado das
formas mais diferentes, desde a canção popular até a
música contemporânea.
Vertente lírica
Acrescentam-se ainda essas diferentes dicções sonoras em sua poesia, uma vertente lírica que perpassa sua produção desde "envoi" (1956) até
"Rimas Petrosas", publicadas em "Crisantempo"
(1998). Essa lírica nos apresenta uma outra musicalidade, alinhando o poeta à tradição dos trovadores provençais e de Guido Cavalcanti, numa combinação inusitada
de barroquismo vocabular -"encarniçado em seu
não"- e uma leveza bossa-novista -"a contra-sim/a
contra-senso/a contra-mim".
Num país de "surdos-músicos" (rebatendo o clichê de
"país musical"), em que escritores e poetas em geral são
jejunos nas coisas do som e das sonoridades, Haroldo
de Campos reinventou a relação entre verso e voz, fala e
palavra. Cabe a nós, escutar.
Livio Tragtenberg é compositor e autor, de, entre outros, "Artigos
Musicais" e "Música de Cena" (editora Perspectiva).
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