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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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Defesa da fragmentação pós-moderna da cultura e literatura despreza esforço de compreensão da sociedade realizado por críticos como Antonio Candido

Um chapéu de muitos bicos

A forma literária periférica não paga pedágio à precariedade das formações sociais

Salete de Almeida Cara
especial para a Folha

Pelo menos uma coisa hoje em dia é certa: está difícil para o crítico literário fazer vista grossa ao andamento da ordem mundial. Numa impressão rápida, parece que as condições desastrosas do estágio multinacional informático do capital estão se impondo de tal modo que virou lugar-comum o que antes era motivo de polêmica: há uma ligação particular entre literatura e sociedade. Com que então a auto-suficiência do especialista, com sua aposta numa higiênica ruptura entre as complexidades das formas sociais e as das formas literárias, estaria definitivamente abalada? A negação dessas conexões serviu para fazer brilhar gloriosamente a independência estética, com o efeito perverso de jogar na lata do lixo uma boa pista no esforço de compreensão da sociedade contemporânea, pois até mesmo uma forma literária mal resolvida pode revelar alguns desvãos da realidade e dos homens. Dois artigos publicados há pouco na edição do Mais! de 16/11 (um de Silviano Santiago, outro de Luiz Costa Lima) mostram bem o que vem acontecendo. Os dois tratam, cada um a seu modo, da situação da cultura e da literatura no mundo hoje, e por isso vou tomá-los como exemplos pontuais de um conjunto maior e diversificado. O quadro é curioso, não se restringe à vida intelectual brasileira nem latino-americana e merece atenção.

Objetos pulverizados
A maior dificuldade continua sendo encontrar o lugar de onde armar o foco crítico. Preocupado com a fragmentação pós-moderna da atividade literária, Silviano Santiago se nega a a procurar os culpados, para não cair em "becos sem saída circunstanciais e individualizados".
Mas a própria enumeração que faz dos agentes possíveis -a vida pós-moderna, o escritor, o intelectual, o leitor, os meios de comunicação de massa, o processo democrático- deixa claro que respeita o mandamento hegemônico de desconsiderar a unidade real (mas não igual, como se sabe) do mundo capitalista.
De modo que ele acaba também pulverizando os seus objetos, ao tratar de cada coisa em seu lugar: em raias diferentes, o escritor brasileiro exibe déficit crítico em relação ao mundo e à língua, o grande escritor exibe responsabilidade, o escritor premiado tem poucos leitores, o escritor de sucesso vende a realidade neoliberal e a literatura feminista e confessional -nicho criado pela própria pulverização pós-moderna-, a priori e para sempre preservada da desilusão do presente, explode sozinha o cânone metafórico ocidental!
A armadilha fica mais clara nos arranjos de uma argumentação. No caso, os conceitos de centro e periferia são usados para dar conta de impasses específicos, num e noutro lugar, no campo das produções simbólicas. Mas a subdivisão de critérios independentes entre si (socioeconômicos ou psicoculturais) para definir os conceitos mais a escolha dos segundos descartam as conexões entre organização social e práticas culturais implícitas num ponto de vista materialista. Centro e periferia servem, assim, para adaptar a categoria "social" num outro contexto teórico, atualizando aquele gesto de higienização do especialista.
O artigo de Costa Lima, que comento desde o início deste parágrafo, classifica procedimentos psicoculturais de sujeitos centrais e periféricos, em razão das diferenças nos usos que fazem de moldes culturais já estabelecidos (manutenção ou exploração no centro, imitação ou explosão na periferia), dando um pretenso norte emancipatório para o sujeito periférico. De resto, a explosão depende da descontinuidade e dos saltos como forma de percurso histórico próprio da periferia, donde a absoluta falta de importância da razão crítica como experiência acumulada.
Se um uso provoca disrupção, ele é um verdadeiro milagre, gênese espontânea de precursor na arte e de ativista na política que já nem dependem de estarem no Brasil, no Egito ou nos Estados Unidos (como no comentário sobre Edward Said). Abalada a classificação genérica, vem à tona a falácia de uma apreensão psicossocial da periferia, desconectada de suas relações com o contexto de mundialização capitalista, no interior do qual ela é elemento constitutivo desde o processo da colonização. Na boa expressão de Francisco de Oliveira, trata-se do "caráter "produtivo" do atraso como condômino da expansão capitalista".
Aquele é também o procedimento dos atualíssimos esforços de Alberto Moreiras, da Universidade Duke, que lida com espaços terceiro-mundistas como "terceiro espaço" nem central nem periférico, onde surgem obras literárias e práticas culturais alternativas graças aos códigos locais de recepção.
Armado o lugar mais amplo do foco, a tarefa de estabelecer as conexões entre formas sociais e formas literárias, na linhagem crítica aberta por Antonio Candido, será, no entanto, trabalhosa. Até porque a forma literária periférica não paga pedágio à precariedade das formações sociais (pode haver ótima literatura em país atrasado), não porque ela pertença a um mundo à parte, da estética ou dos anjos, mas porque organiza de modo imprevisível as formas da experiência prática, individuais e coletivas, ainda que precárias.
No auge da euforia nacionalista do período militar, Antonio Candido punha o dedo nessa ferida justo quando, pela esquerda, a "mística terceiro-mundista" era alternativa ao imperialismo e ao stalinismo. A expressão é de Roberto Schwarz nos anos 80, encerrados em clima de desilusão quanto ao nosso destino. Apenas o nosso? As independências dos países africanos ainda eram recentes. Nos fins dos anos 90, ele volta à carga, lembrando que perda de autonomia e perplexidades já eram evidentes também nos países adiantados.
Se é verdade que os resultados mais catastróficos do capitalismo têm sido visíveis, em primeira mão, nas sociedades mais problemáticas, pelo menos já sabemos que há alguma coisa no ar além dos aviões da United e da American Airlines. Desmonte das organizações político-partidárias e marginalização social alimentam o solo ideológico do que pode ser chamado fragmentação pós-moderna (Silviano Santiago observou que o solo brasileiro fertilizou e conferiu universalidade ao fenômeno Paulo Coelho). O que mais?
Não foi à toa que um artigo de Franco Moretti na "New Left Review" ("Conjectures on World Literature") soou como provocação: o critério literário comparatista no capitalismo mundial, desigual e combinado, pressupõe o moderno romance periférico a exigir novas categorias de análise e novo método crítico.
Choveram objeções: é livre o movimento de formas e temas entre centro e periferias, ou, ainda, há risco de homologia entre desigualdades do mundo econômico e dos sistemas literários. Moretti respondeu a todas no último mês de março, pela mesma "New Left Review", mas sem avançar no assunto e com boa vontade até para introduzir uma "semiperiferia" como "área transicional".
O que pode ter adiado sua ida ao ponto, que reconhece ser uma questão de forma (social e literária), citando seu interlocutor periférico Roberto Schwarz. E que ganharia impulso com uma reflexão funda sobre o ensaio de Antonio Candido "De Cortiço a Cortiço" (cuja primeira versão é, pasmem, de 1974!), lição teórica seminal a desafiar o debate sobre método, como bem viu o crítico periférico já citado, mas que, além disso, atento às determinações do tempo, é fundamentalmente... uma brilhante análise literária.


Salete de Almeida Cara é professora de linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e organizadora de "As Melhores Crônicas de Machado de Assis" (Global).


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