São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 1997.



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LITERATURA FRANCESA


'Métodos' reúne artigos, conferências e anotações de Ponge
O poeta da compaixão

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Este livro reúne duas conferências, alguns artigos e muitas anotações do poeta Francis Ponge a respeito de seu próprio "método criativo". É um pouco estranho que, antes de publicar-se uma tradução dos poemas do autor, o leitor brasileiro venha a tomar contato com os comentários que este faz a respeito de sua obra.
Mas a obra de Francis Ponge é, ela mesma, um verdadeiro "programa"; é como se cada texto fosse apenas (apenas?) a ilustração de um intento mais amplo, que ele define deste modo: "O que me obriga a escrever é a emoção provocada pelo mutismo das coisas que nos cercam". Que coisas? As mais banais -uma toalha de banho, um pedaço de carne crua, uma pedra... ou um restaurante, um telefone, um caracol.

QUEM FOI
Francis Ponge (1899-1988) - poeta francês, Ponge chegou a estudar direito, mas não terminou o curso. Nos anos 30, flertou com os surrealistas. Pouco depois, tornou-se líder sindical dos funcionários da Ed. Hachette.



Na Segunda Guerra, Ponge participou ativamente da Resistência. Terminada a guerra, dirigiu a seção literária do jornal comunista "L'Action". Poeta reconhecido, realiza, nos anos 50 e 60, conferências em vários países e chega a lecionar na Universidade de Columbia (EUA).
A experiência de ler um texto de Francis Ponge é a de acompanhar uma espécie de investigação "científica": como definir este pedregulho? Este pedaço de carne? Metáforas aparecem sem nenhum sentimentalismo, sem nenhuma exaltação lírica. O pedaço de carne pode ser comparado a uma fábrica, por exemplo -só que a metáfora não será aqui um "transporte" (eis o que sugere a etimologia do termo), mas sim um instrumento de investigação, de estabelecimento das diferenças, tanto quanto das semelhanças, entre uma coisa e outra. Quem leu João Cabral de Melo Neto -um dos admiradores de Ponge no Brasil- sabe de que modo, e com que desespero, isso funciona.
Só que estamos diante de um livro em que Ponge visa explicar seu "método", mais do que pô-lo em prática. É visível seu embaraço (especialmente nas conferências, pois ele detestava falar em público). Seria impossível -mas desejável- um texto "pongiano" explicando a poesia de Ponge. O que ressalta neste livro é sobretudo a modéstia, o embaraço.
"Sem dúvida, não sou lá muito inteligente: em todo caso as idéias não são o meu forte." Assim Ponge começa o texto "My Creative Method". Na conferência denominada "Tentativa Oral", ele diz: "Nada obriga que um escritor seja minimamente feito para falar... não manejo com facilidade as idéias abstratas."
Ele repete isto o tempo todo: idéias não são o seu forte, as opiniões o conduzem mais do que ele as conduz, as outras pessoas "me convencem, me desmontam com facilidade". É por solidariedade ao mutismo das coisas, contra a loquacidade das pessoas, portanto, que ele escreve. No final da conferência intitulada "Tentativa Oral", por exemplo, Ponge inclinou-se para beijar a mesa: "Querida mesa, adeus! (Sabem, se gosto dela, é porque nada nela permite pensar que ela se toma por um piano.)".

A OBRA
Métodos - Francis Ponge. Tradução e apresentação de Leda Tenório da Motta.
Imago (r. Santos Rodrigues, 201-A, CEP 20250-430, RJ, tel. 021/502-9092).
152 págs. R$ 14,00.


Do mesmo modo, talvez estejamos errados em tomar Ponge como um teórico da linguagem poética. No fundo, o que lemos em "Métodos" sobre a poesia não difere muito de uma sólida tradição francesa -e moderna.
Há, em primeiro lugar, a certeza de que a literatura serve para purificar a linguagem cotidiana. "Dar um sentido mais puro às palavras da tribo", o verso de Mallarmé, ecoa nas seguintes considerações de Ponge: "Suponham que cada pintor, o mais delicado deles, Matisse por exemplo... para fazer seus quadros, só tivesse um grande pote de tinta vermelha, um grande pote de amarelo... o mesmo pote onde todos os pintores, e não somente todos os pintores, todos os zeladores de prédios, todos os encarregados de canteiros de obras, todos os camponeses tivessem molhado o pincel... eles mexeram o pincel lá dentro, e depois vem Matisse e pega esse azul, esse vermelho, imundos desde sempre ... e é preciso que ele dê a impressão de tinta pura."
Cada palavra, assim, perdeu sua pureza, está conspurcada. Do mesmo modo, Proust achava que a missão do escritor é oposta à de Deus: "Se Deus Pai criou as coisas ao nomeá-las, é ao tirar o nome delas, ou ao lhes dar outro, que o artista as recria".
A luta contra o hábito das significações estabelecidas, contra a crosta do lugar-comum, contra as palavras que só se "referem" instrumentalmente a um significado conhecido (Valéry) é sem dúvida uma das missões da literatura, da poesia em especial. Neste aspecto, as considerações de Ponge não são novidade. Ao contrário, são clássicas -tanto no sentido em que Ponge toma La Fontaine (e Buffon) como modelo de precisão textual, quanto no sentido em que Ponge não se afasta de uma teoria da linguagem na qual o grande problema é o substantivo, a relação entre "o nome" e "a coisa".
Preso ao modelo clássico, e estimulado por uma modernidade muito "francesa" que se opõe a esse modelo sem se libertar dele, Ponge considera toda a poesia como uma questão de "purificar os substantivos". Se estou correto nesta avaliação, seus textos sobre a linguagem e sobre a própria poesia não são indispensáveis.
O que assegura a grandeza deste poeta é, antes que uma teoria, uma atitude: a da compaixão. Ele se "anula" em benefício da pedra, do pedaço de carne etc. Imagina a fala de uma árvore, por exemplo, em "Tentativa Oral". Beija a mesa diante da qual fazia uma conferência. É capaz de definir, neste livro, o outono como "um abatimento volúvel".
A explicação disto está na página 112. É em momentos assim, onde Ponge é mais poeta do que teórico, que este livro mostra do que é capaz. Vale a pena ler o que Ponge diz de si mesmo: seu "programa" está tão perto do que escreveu de fato, que forçosamente levará o leitor a conhecê-lo melhor. "Métodos" é mais um convite que uma obra acabada; o que talvez seja verdadeiro com relação a tudo que Ponge escreveu.



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