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São Paulo, domingo, 14 de setembro de 2003

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POETA REINVENTOU A RELAÇÃO ENTRE VERSO E VOZ, FALA E PALAVRA NA LITERATURA BRASILEIRA

A BABEL SONORA

por Livio Tragtenberg

Haroldo de Campos foi um inventor de sonoridades na língua portuguesa. As músicas que inventou para suas traduções do hebraico, grego, japonês, alemão, entre tantos outros idiomas, revelam a importância central do aspecto sonoro na sua criação poética. É por ignorância que ainda não se reconhece, por exemplo, na poesia concreta a dimensão da vocalidade como um elemento essencial. Já a reinvenção do hebraico para o português o levou a elaborações complexas com relação aos metros, ritmos, acentos e às melodias originais. Elas mesmas, ainda objeto de controvérsias entre os especialistas em poesia bíblica e judaísmo. Haroldo debruçou-se sobre esse desafio, buscando alcançar e contemplar essas diferentes camadas que envolviam aquele texto bíblico. Seu resultado sonoro pôde ser ouvido nas várias leituras bilíngues conduzidas pelo próprio poeta e também, em tempo musical, no espetáculo "A Cena da Origem" (1989), no qual eram sobrepostos o texto em hebraico e em português por cantores e um "chazan". Esclarece que, "para a a reimaginação da música original", ele contou com uma gravação do texto em hebraico e que ela funcionava como "uma pauta sonora subsidiária" no trabalho de "reorquestração poética" do texto bíblico em português. A recriação de sonoridades tão específicas do hebraico, desde o fonema até a elaboração dos ritmos e acentos, com seu delicado jogo de pausas, constitui uma verdadeira "reorquestração" polifônica. Que resultou em novas construções, como, "névoa-nada", "vento-que-some", entre outras tantas. E que objetivou também uma qualidade de oralidade no texto em português. Esse é apenas um exemplo no universo múltiplo da construção sonora na poesia de Haroldo de Campos. Já na transcriação de "Hagoromo - O Manto de Plumas", peça de teatro nô escrita por Zeami (1363-1443), o resultado sonoro recupera a concentração da estrutura miniaturizada do haicai com seus efeitos, em que imagens soam, com o uso de aliterações e surpresas fônicas. Haroldo "coreografa" verbalmente a dança do anjo central na peça alternando ritmos e imagens: "A dança-arco-íris da veste-de-plumas". Em "Galáxias" (1963-76), combina com virtuosismo ritmos contrastantes, buscando por vezes uma oralidade fluente e, no instante seguinte, mergulhando num tresloucado quebra-língua lancinante -como num solo de Charlie Parker. "Galáxias" tem sido musicado das formas mais diferentes, desde a canção popular até a música contemporânea.

Vertente lírica
Acrescentam-se ainda essas diferentes dicções sonoras em sua poesia, uma vertente lírica que perpassa sua produção desde "envoi" (1956) até "Rimas Petrosas", publicadas em "Crisantempo" (1998). Essa lírica nos apresenta uma outra musicalidade, alinhando o poeta à tradição dos trovadores provençais e de Guido Cavalcanti, numa combinação inusitada de barroquismo vocabular -"encarniçado em seu não"- e uma leveza bossa-novista -"a contra-sim/a contra-senso/a contra-mim".
Num país de "surdos-músicos" (rebatendo o clichê de "país musical"), em que escritores e poetas em geral são jejunos nas coisas do som e das sonoridades, Haroldo de Campos reinventou a relação entre verso e voz, fala e palavra. Cabe a nós, escutar.


Livio Tragtenberg é compositor e autor, de, entre outros, "Artigos Musicais" e "Música de Cena" (editora Perspectiva).


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