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LIVROS - RÉPLICA
Maria Sylvia Carvalho Franco contesta a crítica feita por Boris
Fausto a "Homens Livres"
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Resposta à ortodoxia
MARIA SYLVIA DE CARVALHO FRANCO
especial para a Folha
A resenha de Boris Fausto sobre
"Homens Livres na Ordem Escravocrata" (Mais!, 7/9/97) começa
por declarar que se trata de um
"clássico". Por quê? Um livro velho e envelhecido por trabalhos
mais recentes que focalizam agrupamentos sociais vinculados à
economia de subsistência, sem estar presos às grandes propriedades. O resenhista afirma a desatualização da pesquisa, instala a desconfiança e, rápido, retira-se da liça: não quer "se alongar na controvérsia". No plano científico não
há escolha: uma vez lançada a discussão, é necessário enfrentá-la.
Caso contrário, sem demonstração, a crítica se autodestrói, sobretudo se usada como recurso tático.
As posições que assumi se devem a
investigações teóricas e empíricas
e só nesse plano, com o enquadramento pertinente, podem ser debatidas; nem as minhas teses, nem
as de ninguém, devem ser dispensadas por alguma outra pesquisa,
aleatoriamente referida sem definir contextos.
Aprofundemos esse ponto. À
época em que "Homens Livres"
foi escrito, o trabalho de Antonio
Candido, "Parceiros do Rio Bonito", sobre grupos sociais auto-suficientes e suas mediações no sistema socioeconômico, estava publicado, constituindo uma referência
impossível de negligenciar. Não
seriam necessárias pesquisas posteriores para distinguir esses aspectos da estrutura social no Brasil. Boris Fausto não menciona essa presença decisiva em meu livro,
não diz como discuti o problema
por intermédio dela e em sua própria medida: a exposição concreta
do objeto.
Aponta, com razão, o trabalho
de Caio Prado Jr. como importante
em meu estudo. Mas há algo, na
obra desse historiador, que não é
aludido pelo resenhista e que justamente torna intempestiva a
"novidade" em nome da qual minha pesquisa estaria desatualizada.
Vale refrescar-lhe a memória: Caio
Prado Jr. critica o estereótipo monolítico do latifúndio-escravo-comércio colonial, chamando a atenção para o processo integrador que
se desenvolve no plano produtivo,
gerando diferenciação socioeconômica, com áreas voltadas para
subsistência (inclusive para suprir
o setor mercantil) estabelecidas
por grupos livres.
Meu ponto de partida foi exatamente esse rumo no desenvolvimento socioeconômico orientado
pelos vínculos entre trabalho-livre
e trabalho escravo, definindo o
sentido da produção colonial moderna, essencialmente diversa do
"escravismo" antigo. Basta ler a
introdução ao livro, onde enfrento
a questão dos nexos intrínsecos
entre escravidão moderna e trabalho livre e questiono, nos seus fundamentos, a tese da exterioridade
desses termos e os supostos limites
intransponíveis entre escravismo e
capitalismo, como reza a ortodoxia marxista.
Assim sendo, Boris Fausto deixa
de registrar o que está no centro de
meu trabalho -a presença do trabalho livre, enquanto fenômeno
constitutivo do mundo moderno,
pela mediação de seu contrário, o
trabalho escravo, aqui, no
além-mar, fora ou dentro dos empreendimentos em que o capital
aparece imediatamente. Esse processo norteia minhas interpretações, o que torna derrisório dizer
que não atentei para os setores livres voltados para uma produção
diferenciada.
Agora, pretender que esses grupos estejam fora do movimento
inteiro do capitalismo nascente,
que independam da grande propriedade, é fábula que precisaria
estar melhor contada: as referidas
pesquisas não mudam, em nada, a
pertinácia de meu estudo; elas repõem exatamente o que critico,
brotando das vetustas teses que
isolam trabalho livre e escravismo.
Nesse sentido, elas é que são envelhecidas, já antes de nascer.
A objeção de Boris Fausto expressa uma forma de pensar, diametralmente oposta à minha, que
fragmenta o processo histórico e
lhe furta o sentido: aqui pequenos
grupos autônomos, acolá grande
propriedade mercantil, afastando
o complexo entrelaçar, visível ou
abscôndito, entre esses pólos. Estamos prontos, com esses retalhos, para costurar os sistemas semi... semi. Desse quadro vive a tese
da incompatibilidade entre "escravismo" e capitalismo, e sua
consequência política, a passagem
"dialética" pela burguesia. Ruiu o
Muro de Berlim, mas a ideologia
reitera sempre os mesmos caminhos.
Por tudo isto, Fausto engana-se
ao dizer que dirijo uma crítica à
noção de "sociedade tradicional".
Faço também a critica desse "tipo", mas em contexto maior, discutindo o suposto "modo de produção escravista", tido por lógica e
historicamente anterior ao capitalismo, com as esdrúxulas formações sociais por aqui desabrochadas: estamental, de castas, feudal,
arcaica, tradicional, patriarcal, patrimonial, atrasada, periférica,
justamente com a ladainha dos semi... semi, pré... pré... , prestidigitações que abriam a larga via das
alianças para não perder o trem da
história liderado pela burguesia.
Doutrina e prática que explicam a
resistência da ideologia oficial.
À luz ortodoxa, o escravismo, e
não o capitalismo, seria o núcleo
gerador do atraso, da violência.
Ainda não havia a estrutura liberal
"clássica", nem classes, consciência e luta de classes. Nessas explicações pelo não existente -num
"telos" posto pelo mundo burguês- jamais se aventava que as
formas de dominação concretamente aqui geradas obstruíssem
qualquer capacidade crítica, independência da vontade, projetos de
mudança social. Com a "globalização", pode-se dispensar o escravismo como imagem soteriológica
que livra o capitalismo de todo
mal: mas a ótica da ortodoxia, com
seus deslocamentos, ainda é necessária para manter sua justificação e vantagens. Muda-se um pouco o ângulo, o holofote ilumina o
mesmo foco.
Ao fio dos anos, livro e autora
permaneceram fiéis um ao outro,
não porque eu deixasse de trilhar
novos caminhos; mas, por vário
que tenha sido meu campo de
preocupações, há um nítido fio
condutor entrelaçando-as: são essas teses, na verdade, que Boris
Fausto condena pelo viés de uma
resenha. A censura e polícia doutrinárias continuam firmes. Enfrentar teórica e praticamente o saber dominante não é tarefa comezinha. "Homens Livres" foi escrito há 33 anos, mas publicado há 27
(1969). No intervalo, ficou emudecido pelo veto das assessorias ortodoxas, nas editoras, à direita e à esquerda: de um lado, porque o livro
era marxista, de outro, porque não
rezava pela cartilha. Publicado, o
livro incomodou bastante: desconhecer é uma eficiente forma de
excluir e muito silêncio se fez em
torno dele.
Hoje, as proposições teóricas, as
análises empíricas, os resultados
históricos expostos em suas páginas fazem dele um livro atualíssimo. Ao contrário do afirmado pelo
resenhista, ele resistiu ao tempo, e
os significados que desentranhou
em nossa cultura, reiterados no
presente, tornam sua presença na
cena editorial ainda mais desconfortável. E, por cima, revestido de
prestígio que não tinha ao surgir
pela primeira vez: daí o "clássico"
-mumificante- atribuído contraditoriamente à pretensa velharia que mais seria o caso de enterrar, para sossego dos interessados.
Mas o que incomoda? O livro
traz algo essencial, estrategicamente excluído na resenha: para
usar palavras de Nabuco, a alma
humana posta em leilão, com seus
fundamentos, processos e resultados produzidos pela magia do
mercado. Tudo se vende, compra,
troca, na esteira da velha dominação pessoal reativada nos salões
oficiais de hoje. "Negociar" tornou-se virtude política. As evidências empíricas espalham-se pelas
folhas dos periódicos. A estrutura
mais profunda, a chave do sucesso
no torneio das vontades, na corrupção do juízo e da prática, está
no gesto, agressivo e afável, que se
chama favor, sobejamente discutido nos "Homens Livres".
Não uso esse conceito como um
princípio organizatório das relações sociais e econômicas oposto à
racionalidade impessoal do capitalismo. Pelo contrário, ele se desenvolveu, entre nós, alojado na
expansão do capital, no setor produtivo e financeiro, na constituição do Estado. Esses prismas, omitidos na resenha, são minuciosamente expostos por mim.
Aponto, aqui, algumas facetas
desse horizonte de favores: então
como hoje, concentrou-se o poder, correlato à centralização político-administrativa e ao confisco
econômico-financeiro. Províncias
e municípios viram-se expropriados, tolhidos nas menores providências. Assim, uma racionalização dos meios administrativos tornou-se difícil e nem foi pretendida:
a burocracia autônoma entrava
outras formas de poder; por isso,
com a alternância dos governos, os
cargos eram esvaziados e preenchidos segundo conveniências dos
novos poderes. Fausto alude ao
travamento do processo burocrático, mas cala sobre sua gênese e
resultados.
Sem burocracia estável e contínua, amplia-se a manobra política,
permitindo que os vários estágios
do poder fiquem pendurados na
cadeia das vontades centrais. Essa
mesmíssima técnica está hoje rediviva. Não poderia ser mais clara a
conotação atual da "reforma" do
Estado: torna "mexível" o cargo
público, liberando os postos a serem distribuídos, somados às funções "de confiança". O esvaziamento das sedes intermediárias do
Estado hoje é gritante: basta lembrar a "lei Kandir", pela qual o
Planalto suga milhões sem retorno. Às alianças, acopla-se a exploração do aparelho estatal: como
aceitar um livro que desvela os arcanos e as consequências dessa
prática?
No plano dos Estados, São Paulo
é dos mais atingidos; no municipal, Porto Alegre é bom exemplo.
Hoje, aquela prefeitura investe R$
1.390,00 por aluno-ano no primeiro grau; a proposta de Brasília é reduzir esse custo para R$ 600,00.
Enquanto isso, dinheiros públicos
vão para as "bases" do poder:
banqueiros corruptos, grupos privilegiados, congressistas vendidos, escolas privadas deficientes.
Esses princípios da corrupção,
destruidores da vontade autônoma -domínio deletério e violento
que permanece encoberto- estão
examinadas nos "Homens Livres", nas esferas pública e particular, atravessadas pelo favor acoplado ao dinheiro. Essas análises
não poderiam ser mais contundentes para os dias atuais. Como
não silenciar o livro dissidente?
Justamente na parte relativa a esse processo mutilador da consciência Boris Fausto me acusa de
"robotizar" o homem livre. Essa
imputação é sem respaldo empírico ou teórico. Uma imensa tradição do saber vem esmiuçando o
enigma de como as pessoas deixam-se dirigir por ilusões recebendo-as como se fossem de sua própria iniciativa e para o seu próprio
bem, colaborando no processo de
submissão. Essa cumplicidade
mostra-se operativa: desde o jovem que Platão descreve comprando o pseudo-saber do sofista,
convencido de que recebe ciência
verdadeira -prestidigitação em
que um ilude e o outro se auto-engana- até o proletário que Marx
descreve orientando-se pelo "telos" do capitalismo -fetiche em
que um gera a ilusão e o outro reforça as suas aparências- o complexo problema tem sido arquidebatido.
Minhas referências teóricas, na
época, foram o idealismo alemão,
Marx e o grupo de Frankfurt; o
protocolo empírico analisado está
à disposição do leitor. Das duas,
uma: ou todas aquelas fontes, com
suas diferenças, robotizam, ou eu
fantasiei um rigor que não atingi. É
possível, mas, para demonstrá-lo,
é mister passar pelo quadro teórico em que me situei, aferir a leitura
que dele fiz, escrutinar o tratamento dado ao material empírico.
Sem demonstração, as assertivas
se desfazem, sendo essa a consequência da nota ligeira com que
Boris Fausto grava as minhas análises em um ponto nevrálgico. A
escolha desse núcleo não é casual e
a técnica é a mesma: assestar o holofote no alvo decisivo -a dominação pessoal, o favor e seus resultados-, cuja análise não poderia
melhor expor as técnicas de controle hoje mobilizadas pelo governo. O leitor alheio às questões tratadas não percebe a ligação entre a
censura emitida e os interesses a
ela subjacentes; apenas guarda as
restrições do resenhista.
Em seu texto, juízos valorativos
carregados de pressupostos políticos simulam questionamentos
científicos. Abordo mais uma das
objeções assim formuladas pelo
resenhista. Com suas rápidas investidas, procura invalidar a documentação utilizada: especializados
na violência, os processos crimes
ressaltariam esse traço. Diz ele que
me "defendo" ao enunciar que a
violência sobressai porque a documentação, por seu caráter, expressa um componente básico, entranhado no capitalismo, na pobreza,
no favor, na dominação.
Não me "defendo": qualifico a
documentação usada. Não fui a
primeira, nem a última, em discernir, por meio dos processos repressivos da sociedade, as suas determinações fundamentais e os
seus desenvolvimentos. A lembrança dos pensadores que se debruçaram sobre o problema seria
enorme, e cada um a seu modo
-em perspectivas diferentes ou
sentidos opostos, pela mediação
da natureza, das formações políticas, da consciência ou do inconsciente, no campo da filosofia, das
ciências sociais, jurídicas, médicas, na literatura e nas artes figurativas- perscruta essa dimensão,
seja para legitimá-la em seus fundamentos e princípios, seja para
levar sua crítica às últimas consequências.
Fausto pretende invalidar a documentação e esmaecer suas perturbadoras evidências, dizendo
que os processos crimes limitam-se a âmbitos restritos. Isto
bem mostra que nunca atentou
para esse acervo. O leitor pode verificar seu desacerto apenas percorrendo o longo e comovente testemunho que abre o primeiro capítulo do livro: todos os aspectos
da cultura, recolhidos no conceito
de comunidade, desdobram-se
diante de nossos olhos -integração à natureza, relações socioeconômicas, sentimentos, ideário, religiosidade-, associados a um outro elemento excluído daquela teoria: a grande violência que lhes dá
sentido. Sobretudo a linguagem
nos transporta para um mundo
concretamente representado.
A atitude do resenhista explica-se quando nos damos conta de
sua apologia do governo atual. Aos
adeptos da "modernidade" não
interessa ver suas práticas iluminadas por um passado que abertamente reativam, mobilizando técnicas que centralizam o poder,
concentram a riqueza, estiolam a
vontade, estimulam a corrupção,
"para o bem do país". A pertinácia
das análises dos "Homens Livres"
não poderia ser maior, e Boris
Fausto não poderia mesmo tê-lo
acolhido positivamente. Nada
mais eloquente para ilustrar sua
adesão oficial que as palavras com
que caracteriza a "História do
Brasil", o manual que escreveu:
um percurso dos "tupi aos tucanos", novo "telos" de nossa cultura.
Boris Fausto está colocado em
um terreno doutrinário e político
diametralmente oposto ao campo
teórico e prático em que eu própria
me situo. Sobre esse choque, sua
resenha permanece muda e queda,
nem uma palavra informa o leitor,
aparentando descrever os conteúdos do livro. Se é difícil neutralizar
a carga valorativa em que nos movemos, é preciso controlá-la expondo os seus pressupostos e implicações. No quadro normativo
que sustenta os juízos do resenhista, "Homens Livres" ganha um
estatuto bem esquisito: um "clássico" que não recebe uma única,
peregrina, solitária, recomendação de leitura, para qualquer de
seus pontos.
Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular do departamento de filosofia da Unicamp
(Universidade Estadual de Campinas) e professora aposentada do departamento de filosofia
da USP. É autora de "Homens Livres na Ordem
Escravocrata", que acaba de ser reeditado pela
Editora da Unesp.
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