São Paulo, domingo, 14 de setembro de 1997.



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LIVROS - RÉPLICA

Maria Sylvia Carvalho Franco contesta a crítica feita por Boris Fausto a "Homens Livres"

Resposta à ortodoxia

MARIA SYLVIA DE CARVALHO FRANCO
especial para a Folha

A resenha de Boris Fausto sobre "Homens Livres na Ordem Escravocrata" (Mais!, 7/9/97) começa por declarar que se trata de um "clássico". Por quê? Um livro velho e envelhecido por trabalhos mais recentes que focalizam agrupamentos sociais vinculados à economia de subsistência, sem estar presos às grandes propriedades. O resenhista afirma a desatualização da pesquisa, instala a desconfiança e, rápido, retira-se da liça: não quer "se alongar na controvérsia". No plano científico não há escolha: uma vez lançada a discussão, é necessário enfrentá-la. Caso contrário, sem demonstração, a crítica se autodestrói, sobretudo se usada como recurso tático. As posições que assumi se devem a investigações teóricas e empíricas e só nesse plano, com o enquadramento pertinente, podem ser debatidas; nem as minhas teses, nem as de ninguém, devem ser dispensadas por alguma outra pesquisa, aleatoriamente referida sem definir contextos.
Aprofundemos esse ponto. À época em que "Homens Livres" foi escrito, o trabalho de Antonio Candido, "Parceiros do Rio Bonito", sobre grupos sociais auto-suficientes e suas mediações no sistema socioeconômico, estava publicado, constituindo uma referência impossível de negligenciar. Não seriam necessárias pesquisas posteriores para distinguir esses aspectos da estrutura social no Brasil. Boris Fausto não menciona essa presença decisiva em meu livro, não diz como discuti o problema por intermédio dela e em sua própria medida: a exposição concreta do objeto.
Aponta, com razão, o trabalho de Caio Prado Jr. como importante em meu estudo. Mas há algo, na obra desse historiador, que não é aludido pelo resenhista e que justamente torna intempestiva a "novidade" em nome da qual minha pesquisa estaria desatualizada. Vale refrescar-lhe a memória: Caio Prado Jr. critica o estereótipo monolítico do latifúndio-escravo-comércio colonial, chamando a atenção para o processo integrador que se desenvolve no plano produtivo, gerando diferenciação socioeconômica, com áreas voltadas para subsistência (inclusive para suprir o setor mercantil) estabelecidas por grupos livres.
Meu ponto de partida foi exatamente esse rumo no desenvolvimento socioeconômico orientado pelos vínculos entre trabalho-livre e trabalho escravo, definindo o sentido da produção colonial moderna, essencialmente diversa do "escravismo" antigo. Basta ler a introdução ao livro, onde enfrento a questão dos nexos intrínsecos entre escravidão moderna e trabalho livre e questiono, nos seus fundamentos, a tese da exterioridade desses termos e os supostos limites intransponíveis entre escravismo e capitalismo, como reza a ortodoxia marxista.
Assim sendo, Boris Fausto deixa de registrar o que está no centro de meu trabalho -a presença do trabalho livre, enquanto fenômeno constitutivo do mundo moderno, pela mediação de seu contrário, o trabalho escravo, aqui, no além-mar, fora ou dentro dos empreendimentos em que o capital aparece imediatamente. Esse processo norteia minhas interpretações, o que torna derrisório dizer que não atentei para os setores livres voltados para uma produção diferenciada.
Agora, pretender que esses grupos estejam fora do movimento inteiro do capitalismo nascente, que independam da grande propriedade, é fábula que precisaria estar melhor contada: as referidas pesquisas não mudam, em nada, a pertinácia de meu estudo; elas repõem exatamente o que critico, brotando das vetustas teses que isolam trabalho livre e escravismo. Nesse sentido, elas é que são envelhecidas, já antes de nascer.
A objeção de Boris Fausto expressa uma forma de pensar, diametralmente oposta à minha, que fragmenta o processo histórico e lhe furta o sentido: aqui pequenos grupos autônomos, acolá grande propriedade mercantil, afastando o complexo entrelaçar, visível ou abscôndito, entre esses pólos. Estamos prontos, com esses retalhos, para costurar os sistemas semi... semi. Desse quadro vive a tese da incompatibilidade entre "escravismo" e capitalismo, e sua consequência política, a passagem "dialética" pela burguesia. Ruiu o Muro de Berlim, mas a ideologia reitera sempre os mesmos caminhos.
Por tudo isto, Fausto engana-se ao dizer que dirijo uma crítica à noção de "sociedade tradicional". Faço também a critica desse "tipo", mas em contexto maior, discutindo o suposto "modo de produção escravista", tido por lógica e historicamente anterior ao capitalismo, com as esdrúxulas formações sociais por aqui desabrochadas: estamental, de castas, feudal, arcaica, tradicional, patriarcal, patrimonial, atrasada, periférica, justamente com a ladainha dos semi... semi, pré... pré... , prestidigitações que abriam a larga via das alianças para não perder o trem da história liderado pela burguesia. Doutrina e prática que explicam a resistência da ideologia oficial.
À luz ortodoxa, o escravismo, e não o capitalismo, seria o núcleo gerador do atraso, da violência. Ainda não havia a estrutura liberal "clássica", nem classes, consciência e luta de classes. Nessas explicações pelo não existente -num "telos" posto pelo mundo burguês- jamais se aventava que as formas de dominação concretamente aqui geradas obstruíssem qualquer capacidade crítica, independência da vontade, projetos de mudança social. Com a "globalização", pode-se dispensar o escravismo como imagem soteriológica que livra o capitalismo de todo mal: mas a ótica da ortodoxia, com seus deslocamentos, ainda é necessária para manter sua justificação e vantagens. Muda-se um pouco o ângulo, o holofote ilumina o mesmo foco.
Ao fio dos anos, livro e autora permaneceram fiéis um ao outro, não porque eu deixasse de trilhar novos caminhos; mas, por vário que tenha sido meu campo de preocupações, há um nítido fio condutor entrelaçando-as: são essas teses, na verdade, que Boris Fausto condena pelo viés de uma resenha. A censura e polícia doutrinárias continuam firmes. Enfrentar teórica e praticamente o saber dominante não é tarefa comezinha. "Homens Livres" foi escrito há 33 anos, mas publicado há 27 (1969). No intervalo, ficou emudecido pelo veto das assessorias ortodoxas, nas editoras, à direita e à esquerda: de um lado, porque o livro era marxista, de outro, porque não rezava pela cartilha. Publicado, o livro incomodou bastante: desconhecer é uma eficiente forma de excluir e muito silêncio se fez em torno dele.
Hoje, as proposições teóricas, as análises empíricas, os resultados históricos expostos em suas páginas fazem dele um livro atualíssimo. Ao contrário do afirmado pelo resenhista, ele resistiu ao tempo, e os significados que desentranhou em nossa cultura, reiterados no presente, tornam sua presença na cena editorial ainda mais desconfortável. E, por cima, revestido de prestígio que não tinha ao surgir pela primeira vez: daí o "clássico" -mumificante- atribuído contraditoriamente à pretensa velharia que mais seria o caso de enterrar, para sossego dos interessados.
Mas o que incomoda? O livro traz algo essencial, estrategicamente excluído na resenha: para usar palavras de Nabuco, a alma humana posta em leilão, com seus fundamentos, processos e resultados produzidos pela magia do mercado. Tudo se vende, compra, troca, na esteira da velha dominação pessoal reativada nos salões oficiais de hoje. "Negociar" tornou-se virtude política. As evidências empíricas espalham-se pelas folhas dos periódicos. A estrutura mais profunda, a chave do sucesso no torneio das vontades, na corrupção do juízo e da prática, está no gesto, agressivo e afável, que se chama favor, sobejamente discutido nos "Homens Livres".
Não uso esse conceito como um princípio organizatório das relações sociais e econômicas oposto à racionalidade impessoal do capitalismo. Pelo contrário, ele se desenvolveu, entre nós, alojado na expansão do capital, no setor produtivo e financeiro, na constituição do Estado. Esses prismas, omitidos na resenha, são minuciosamente expostos por mim.
Aponto, aqui, algumas facetas desse horizonte de favores: então como hoje, concentrou-se o poder, correlato à centralização político-administrativa e ao confisco econômico-financeiro. Províncias e municípios viram-se expropriados, tolhidos nas menores providências. Assim, uma racionalização dos meios administrativos tornou-se difícil e nem foi pretendida: a burocracia autônoma entrava outras formas de poder; por isso, com a alternância dos governos, os cargos eram esvaziados e preenchidos segundo conveniências dos novos poderes. Fausto alude ao travamento do processo burocrático, mas cala sobre sua gênese e resultados.
Sem burocracia estável e contínua, amplia-se a manobra política, permitindo que os vários estágios do poder fiquem pendurados na cadeia das vontades centrais. Essa mesmíssima técnica está hoje rediviva. Não poderia ser mais clara a conotação atual da "reforma" do Estado: torna "mexível" o cargo público, liberando os postos a serem distribuídos, somados às funções "de confiança". O esvaziamento das sedes intermediárias do Estado hoje é gritante: basta lembrar a "lei Kandir", pela qual o Planalto suga milhões sem retorno. Às alianças, acopla-se a exploração do aparelho estatal: como aceitar um livro que desvela os arcanos e as consequências dessa prática?
No plano dos Estados, São Paulo é dos mais atingidos; no municipal, Porto Alegre é bom exemplo. Hoje, aquela prefeitura investe R$ 1.390,00 por aluno-ano no primeiro grau; a proposta de Brasília é reduzir esse custo para R$ 600,00. Enquanto isso, dinheiros públicos vão para as "bases" do poder: banqueiros corruptos, grupos privilegiados, congressistas vendidos, escolas privadas deficientes. Esses princípios da corrupção, destruidores da vontade autônoma -domínio deletério e violento que permanece encoberto- estão examinadas nos "Homens Livres", nas esferas pública e particular, atravessadas pelo favor acoplado ao dinheiro. Essas análises não poderiam ser mais contundentes para os dias atuais. Como não silenciar o livro dissidente?
Justamente na parte relativa a esse processo mutilador da consciência Boris Fausto me acusa de "robotizar" o homem livre. Essa imputação é sem respaldo empírico ou teórico. Uma imensa tradição do saber vem esmiuçando o enigma de como as pessoas deixam-se dirigir por ilusões recebendo-as como se fossem de sua própria iniciativa e para o seu próprio bem, colaborando no processo de submissão. Essa cumplicidade mostra-se operativa: desde o jovem que Platão descreve comprando o pseudo-saber do sofista, convencido de que recebe ciência verdadeira -prestidigitação em que um ilude e o outro se auto-engana- até o proletário que Marx descreve orientando-se pelo "telos" do capitalismo -fetiche em que um gera a ilusão e o outro reforça as suas aparências- o complexo problema tem sido arquidebatido.
Minhas referências teóricas, na época, foram o idealismo alemão, Marx e o grupo de Frankfurt; o protocolo empírico analisado está à disposição do leitor. Das duas, uma: ou todas aquelas fontes, com suas diferenças, robotizam, ou eu fantasiei um rigor que não atingi. É possível, mas, para demonstrá-lo, é mister passar pelo quadro teórico em que me situei, aferir a leitura que dele fiz, escrutinar o tratamento dado ao material empírico.
Sem demonstração, as assertivas se desfazem, sendo essa a consequência da nota ligeira com que Boris Fausto grava as minhas análises em um ponto nevrálgico. A escolha desse núcleo não é casual e a técnica é a mesma: assestar o holofote no alvo decisivo -a dominação pessoal, o favor e seus resultados-, cuja análise não poderia melhor expor as técnicas de controle hoje mobilizadas pelo governo. O leitor alheio às questões tratadas não percebe a ligação entre a censura emitida e os interesses a ela subjacentes; apenas guarda as restrições do resenhista.
Em seu texto, juízos valorativos carregados de pressupostos políticos simulam questionamentos científicos. Abordo mais uma das objeções assim formuladas pelo resenhista. Com suas rápidas investidas, procura invalidar a documentação utilizada: especializados na violência, os processos crimes ressaltariam esse traço. Diz ele que me "defendo" ao enunciar que a violência sobressai porque a documentação, por seu caráter, expressa um componente básico, entranhado no capitalismo, na pobreza, no favor, na dominação.
Não me "defendo": qualifico a documentação usada. Não fui a primeira, nem a última, em discernir, por meio dos processos repressivos da sociedade, as suas determinações fundamentais e os seus desenvolvimentos. A lembrança dos pensadores que se debruçaram sobre o problema seria enorme, e cada um a seu modo -em perspectivas diferentes ou sentidos opostos, pela mediação da natureza, das formações políticas, da consciência ou do inconsciente, no campo da filosofia, das ciências sociais, jurídicas, médicas, na literatura e nas artes figurativas- perscruta essa dimensão, seja para legitimá-la em seus fundamentos e princípios, seja para levar sua crítica às últimas consequências.
Fausto pretende invalidar a documentação e esmaecer suas perturbadoras evidências, dizendo que os processos crimes limitam-se a âmbitos restritos. Isto bem mostra que nunca atentou para esse acervo. O leitor pode verificar seu desacerto apenas percorrendo o longo e comovente testemunho que abre o primeiro capítulo do livro: todos os aspectos da cultura, recolhidos no conceito de comunidade, desdobram-se diante de nossos olhos -integração à natureza, relações socioeconômicas, sentimentos, ideário, religiosidade-, associados a um outro elemento excluído daquela teoria: a grande violência que lhes dá sentido. Sobretudo a linguagem nos transporta para um mundo concretamente representado.
A atitude do resenhista explica-se quando nos damos conta de sua apologia do governo atual. Aos adeptos da "modernidade" não interessa ver suas práticas iluminadas por um passado que abertamente reativam, mobilizando técnicas que centralizam o poder, concentram a riqueza, estiolam a vontade, estimulam a corrupção, "para o bem do país". A pertinácia das análises dos "Homens Livres" não poderia ser maior, e Boris Fausto não poderia mesmo tê-lo acolhido positivamente. Nada mais eloquente para ilustrar sua adesão oficial que as palavras com que caracteriza a "História do Brasil", o manual que escreveu: um percurso dos "tupi aos tucanos", novo "telos" de nossa cultura.
Boris Fausto está colocado em um terreno doutrinário e político diametralmente oposto ao campo teórico e prático em que eu própria me situo. Sobre esse choque, sua resenha permanece muda e queda, nem uma palavra informa o leitor, aparentando descrever os conteúdos do livro. Se é difícil neutralizar a carga valorativa em que nos movemos, é preciso controlá-la expondo os seus pressupostos e implicações. No quadro normativo que sustenta os juízos do resenhista, "Homens Livres" ganha um estatuto bem esquisito: um "clássico" que não recebe uma única, peregrina, solitária, recomendação de leitura, para qualquer de seus pontos.


Maria Sylvia Carvalho Franco é professora titular do departamento de filosofia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e professora aposentada do departamento de filosofia da USP. É autora de "Homens Livres na Ordem Escravocrata", que acaba de ser reeditado pela Editora da Unesp.



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