São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 2006

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Relançamento da versão de "Casa-Grande & Senzala" em quadrinhos evita trechos perturbadores do clássico de Gilberto Freyre, publicado em 1933, mas é fiel ao brilho e ao tom épico do original

O desenho da mestiçagem

EDUARDO BUENO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Até 1933, ninguém fazia sexo no Brasil -pelo menos não nos livros de história. Havia, é claro, o relato escandalizado coalhando as cartas dos jesuítas ("se contarem todas as casas desta terra, todas acharão cheias de adultérios, fornicações a abominações", disse o padre Manoel da Nóbrega em 1558); as confissões estarrecedoras arrancadas dos colonos pelos visitadores do Santo Ofício (como o caso do "clérigo de missa" que, em 1591, levou para casa "uma negra que seria da idade de seis ou sete anos e a penetrou pelo vaso traseiro"); a terrível lembrança dos estupros cometidos por piratas ingleses e, em outro plano, o deboche explícito dos modernistas, já que em 1922 os poetas do Pau-Brasil comeram outra vez o bispo Sardinha (deglutido pelos caetés em 1562).


É um prodígio que esta obra tenha virado história em quadrinhos sem perder brilho nem essência


Tais narrativas, porém, ou eram fontes primárias preservadas quase virgens no claustro dos arquivos ou faziam parte de uma releitura iconoclasta do país. Sexo de verdade -gente de carne e osso transando por desejo, paixão ou mera procriação- era algo que passava ao largo da história escrita e se mantinha, quando muito, na fase oral.
Foi a publicação de "Casa-Grande & Senzala" que espiou pelo buraco da fechadura e rasgou o véu da falsa decência, pondo fim abrupto a um pudor tão excessivo quanto hipócrita. Depois do clássico escrito pelo pernambucano Gilberto Freyre (1900-87), foi como se o Brasil, disposto a tirar o atraso, fosse para a cama retroativamente. Índias peladas rolando na relva e rangendo a rede; mulatas fornidas, arfantes, com os seios saltando das vestes; sinhozinhos de engenho engendrando astúcias e exercendo o poder do falo; padres fornicadores, freiras insaciáveis, negros bem-dotados passaram a desfilar sem constrangimento pelo discurso histórico, assistindo à colônia escravagista "alagada de gonorréia e sífilis" transformar-se no "país de sensuais torpezas" descrito por viajantes europeus.

Microistória do país
Se, para o ensaísta Roberto Schwarz, 1958 foi o ano em que o Brasil esteve "irreconhecivelmente inteligente", a frase bem poderia definir também 1933. Afinal, mesmo que para John Fante aquele tenha sido "um ano ruim" (um dos clássicos do autor de "Pergunte ao Pó" chama-se "1933 Was a Bad Year"), no Brasil ele se tornou mais um desses anos que não deveriam terminar.
Diga 33 e verá que foi quando Caio Prado Júnior lançou "Evolução Política do Brasil", Sérgio Buarque gestou "Raízes do Brasil" (lançado em 1936), Jorge Amado publicou seu primeiro livro, "Cacau", Graciliano Ramos escreveu "Caetés" (no qual também comeu o bispo Sardinha), Humberto Mauro filmou "Ganga Bruta". Continuam obras fundamentais todas elas, mas haverá alguma tão dinâmica, colorida, intensa e, claro, tão sensual quanto "Casa-Grande & Senzala"?
Embora, ao dissecar as pulsões da sociedade patriarcal, Freyre tenha deitado o Brasil no divã freudiano, seu fabuloso livro não se resume à incorporação do sexo e da psicanálise ao discurso histórico.
"Casa-Grande & Senzala" fez mais: embebeu (quase embebedou) o país nas novidades da microistória -nas deliciosas e reveladoras minúcias da vida cotidiana e da vida privada-, inaugurando a história social no país e concedendo tom literário, quase proustiano, a uma historiografia até então quase que inteiramente positivista. Acima de tudo, o livro tratou de romper com pressupostos racistas, fazendo o elogio da mestiçagem e desvendando "o sorriso do mulato", embora tenha contribuído assim para a construção do mito da "doce colonização" de um "país sem preconceito".
Por tudo isso e ainda mais, é um prodígio que obra de tais dimensões tenha virado história em quadrinhos sem perder brilho nem essência. Não que quadrinhos não sejam hoje plenamente reconhecidos como forma de arte -Alan Moore, Will Eisner, Frank Miller e que tais que o digam. Ainda assim, trata-se de uma surpresa. Surpresa sim, mas um tanto velha, já que a edição original é de 1981. E, no fundo, nem tão surpreendente assim quando se sabe que a adaptação ficou a cargo do antropólogo pernambucano Estevão Pinto (autor de, entre outros, "Os Indígenas do Nordeste") e que os desenhos foram de Ivan Wasth Rodrigues, continuador da obra do pintor-historiador José Wasth Rodrigues.

Elogio a Freyre
Claro que a versão quadrinizada é um elogio explícito a Freyre, escapa das críticas ao "reacionarismo" do autor e deixa de lado trechos perturbadores (como o relato de senhoras de engenho que, ciumentas da relação, real ou suposta, de seus maridos com certas mucamas, mandavam arrancar os olhos das moças "e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, boiando dentro de uma compoteira").
Mas, no geral, a quadrinização faz justiça ao tom épico, múltiplo e grandiloqüente do original. A meticulosa pesquisa iconográfica de Wasth Rodrigues e a fluência da versão sintetizada por Estevão Pinto tornam a leitura não apenas elucidativa mas dinâmica e eventualmente dramática.
Em um país quase ágrafo, povoado de analfabetos funcionais e de gente que, por não conhecer a própria história, não se cansa de repeti-la, a reedição de "Casa-Grande & Senzala" em quadrinhos é um barato (embora o preço do livro não seja exatamente uma barbada).
A boa iniciativa da editora Global desperta saudades da velha Ebal, que, sob a direção de Adolfo Aizen, bancou o projeto original e publicou também -além dos inestimáveis álbuns de "Flash Gordon", de Alex Raymond, e do "Príncipe Valente", de Hal Foster- uma "História do Brasil em Quadrinhos", igualmente desenhada por Wasth Rodrigues, mas com texto de Gustavo Barroso (o que tornou as coisas mais, digamos, sinuosas, embora não menos saborosas).
Agora, é partir para novos projetos. A publicação de "Singularidades da França Antártica", do frade francês André Thevet, já adaptada por Estevão Pinto, mas nunca quadrinizada, bem poderia ser o primeiro. Como estamos no mundo dos quadrinhos, que tal delirar um pouco e imaginar a história dos anos de chumbo perpetrada por Angeli ou a saga da era Collor relida por Laerte ou Adão Iturrusgarai?
Em plena globalização, não custa sonhar com Robert Crumb adaptando "O Povo Brasileiro", de Darcy Ribeiro. A cereja no sundae dos HQs históricos, porém, ficaria a cargo de Guido Crepax, que faria sua sensual Valentina trocar as alcovas de Paris pelos dólares furados na cueca da Brasília de Marcos Valério, José Dirceu e Jeany Mary Corner. Afinal, muitas vezes, o país de "Casa-Grande & Senzala" parece mesmo uma tremenda sacanagem.

Eduardo Bueno é autor de "Náufragos, Traficantes e Degredados" (ed. Objetiva).

Casa-Grande & Senzala em Quadrinhos
64 págs., R$ 35
Adaptação da obra de Gilberto Freyre por Estevão Pinto. Ilustrações de Ivan Wasth Rodrigues. Ed. Global (r. Pirapitingüi, 111, CEP 01508-020, SP, tel. 0/xx/11/ 3277-7999).



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