São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 2006

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+ sociedade

Fraude do sul-coreano Hwang Woo-suk se junta a uma longa lista de embustes em pesquisas, como o caso Sokal

A ciência do falso testemunho

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

A história da ciência nem sempre é feita de episódios edificantes. Fraudes e falsificações aparecem com alguma freqüência, e o caso do cientista sul-coreano Hwang Woo-suk, que "fabricou" pelo menos parte de suas pesquisas sobre células-tronco, está longe de ser único. O médico alemão Phillippus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, conhecido como Paracelso (1493-1541), revolucionou a medicina em seu tempo, mas também se dizia capaz de fabricar um ser humano em miniatura, um homúnculo, a partir de esperma.

Suspeitas sobre Pasteur
O austríaco Franz Anton Mesmer (1734-1815) desenvolveu a teoria do magnetismo animal, usando imãs e depois as mãos para "magnetizar" suas pacientes. Nem mesmo Louis Pasteur, o fundador da moderna microbiologia, escapou de suspeitas. Antes de imunizar o jovem Joseph Meister contra a raiva, uma caso que o tornou famoso, Pasteur tinha, segundo o biógrafo Gerald Geison, usado a vacina em duas outras pessoas, um homem chamado Girard, que provavelmente não tinha raiva (e que portanto saiu bem do episódio) e uma menina, Julie-Antoinette Poughon, que morreu e sobre a qual Pasteur silenciou.


Sokal publicou uma gozação para mostrar como é possível enganar até uma revista de prestígio


Já no começo do século 20 ocorreu um episódio até hoje citado, quando um agricultor encontrou, perto da aldeia inglesa de Piltdown, um fragmento de crânio. O arqueólogo amador Charles Dawson prosseguiu a busca e encontrou, em 1912, uma mandíbula. Com isto surgia o Homem de Piltdown, ou "Eoanthropus dawsoni" ("o homem da aurora de Dawson"), o que tornava a Inglaterra um berço da evolução humana.
Mas em 1953 o dr. Kenneth Oakley mostrou que o crânio era de um homem morto há não muito tempo e que a mandíbula era de um orangotango. Tanto os ossos como os dentes tinham sido "maquiados" para parecerem antigos. A história resultou em grande embaraço para a comunidade científica britânica, e a pergunta surgiu: quem teria fabricado a fraude? Até sir Arthur Conan Doyle, médico e criador de Sherlock Holmes, foi acusado: ele morava não longe de Piltdown.
Mas o melhor candidato para autoria do "crime" continua sendo o próprio Charles Dawson, que nunca esclareceu como tinha achado os supostos restos arqueológicos.
Em 1974, William T. Summerlin, chefe da seção de imunologia de transplantes do famoso Instituto Sloan-Kettering, anunciou que podia transplantar em animais córneas, glândulas e pele, inclusive de espécies diferentes. E mostrava como prova um rato branco no qual um fragmento da pele preta de outro rato tinha sido enxertada. Mas era uma fraude: usando uma caneta hidrográfica, Summerlin simplesmente pintara de preto aquela parte.

Fusão fria
Mais ou menos na mesma época ocorreu o caso do psicólogo Cyril Burt, que fizera uma brilhante carreira acadêmica na Inglaterra, tendo sido um dos pioneiros no uso dos testes psicológicos. Publicou numerosos artigos sobre o tema e finalmente empreendeu um estudo sobre a genética do comportamento. Trabalhando com gêmeos, pesquisou a hereditariedade da inteligência, medida por testes de QI.
Quando esses trabalhos foram reexaminados, constatou-se que os dados eram fraudulentos; dois de seus supostos colaboradores teriam sido inventados pelo próprio Burt. É preciso dizer que Burt teve seus defensores, mas, de qualquer modo, sua reputação ficou seriamente abalada.
Na área da física podemos mencionar a teoria da "fusão fria" ("cold fusion", 1989), que, segundo os pesquisadores Stanley Pons e Martin Fleischmann, seria uma fonte ilimitada de energia. Mas era fria mesmo: outros cientistas não conseguiram reproduzir o trabalho.
Finalmente tivemos, há dez anos, o caso de Alan Sokal. Professor de Física na Universidade de Nova York, Sokal publicou na revista "Social Text" um artigo intitulado "Transgredindo as Fronteiras: Para uma Hermenêutica Transformadora da Gravidade Quântica".

Sal na ferida
Tratava-se de uma gozação destinada a mostrar como é possível, por meio de uma linguagem complicada, enganar até mesmo uma revista de prestígio (não é preciso dizer que os editores não gostaram nem um pouco da história). Jogando sal na ferida, ele denunciou o "declínio dos padrões de rigor científico na área acadêmica de humanidades".
Richard Lewontin, biólogo evolucionista e ensaísta conhecido, vai mais além e pergunta: "Por que deveríamos confiar nos cientistas, que, afinal têm suas próprias agendas políticas e econômicas?". É uma perigosa generalização, mas os interesses, a busca de prestígio, a luta por cargos realmente podem exercer um efeito pernicioso sobre a conduta das pessoas.
David Goodstein, da Universidade da Califórnia, aponta dois outros fatores na gênese da fraude científica: a pressão da carreira e o tipo de pesquisa: aquelas cujos resultados não poderiam ser facilmente reproduzidas se constituem em "tentação" maior. Aliás, um estudo da socióloga Pat Woolf, com 26 casos de fraude entre 1980 e 1986, mostrou que a maioria (21 estudos) era da área biomédica, onde a incerteza quase sempre existe. Mas, ao fim e ao cabo, trata-se de uma questão de ética. E deve ser abordada já na universidade: em matéria de fraude na ciência, é melhor prevenir do que remediar.


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