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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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Passos seguros em meio ao caos

Em "O Desencantamento do Mundo", o sociólogo Antônio Flávio Pierucci destrincha as ocorrências desse conceito na obra do alemão Max Weber

Renato Lessa
especial para a Folha

Gabriel Cohn, no luminoso texto de orelha do livro de Antônio Flávio Pierucci, capturou definitivamente o mote: "O Desencantamento do Mundo - Todos os Passos do Conceito em Max Weber" encerra um grande e adorável paradoxo: trata-se de um livro encantador sobre a idéia weberiana de desencantamento. Impossível evitar a sensação, inevitável a remissão à sempre fina leitura de Gabriel Cohn. O encanto do livro, tal como os demônios, é legionário. A começar pela linguagem, rara combinação entre rigor, humor e leveza. A seguir, a estrutura, na qual cada passo é anunciado e cumprido, na qual nada se esconde ao leitor. Por fim, ao término de exaustiva busca na obra de Weber [1864-1920] para elucidar o enigma do desencantamento, a descoberta do encantamento como potência. Enfim, um exercício exemplar do etos cognitivo básico de Max Weber: diante de um mundo caótico e inefável, tratemos de buscar nitidez, sem interdição à possibilidade da surpresa. Mas, como faria o autor, vamos por partes -ou passos. A proposta de Pierucci é, já na partida, clara. Trata-se de "percorrer de ponta a ponta a escrita weberiana, fazendo através de toda a sua extensão um rastreamento completo, exaustivo, dos usos do termo desencantamento e de seus derivados e flexões" (pág. 23). A justificativa do empreendimento é incontroversa. A imagem (conceito? metáfora?) do desencantamento do mundo, ainda que com incidência menor na obra de Weber do que outros ícones weberianos, tais como racionalização e seus derivados, tem presença significativa e estratégica. Pela própria natureza da expressão e pelas associações que mobiliza, ela deflagra "efeitos de sentido que ultrapassam largamente seus pontos de aplicação autorais" (pág. 28). Ainda nos termos do autor, trata-se de "um significante de fraseado lírico, hipersuscetível de manipulação metafórica" (pág. 32). A idéia do livro é a de limitar o alcance da "volatilização semântica e do disparate, da tolice" (pág. 35), na interpretação do conceito de desencantamento do mundo, refutando sua definição como algo "hiperpolissêmico" e contraditório.

Desfazer confusões
Uma bela proposição de Gabriel Cohn, citada em epígrafe ao capítulo 2, serve de referência ao empreendimento: "Claro que um conceito não pode ser tão proteiforme; algum núcleo duro de significados ele certamente terá". Em outros termos, caros aos adeptos da teoria do caos, trata-se de encontrar os atratores, que são recursos para examinar a ordem subjacente a sistemas caóticos e não lineares. O procedimento adotado por Pierucci faz de seu livro uma obra ímpar na fortuna crítica weberiana. Para sustentar seu ponto de que os efeitos de sentido do conceito, na letra weberiana, não são aleatórios ou polissêmicos, o autor percorre a obra completa de Weber e localiza as 17 ocorrências do conceito, por ele designadas como passos (capítulo 3). No trajeto, várias confusões são desfeitas, desde a mais singela -a de que desencantamento possui relação de sentido com desencanto com o mundo ou com traços de "Kulturpessimismus"- à mais desafiadora -a de que a flutuação de sentido no texto de Weber corresponde a estágios do pensamento do autor do conceito. Pierucci percorre todos os passos e, além de reproduzi-los para o leitor, amarra os seus significados básicos, os seus atratores. Para ele, as diferentes utilizações por parte de Weber do conceito estão associadas a dois núcleos básicos de significado: desencantamento como perda de sentido e desencantamento como desmagificação, sem eliminar a possibilidade de que em alguns casos os dois significados cooperem entre si. Os passos seguintes ocupam a maior parte do texto: do capítulo 6º ao 13 e por mais de 150 páginas, cada passo anunciado é comentado em profundidade, justificando a ancoragem semântica -ou a proposição de uma "polissemia restrita" (pág. 216)- apresentada anteriormente, em torno dos dois significados básicos mencionados. A utilidade e a qualidade da obra em questão são inquestionáveis. É fundamental, diante de conceitos com largo espectro potencial, controlar os riscos da superinterpretação. Minha dúvida -uma dúvida um tanto "abusada" diante do controle impressionante que Pierucci possui da letra de Weber- diz respeito à possibilidade de outras âncoras semânticas, passíveis de ser imaginadas sem que a estratégia antipolissêmica seja agredida. Em particular, em um dos passos considerados em passagem de "A Ciência como Vocação", Weber associa o desencantamento ao fato de que em nosso tempo "os valores mais últimos e mais sublimes" teriam "recuado da esfera pública para o reino transcendente da vida mística ou então para a fraternidade das relações diretas dos indivíduos uns com os outros". Na chave de Pierucci, desencantamento, aqui, significaria "perda de sentido", o que me parece correto, mas parcial, já que a passagem indica claramente um "deslocamento de sentido".

Novos sentidos
Correndo o risco de incorrer no pecado da polissemia irrestrita, creio ser possível associar o deslocamento de sentido à idéia da produção de novos sentidos. O caráter negativo da idéia de perda de sentido seria ultrapassado por um atrator de corte positivo, que nos permitiria indagar: que potências no mundo produzem e introduzem novos sentidos?
Esse desvio interpretativo não reduziu meu encanto pelo livro. Confesso mesmo que gostaria de ter adotado a elegante restrição semântica do padrão "17 passos, 2 atratores", desafiada pela possibilidade de um terceiro. Mas, para minha alegria, fiquei plenamente reconciliado com o livro, graças a seu autor.
Ao fim do texto, uma bela surpresa aguarda o leitor. O tema do encantamento emerge como dobra necessária do desencantamento. Pierucci teve a coragem intelectual de exibir a idéia e indicar sua potência. Creio que, se voltássemos aos 17 passos com essa descoberta, outros núcleos de sentido poderiam ser revelados. Mas é da natureza do encanto deste livro que sigamos fascinados e à espera desse desdobramento.
O livro de Pierucci é uma lição de interpretação. Freud, em "Moisés e o Monoteísmo", nos advertiu de que "a deformação de um texto se assemelha, de um certo ponto de vista, a um assassinato" e que "a dificuldade não está na perpetração do crime, mas na dissimulação dos seus vestígios".
Aqui, por certo, não há crime, mas tampouco dissimulação dos vestígios: as marcas autorais estão por toda parte e, os passos percorridos, enunciados com a maior clareza possível.


Renato Lessa é cientista político e professor titular do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). É autor de, entre outros livros, "Agonia, Aposta e Ceticismo - Ensaios de Filosofia Política (ed. UFMG).


O Desencantamento do Mundo
240 págs., R$ 29 de Antônio Flávio Pierucci. Ed. 34 (r. Hungria, 592, CEP 01455-000, SP, tel. 0/ xx/11/3816-6777).



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