|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O ESCRITOR CUBANO RECORDA AS DISCUSSÕES COM HAROLDO DE CAMPOS SOBRE TRADUÇÃO E CONTA COMO SE CONHECERAM
EM LONDRES
VOLUMOSO, SENSÍVEL, DADIVOSO
por Guillermo Cabrera Infante
Soube, pelo jornal "El País", da morte de Haroldo,
do único Haroldo possível. Ninguém me disse
que ele estava tão doente. Sabia, sim, que ele tinha
diabetes e vivia com sobrepeso. Mas para mim
Haroldo era um dos imortais. Eu o conheci há muitos
anos, aqui em Londres, quando tive o prazer de visitar a
colônia cultural de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Demos muitas risadas juntos, embora ele estivesse com
uma perna engessada e com dificuldades de movimento. Fomos visitar "os rapazes" na sua toca, em Chelsea, e
aí Haroldo se espraiou. Embora não fosse Natal, ele parecia uma versão brasileira do Papai Noel levando a si
mesmo como presente.
Depois disso ele me visitou várias vezes, e conversamos de um assunto para nós inesgotável: a tradução e
suas consequências. Falamos do pequeno e grande interesse pelas traduções, e ele garantiu que não se interessava por best-sellers. Será que ele preferia os "worst-sellers"? O fato é que dávamos muitas risadas.
Eu já me preocupava muito com sua gordura crescente. Outro que se preocupava com isso era Emir Rodríguez Monegal, o crítico uruguaio, um amigo comum da
época, morto faz anos. Haroldo era um imortal. Daí a
minha surpresa ao receber a notícia de sua morte. Nosso último encontro foi em São Paulo, numa homenagem que ele realizou -com quem mais poderia ser?-
com Caetano Veloso e Gilberto Gil. No papel de animador cultural, Haroldo estava feliz e ao mesmo tempo espantado com o que ele qualificou de poder de convocatória. Havia no auditório mais de 2.000 jovens, que estavam ali, é claro, por causa de Caetano e Gil, mas que ouviram atentos o discurso sempre generoso e bilíngue de
Haroldo.
Agora a notícia de sua morte me pegou desprevenido,
me deixou órfão: vai ser difícil encontrar outro homem
tão generoso em sua conversa e tão sábio e transcendental em sua cultura. Minha homenagem, embora tardia, não é menos sentida. A cultura de São Paulo, a cultura do Brasil, a cultura em geral não será mais a mesma
sem a presença de Haroldo, volumoso, sensível, dadivoso. Sua lembrança, porque viva, é dolorosa e permanente. Mas devemos lembrá-lo vivo e às gargalhadas,
como as que o assaltavam sempre que eu lia, a seu pedido, o começo de "Três Tristes Tigres", esse trecho que
fala de um Brasil digno de Carmen Miranda. Nada o fazia rir tanto.
Guillermo Cabrera Infante é escritor cubano e vive em Londres. É
autor de, entre outros, "Havana para um Infante Defunto" e "Mea Cuba" (Companhia das Letras).
Tradução de Sergio Molina.
Texto Anterior: A babel sonora Próximo Texto: O que ler/ Haroldo de Campos Índice
|