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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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"Dicionário Crítico Câmara Cascudo" reúne estudos de vários especialistas sobre as obras do folclorista brasileiro, como "História da Alimentação no Brasil"

O sequestro acadêmico do estilo

Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha

Dicionário Crítico de Câmara Cascudo", eis o título inapropriado do livro. A palavra "dicionário" deveria ser substituída por resenhas, no plural, vários autores resenhando os 150 livros do grande folclorista brasileiro. O detalhe é que um dicionário sobre um dicionarista e filólogo do porte de Cascudo exigiria um rigoroso procedimento de metalinguagem. Ora, comentar simplesmente o conteúdo de cada livro dele é dar tiro n'água, porque deixa de lado a questão essencial da forma literária, isto é, o estilo. Afinal, trata-se de um dos maiores prosadores da língua portuguesa e que será lido lá por 3500, quando todos nós estivermos mortos e esquecidos. Saibam todos que uma verdadeira crítica à viagem cascudiana é a coisa mais difícil que existe no mundo, por causa de seu jeito singularíssimo de escrever e pela ausência de método. "O escravo africano atravessou o Atlântico numa ponte de canas-de-açúcar". Eu fico mordido da vida com a ênfase indevida em cima de sua biografia, tida como conservadora porque ele gostava da monarquia, foi católico, integralista, publicou sob o auspício do Estado Novo getuliano e não protestou quando veio o golpe de 64. Acontece, porém, que esses dados biográficos são absolutamente secundários, porque não interferem em sua obra. É equivocada a idéia de que atualmente esteja em curso uma "cascudolatria", depois de décadas de cascudofobia.

"Doutor em preto"
Também não procede a restrição, aparentemente progressista, de que ele realça mais as "permanências" do que as mudanças da sociedade brasileira, sendo por isso pichado de intelectual "conservador". Outro lugar-comum mistificador é a afirmação de que Cascudo (1898-1986), "doutor em preto", como ele dizia, não retrata o escravo de carne e osso. O velho Frobenius não o tira do pário no que concerne ao conhecimento do "made in Africa", sobretudo quando os negros africanos se tornaram negros brasileiros na bagaceira dos engenhos, onde se processou a "catequese negra". Foram os negros brasileiros, e não os negros da África, que inventaram o bumba-meu-boi e o maracatu. Nossa galinha de Moçambique não existe em Moçambique. Lá é galinha do mato. Os negros bantos nas bagaceiras trocaram Zâmbi por Xangô e Quianda por Iemanjá. O problema de sua fortuna crítica é que o filósofo do povo brasileiro provocou ciumeiras intelectuais em Mário de Andrade, fato que determina até hoje as coordenadas da discussão acerca da cultura popular no Brasil. Depois do ostracismo a que ficou relegada a obra de Luís da Câmara Cascudo, surge agora a mistificação de que Mário de Andrade é quem o colocou no caminho do estudo do folclore. Mentira. As academias universitárias produziram centenas de teses sobre Mário de Andrade, enquanto Cascudo ficou a ver navios. E o mais incrível é que Cascudo foi professor universitário.

Mistificações
Dir-se-ia que isso se deu por que Mário de Andrade era progressista e de esquerda? De forma alguma. Nisso concordo com a escritora Pagu, que o conheceu muito bem: Mário de Andrade era fraco do ponto de vista político. O lance é o seguinte: Mário chegou no folclore pela biblioteca, Cascudo foi do folclore à biblioteca.
Em Cascudo, folclore é vivência e, depois, erudição. Daí a diferença estilística: Cascudo escrevia melhor que Mário de Andrade. Este se hospedou na casa de Cascudo na metade dos anos 20.
Cascudo o levou para fechar o corpo num catimbó, experiência que o inspirou a escrever "Macunaíma" em 1928, mas Mário ficou boca-de-siri, ele se apaixonou lá em Natal por um catador de coco, escreveu "Na Pancada do Ganzá" e deixou Cascudo na moita. Mário fazia política literária.
Outra mistificação é não considerar Cascudo um intérprete do Brasil, enchendo apenas a bola de Caio Prado Junior, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Certamente o Rio Grande do Norte não pegará em armas para revelar ao Brasil que Cascudo amava como ninguém o povo brasileiro. E nesse amor é que ele era revolucionário. O resto é conversa boi com abóbora.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "A Salvação da Lavoura" (ed. Casa Amarela) e "Biomassa" (ed. Senac).


Dicionário Crítico Câmara Cascudo
326 págs., R$ 45 Marcos Silva (org.). Ed. Perspectiva (av. Brigadeiro Luís Antônio, 3.025, CEP 01401-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3885-8388).



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