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ELOGIO DA DIFERENÇA
DIFERENÇA DE "LINGUAGENS" PODE CAUSAR DESCONFORTO,
MAS ESTIGMATIZAÇÃO É O GRANDE PROBLEMA, DIZ ESPECIALISTA
PAULO SAMPAIO
DA REDAÇÃO
A professora Priscilla Gaspar ficou muito feliz quando
soube que sua primeira filha
nasceu surda. Planeja até ter
outro, igual, assim que Nicolle, seis
semanas completadas no último dia
11, estiver crescidinha. A professora
quer perpetuar a própria linhagem,
gerar uma continuação dela mesma,
do marido, de seus pais, irmãos, cunhados, enfim, de cerca de 20 pessoas na família. Quase todo mundo
ali é surdo -não "deficiente auditivo", como ela faz questão de frisar,
gesticulando na chamada língua
brasileira de sinais (libras).
Priscilla acredita que não se trata
de uma "deficiência", mas de uma
"diferença". E que a única alteração
está na forma de comunicação, "como se fosse outra língua": "Quando
todo mundo é surdo em uma família, a comunicação é perfeita. Se você
chegar aqui em uma festa de Natal
ou aniversário, vai ver", diz.
Especialistas explicam que a diferença de "linguagem" de fato pode
criar desconforto. "O surdo não-oralizado age como se falasse um
idioma estrangeiro. Uma criança
ouvinte nesse universo, que é diferente dos pais, muitas vezes traz inquietação", explica a professora Regina Célia Mingroni Netto, do departamento de genética e biologia
evolutiva do Instituto de Biociências
da USP.
Regina diz que o instituto é muito
procurado por casais interessados
em fazer o aconselhamento sobre
doenças neuromusculares (como
distrofias progressivas), retardo
mental e surdez.
"A situação mais comum é o casal
normal que traz o filho com retardo
mental e quer saber se foi genético
ou não (como falta de oxigenação no
parto). Nossa tarefa é decifrar; eles
escolhem se vão arriscar ou não ter
um segundo filho", afirma.
De acordo com a professora, entre
15% e 25% dos casos de surdez analisados são genéticos.
Priscilla Gaspar conta que seus
avós paternos eram primos de primeiro grau, e os filhos deles nasceram surdos. "Já minha mãe ficou
surda depois, ninguém sabe por quê.
O fato é que fui criada dentro dessa
cultura, orientada por quem já era
surdo, e o acesso à linguagem foi
mais fácil do que à dos ouvintes."
Aos 27, ela diz que não se submeteu a um aconselhamento genético
antes de engravidar porque já havia
feito quando tinha cinco anos -e ficado muito feliz em saber que as
possibilidades de ter um filho surdo,
casando-se com um homem idem,
eram enormes. O marido dela, o
professor de libras César Oliveira,
25, pensa do mesmo jeito.
"Sonhei que iria ter um filho surdo. Quando soube que era mesmo,
fiquei muito contente", diz ele.
A professora Regina Migroni atende de quatro a cinco novos casos de
aconselhamento genético por semana (ou cerca de 330 famílias em quatro anos de funcionamento): ela afirma que não é atribuição sua demover o casal da idéia de ter filhos.
"O aconselhamento deve ser neutro; apenas apresentamos o resultado, sem induzir ou sugerir o que fazer aos pais. A decisão é deles", diz.
Orgulho e preconceito
Eis que, de repente, o repórter ouvinte se sente um pouco "deficiente", de uma certa maneira deslocado, no meio da gesticulante família
de Priscilla. Pensa em todos os problemas de auto-estima de que a sociedade ocidental vive se queixando
no divã do psicanalista (mesmo os
analisandos que escutam, enxergam, falam), nos antidepressivos
que se tomam quando não se consegue um marido, uma namorada, um
emprego ou mesmo um nariz ou
seios perfeitos, e pergunta: não seria
egoísmo querer ter um filho surdo,
em uma sociedade tão competitiva,
ainda por cima em um país onde o
acesso à educação é extremamente
problemático -mesmo para quem
não tem limitações de sentidos?
Priscilla faz uma expressão de estranhamento, como se a pergunta
não tivesse cabimento. Diz que sofreu preconceito, sim, mas jamais teve problema de auto-estima porque
sua mãe já a criou preparando-a para enfrentar o mundo. Como, aliás,
ela pretende fazer com a pequena
Nicolle. Simples assim.
"Eu trocaria a palavra "egoísmo"
por "orgulho". Vou prepará-la dentro da identidade surda para casar-se com um surdo, e espero ter netos
surdos também", diz ela.
A primeira escola que Nicolle vai
freqüentar, explicam os pais, é especial para surdos. "Ela vai aceitar que
é diferente, entre iguais", acham.
Imagina-se que a educação de um
filho surdo, em uma sociedade majoritariamente ouvinte, deva ser
mais cara. "Se a escola for particular,
é o preço da equivalente para ouvintes", garante Priscilla.
Ela explica que o surdo só começa
a encarecer quando tentam transformá-lo em ouvinte. "Se resolvem colocar um implante em seu ouvido,
gastar com fonoaudiólogo para
adaptá-lo ao mundo dos ouvintes, aí
realmente vai se gastar", diz.
Parêntese importante: Priscilla diz
que um surdo ganha, em média, metade do salário pago a um ouvinte no
mercado de trabalho, em profissões
como cozinheiro ou digitador.
A professora Regina conta que
costuma ouvir muitas queixas de
mães de surdos sem uma boa situação financeira -elas dizem enfrentar filas em todos os serviços de
apoio (consulta, ambulatório, tomografia etc.).
Regina diz que hoje existem associações de apoio a indivíduos com as
deficiências mais variadas. Na sua
experiência, ela observou que as associações que mais funcionam são
aquelas formadas por familiares.
"Eles se ajudam muito na divulgação de informações sobre a deficiência e de diagnósticos mais precisos.
Os cientistas dão assessoria para esses grupos", diz.
Priscilla já namorou um rapaz ouvinte, mas lembra-se de que "perdia
muito da conversa", pela falta de sintonia na comunicação. Ela conheceu
o marido em uma festa junina freqüentada por surdos. Hoje, os dois
dão aula no Derdic (Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios
da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica-SP). O que mais
um surdo pode fazer além de dar aulas ou trabalhar em uma comunidade restrita?
"Surdo é diferente da maioria dos
deficientes. Ele tem capacidade de
fazer tudo. Acredito que dá para
comparar com o ouvinte analfabeto:
ele também não se comunica em
muitos âmbitos", acredita Priscilla.
Em termos práticos, porém, ela sabe que um analfabeto pode ouvir pelo alto-falante do aeroporto que seu
avião não sairá mais do portão número 15, por exemplo, mas do número 20. O que não é seu caso.
"De fato, toda vez que eu chego ao
aeroporto, preciso ir ao guichê de
embarque avisar que eu sou surda."
A babá eletrônica toca, quer dizer,
acende, e César sobe a escada do sobrado para ver o que a filha quer.
Como estão em casa apenas Priscilla, César e o pai dela, Roberto, a reportagem pergunta se pode fazer a
foto em outro dia, com mais familiares. Ela diz prontamente que sim,
claro, e propõe no domingo seguinte, quando reunirá muitos parentes
para um almoço.
"Isso aqui é uma verdadeira surdolândia", diz César, rindo, já de
volta à sala.
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