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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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Muito além da internet

Kai Pfaffenbach - 12.mar.2003/Reuters
Soldado norte-americano lê livro em área de segurança localizada nas imediações da Cidade do Kuait



Em palestra na Biblioteca de Alexandria, no Egito, o autor de "O Nome da Rosa" explica por que a expansão da grande rede não ameaça a existência dos livros


por Umberto Eco

Temos três tipos de memória. O primeiro é orgânico, que é a memória feita de carne e de sangue e administrada pelo nosso cérebro. O segundo é mineral, e, nesse sentido, a humanidade conheceu dois tipos de memória mineral: milênios atrás, foi essa a memória representada por tijolos de argila e por obeliscos, muito conhecidos neste país, nos quais as pessoas entalhavam seus textos. Porém esse segundo tipo é também a memória eletrônica dos computadores de hoje, que tem por base o silício.
Conhecemos também outro tipo de memória, a memória vegetal, representada pelos primeiros papiros, de novo muito conhecidos neste país, e posteriormente pelos livros, feitos de papel. Permitam que eu desconsidere o fato de que, em certo momento, o velino dos primeiros códices foi de origem orgânica e o fato de que o primeiro papel foi feito de trapos, e não de madeira. Permitam que, no interesse da simplicidade, eu fale em memória vegetal para referir-me aos livros.
Este local foi, no passado, e será, no futuro, dedicado à conservação de livros; portanto é e será um templo da memória vegetal. As bibliotecas, ao longo dos séculos, têm sido o meio mais importante de conservar nosso saber coletivo. Foram e são ainda uma espécie de cérebro universal onde podemos reaver o que esquecemos e o que ainda não sabemos.
Se me permitirem usar essa metáfora, uma biblioteca é a melhor imitação possível, por meios humanos, de uma mente divina, onde o universo inteiro é visto e compreendido ao mesmo tempo. Uma pessoa capaz de guardar em sua mente a informação suprida por uma grande biblioteca emularia, de certo modo, com a mente de Deus. Em outras palavras, inventamos bibliotecas porque sabemos que não possuímos poderes divinos, mas tentamos ao máximo imitá-los.
Construir, ou melhor, reconstruir hoje uma das mais célebres bibliotecas do mundo pode soar como um desafio, uma provocação. Acontece, não raro, que em artigos de jornais ou em ensaios universitários alguns autores, diante da nova era do computador e da internet, se refiram à possível "morte dos livros". Porém, se os livros estiverem em via de desaparecer, como ocorreu com os obeliscos ou com os tijolos de argila das civilizações antigas, não será esse um bom motivo para abolir as bibliotecas. Ao contrário, devem sobreviver como museus que guardam as descobertas do passado, assim como guardamos a Pedra de Rosetta [bloco de basalto negro, com inscrições em egípcio e grego, descoberto pelos soldados de Napoleão, em 1799, a 56 km de Alexandria e que se tornaria fundamental para a compreensão da civilização egípcia] num museu porque já não estamos acostumados a entalhar nossos documentos em superfícies minerais.
Mas o meu elogio às bibliotecas será um pouco mais otimista. Pertenço àqueles que ainda acreditam que livros impressos têm um futuro e que todos os receios "à propos" de seu desaparecimento são apenas o exemplo derradeiro de outros medos ou de terrores milenaristas em torno do fim de alguma coisa, inclusive do mundo.
Em muitas entrevistas, fui obrigado a responder perguntas como: "Os novos meios eletrônicos tornarão os livros obsoletos? Será que a internet tornará a literatura obsoleta? A civilização hipertextual eliminará a própria idéia de autoria?". Como podemos ver, se tivermos uma mente normal e bem equilibrada, essas são perguntas diferentes e, levando em conta o tom apreensivo em que são formuladas, podemos pensar que o entrevistador se sentiria reconfortado ao respondermos: "Não, fique tranquilo, está tudo bem". Engano.
Se dissermos a essas pessoas que os livros, a literatura e a autoria não vão desaparecer, elas se mostrarão desesperadas. Mas então, onde está o furo de reportagem? Publicar a notícia de que um vencedor do Prêmio Nobel morreu é notícia; dizer que ele está vivo e passa bem não interessa a ninguém, salvo a ele mesmo, suponho.
O que pretendo fazer, hoje, é tentar desemaranhar uma mixórdia de receios entrelaçados acerca de problemas diversos. Clarear nossas idéias acerca desses problemas diversos pode também nos ajudar a compreender melhor o que, em geral, entendemos por livro, texto, literatura, interpretação e assim por diante. Desse modo, veremos como, a partir de uma pergunta tola, se podem produzir muitas respostas sábias, e essa provavelmente é a função cultural de entrevistas ingênuas.

O produto da máquina não é mais linear, é uma explosão de fogos de artifício semióticos; seu modelo é menos uma linha reta do que uma verdadeira galáxia

Comecemos com uma história egípcia, muito embora contada por um grego. Segundo Platão, em "Fedro", quando Hermes -ou Thot, o suposto inventor da escrita- apresentou sua invenção para o faraó Thamus, este louvou tal técnica inaudita, que haveria de permitir aos seres humanos recordarem aquilo que, de outro modo, esqueceriam. Mas Thamus não ficou inteiramente satisfeito. "Meu habilidoso Thot", disse ele, "a memória é um dom importante que se deve manter vivo mediante um exercício contínuo. Graças a sua invenção, as pessoas não serão mais obrigadas a exercitar a memória. Lembrarão coisas não em razão de um esforço interior, mas apenas em virtude de um expediente exterior".

Platão contra a escrita
Podemos compreender a preocupação de Thamus. Escrever, como qualquer nova invenção tecnológica, entorpeceria a faculdade humana que almejava substituir e ampliar. Escrever era perigoso porque reduzia o poder da mente ao fornecer aos seres humanos uma alma petrificada, uma caricatura da mente, uma memória mineral.
O texto de Platão é irônico, está claro. Platão escrevia sua tese contra a escrita. Mas também fingia que seu discurso era proferido por Sócrates, que não escrevia (como não publicava, sucumbiu no curso da batalha acadêmica, cujo lema é: publicar ou morrer). Hoje, ninguém compartilha as preocupações de Thamus por duas razões muito simples. Primeiramente, sabemos que livros não são um meio de fazer outra pessoa pensar em nosso lugar; ao contrário, são máquinas que suscitam outros pensamentos. Só depois da invenção da escrita, foi possível escrever uma obra-prima de memória espontânea como "Em Busca do Tempo Perdido".
Em segundo lugar, se de vez em quando as pessoas precisavam exercitar a memória para lembrar coisas, após a invenção da escrita tiveram também de exercitar a memória para lembrar dos livros. Livros desafiam e aprimoram a memória; não a entorpecem. No entanto o faraó dava testemunho de um temor eterno: o temor de que uma nova proeza tecnológica pudesse matar algo que consideramos precioso e frutífero.
Usei o verbo matar de propósito porque, cerca de 14 séculos mais tarde, Victor Hugo, em seu romance "Nossa Senhora de Paris", narrou a história de um padre, Claude Frollo, que olhava tristonho para as torres da sua catedral. A história de "Nossa Senhora de Paris" se passa no século 15, após a invenção da imprensa. Antes disso, os manuscritos estavam reservados a uma elite restrita de pessoas alfabetizadas e, para ensinar às massas as histórias da Bíblia, a vida de Cristo e dos santos, os princípios morais, até mesmo os feitos da história nacional ou as noções mais elementares de geografia e de ciências naturais (a natureza de povos desconhecidos e as virtudes de pedras e de ervas), só se podia contar com as imagens de uma catedral. Uma catedral medieval era uma espécie de programa de tevê permanente e imutável, destinado a transmitir às pessoas tudo o que era indispensável para a sua vida cotidiana, assim como para a sua salvação eterna. Agora, porém, Frollo tem sobre a sua mesa um livro impresso e ele sussurra: "Ceci tuera cela" -isto vai matar aquilo ou, em outras palavras, o livro vai matar a catedral, o alfabeto vai matar as imagens. O livro vai desviar as pessoas de seus valores mais importantes, incentivar informação supérflua, a livre interpretação das Escrituras sagradas, uma curiosidade insana. Na década de 1960, Marshall McLuhan escreveu seu livro "A Galáxia de Gutemberg", no qual declarava que a maneira linear de pensar, respaldada pela invenção da imprensa, estava em via de ser substituída por um modo mais global de percepção e de compreensão, por meio de imagens de TV ou de outros tipos de aparelho eletrônico. Se não McLuhan, certamente muitos de seus leitores apontaram o dedo para a tela da TV e depois para o livro impresso e disseram: "Isto vai matar aquilo". Se ainda estivesse entre nós, hoje, McLuhan seria o primeiro a escrever algo como "Gutemberg contra-ataca". Sem dúvida, um computador é um instrumento por meio do qual é possível produzir e editar imagens, sem dúvida as instruções são fornecidas por ícones; mas também não há dúvida de que o computador se tornou, acima de tudo, um instrumento alfabético. Em sua tela, correm palavras e linhas escritas e, para usar um computador, é preciso saber ler e escrever.

Galáxias de Gutemberg
Há diferenças entre a primeira galáxia de Gutemberg e a segunda? Muitas. Primeiro, só os processadores de texto arqueológicos do início da década de 80 ofereciam um tipo de comunicação escrita linear. Hoje, os computadores não são mais lineares, pois apresentam uma estrutura hipertextual. Curiosamente, o computador nasceu como uma máquina de Turing, capaz de dar um passo de cada vez, e, de fato, nas profundezas da máquina, a linguagem ainda opera dessa maneira, por uma lógica binária, de zero-um. Porém o produto da máquina não é mais linear: é uma explosão de fogos de artifício semióticos. Seu modelo é menos uma linha reta do que uma verdadeira galáxia, onde todos podem captar nexos inesperados entre estrelas diferentes para formar uma nova imagem celestial em qualquer novo ponto de navegação. Contudo é exatamente nesse ponto que a nossa atividade de desemaranhar deve ter início, porque, por estrutura hipertextual, entendemos em geral dois fenômenos muito distintos. Primeiro, há o texto hipertextual. Num livro tradicional, deve-se ler da esquerda para a direita (ou da direita para a esquerda, segundo culturas diversas) de um modo linear. Pode-se obviamente saltar páginas, pode-se, depois de chegar à página 300, voltar para verificar ou reler algo na página 10, mas isso implica trabalho físico. Em contraste, um texto hipertextual é uma rede multidimensional ou um labirinto em que cada ponto ou nó pode ser potencialmente ligado a qualquer outro nó. Em segundo lugar, há o hipertexto sistêmico. A "www" é a Grande Mãe de Todos os Hipertextos, uma biblioteca mundial onde podemos ou poderemos, em breve, pegar todos os livros que quisermos. A internet é o sistema geral de todos os hipertextos existentes. Tal diferença entre texto e sistema é imensamente importante e devemos voltar a ela. Por ora, deixem-me dar cabo da pergunta mais ingênua que se faz frequentemente, na qual essa diferença ainda não está tão nítida. Mas é ao responder essa primeira pergunta que poderemos esclarecer nossa questão posterior. A pergunta ingênua é: "Os disquetes hipertextuais, a internet ou os sistemas de multimídia tornaram os livros obsoletos?". Com essa pergunta, chegamos ao capítulo final na nossa história isto-vai-matar-aquilo. Mas mesmo essa pergunta é confusa, pois pode ser formulada de duas maneiras: (a) os livros desaparecerão como objetos físicos? e (b) os livros desaparecerão como objetos virtuais? Permitam-me responder à primeira pergunta. Mesmo após a invenção da imprensa, os livros nunca foram o único instrumento para adquirir informação. Havia também pinturas, imagens populares impressas, lições orais e assim por diante. Simplesmente, os livros provaram ser o instrumento mais adequado para transmitir informação. Existem dois tipos de livros: os que são para ler e os que são para consultar. No tocante aos livros para ler, a maneira normal de ler é a que eu chamaria de "maneira de história de detetive". Começa-se da página um, onde o autor conta que um crime foi cometido, seguem-se todas as trilhas do processo investigativo até o fim e se descobre, afinal, que o culpado era o mordomo. Fim do livro e fim da experiência de leitura. Notem que o mesmo ocorre até quando se lê, digamos, um tratado de filosofia. O autor quer que abramos o livro na primeira página, sigamos a série de questões que propõe e vejamos como alcança determinadas conclusões finais. Sem dúvida, os estudiosos podem reler tal livro saltando de uma página para outra, na tentativa de isolar um possível nexo entre uma afirmação no primeiro capítulo e uma outra, no último. Podem também resolver isolar, digamos, cada ocorrência da palavra "idéia" numa determinada obra, saltando, desse modo, centenas de páginas a fim de concentrar a atenção apenas em trechos que tratem dessa noção. Porém essas são maneiras de ler que um leigo consideraria antinaturais. Além disso, há os livros de consulta, como manuais e enciclopédias. As enciclopédias são concebidas com o propósito de serem consultadas e jamais lidas da primeira à última página. Uma pessoa que lesse a "Enciclopédia Britânica" toda noite antes de dormir, da primeira à última página, seria um personagem cômico. Em geral, pega-se um volume de uma enciclopédia para saber ou lembrar quando Napoleão morreu ou qual é a fórmula química do ácido sulfúrico. Os estudiosos usam a enciclopédia de um modo mais sofisticado.

Napoleão e Kant
Por exemplo, se quisesse saber se era possível ou não Napoleão encontrar-se com Kant, eu teria de pegar o volume K e o volume N da minha enciclopédia: descubro que Napoleão nasceu em 1769 e morreu em 1821, Kant nasceu em 1724 e morreu em 1804, quando Napoleão já era imperador. Portanto não seria impossível que os dois se encontrassem. Para confirmá-lo, eu provavelmente teria de consultar uma biografia de Kant ou uma de Napoleão, mas em uma curta biografia de Napoleão, que encontrou tantas pessoas ao longo da vida, um possível encontro com Kant pode ser relegado, ao passo que, numa biografia de Kant, um encontro com Napoleão seria registrado. Em resumo, tenho de folhear muitos livros em muitas prateleiras de minha biblioteca; tenho de tomar notas a fim de, mais tarde, comparar os dados que coligi. Tudo isso me vai custar um árduo esforço físico.
De outro lado, no entanto, com o hipertexto, posso navegar por toda a rede-ciclopédia. Posso ligar um fato registrado no início a uma série de fatos disseminados ao longo de todo o texto; posso comparar o início com o fim; posso solicitar uma lista de todas palavras que começam com a letra A; posso pedir todos os trechos em que o nome de Napoleão esteja ligado ao de Kant; posso comparar as datas de seus nascimentos e de suas mortes -em resumo, posso fazer meu trabalho em poucos segundos ou minutos.
Os hipertextos, sem dúvida, tornarão obsoletos os manuais e as enciclopédias. Ontem, era possível ter uma enciclopédia inteira em CD-ROM; hoje, é possível ter a enciclopédia ligada em linha, com a vantagem de que isso permite o cruzamento de referências e a recuperação não-linear de informação. Todos os CDs e mais o computador ocuparão um quinto do espaço ocupado por uma enciclopédia impressa.
Uma enciclopédia impressa não pode ser facilmente transportada, como ocorre com um CD-ROM, e não pode ser facilmente atualizada. As prateleiras hoje ocupadas em minha casa e nas bibliotecas públicas por metros e metros de enciclopédias poderão ser eliminadas num futuro próximo e não haverá razão para lamentar o seu desaparecimento. Lembremos que, para muita gente, uma enciclopédia de muitos volumes é um sonho impossível, não, ou não só, por causa do preço dos volumes, mas em razão do preço da parede onde os volumes são dispostos em prateleiras.


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