São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 2006

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ELOGIO DA DIFERENÇA

DIFERENÇA DE "LINGUAGENS" PODE CAUSAR DESCONFORTO, MAS ESTIGMATIZAÇÃO É O GRANDE PROBLEMA, DIZ ESPECIALISTA

PAULO SAMPAIO
DA REDAÇÃO

A professora Priscilla Gaspar ficou muito feliz quando soube que sua primeira filha nasceu surda. Planeja até ter outro, igual, assim que Nicolle, seis semanas completadas no último dia 11, estiver crescidinha. A professora quer perpetuar a própria linhagem, gerar uma continuação dela mesma, do marido, de seus pais, irmãos, cunhados, enfim, de cerca de 20 pessoas na família. Quase todo mundo ali é surdo -não "deficiente auditivo", como ela faz questão de frisar, gesticulando na chamada língua brasileira de sinais (libras).
Priscilla acredita que não se trata de uma "deficiência", mas de uma "diferença". E que a única alteração está na forma de comunicação, "como se fosse outra língua": "Quando todo mundo é surdo em uma família, a comunicação é perfeita. Se você chegar aqui em uma festa de Natal ou aniversário, vai ver", diz.
Especialistas explicam que a diferença de "linguagem" de fato pode criar desconforto. "O surdo não-oralizado age como se falasse um idioma estrangeiro. Uma criança ouvinte nesse universo, que é diferente dos pais, muitas vezes traz inquietação", explica a professora Regina Célia Mingroni Netto, do departamento de genética e biologia evolutiva do Instituto de Biociências da USP.
Regina diz que o instituto é muito procurado por casais interessados em fazer o aconselhamento sobre doenças neuromusculares (como distrofias progressivas), retardo mental e surdez.
"A situação mais comum é o casal normal que traz o filho com retardo mental e quer saber se foi genético ou não (como falta de oxigenação no parto). Nossa tarefa é decifrar; eles escolhem se vão arriscar ou não ter um segundo filho", afirma.
De acordo com a professora, entre 15% e 25% dos casos de surdez analisados são genéticos.
Priscilla Gaspar conta que seus avós paternos eram primos de primeiro grau, e os filhos deles nasceram surdos. "Já minha mãe ficou surda depois, ninguém sabe por quê. O fato é que fui criada dentro dessa cultura, orientada por quem já era surdo, e o acesso à linguagem foi mais fácil do que à dos ouvintes."
Aos 27, ela diz que não se submeteu a um aconselhamento genético antes de engravidar porque já havia feito quando tinha cinco anos -e ficado muito feliz em saber que as possibilidades de ter um filho surdo, casando-se com um homem idem, eram enormes. O marido dela, o professor de libras César Oliveira, 25, pensa do mesmo jeito.
"Sonhei que iria ter um filho surdo. Quando soube que era mesmo, fiquei muito contente", diz ele.
A professora Regina Migroni atende de quatro a cinco novos casos de aconselhamento genético por semana (ou cerca de 330 famílias em quatro anos de funcionamento): ela afirma que não é atribuição sua demover o casal da idéia de ter filhos.
"O aconselhamento deve ser neutro; apenas apresentamos o resultado, sem induzir ou sugerir o que fazer aos pais. A decisão é deles", diz.

Orgulho e preconceito
Eis que, de repente, o repórter ouvinte se sente um pouco "deficiente", de uma certa maneira deslocado, no meio da gesticulante família de Priscilla. Pensa em todos os problemas de auto-estima de que a sociedade ocidental vive se queixando no divã do psicanalista (mesmo os analisandos que escutam, enxergam, falam), nos antidepressivos que se tomam quando não se consegue um marido, uma namorada, um emprego ou mesmo um nariz ou seios perfeitos, e pergunta: não seria egoísmo querer ter um filho surdo, em uma sociedade tão competitiva, ainda por cima em um país onde o acesso à educação é extremamente problemático -mesmo para quem não tem limitações de sentidos?
Priscilla faz uma expressão de estranhamento, como se a pergunta não tivesse cabimento. Diz que sofreu preconceito, sim, mas jamais teve problema de auto-estima porque sua mãe já a criou preparando-a para enfrentar o mundo. Como, aliás, ela pretende fazer com a pequena Nicolle. Simples assim.
"Eu trocaria a palavra "egoísmo" por "orgulho". Vou prepará-la dentro da identidade surda para casar-se com um surdo, e espero ter netos surdos também", diz ela.
A primeira escola que Nicolle vai freqüentar, explicam os pais, é especial para surdos. "Ela vai aceitar que é diferente, entre iguais", acham.
Imagina-se que a educação de um filho surdo, em uma sociedade majoritariamente ouvinte, deva ser mais cara. "Se a escola for particular, é o preço da equivalente para ouvintes", garante Priscilla.
Ela explica que o surdo só começa a encarecer quando tentam transformá-lo em ouvinte. "Se resolvem colocar um implante em seu ouvido, gastar com fonoaudiólogo para adaptá-lo ao mundo dos ouvintes, aí realmente vai se gastar", diz.
Parêntese importante: Priscilla diz que um surdo ganha, em média, metade do salário pago a um ouvinte no mercado de trabalho, em profissões como cozinheiro ou digitador.
A professora Regina conta que costuma ouvir muitas queixas de mães de surdos sem uma boa situação financeira -elas dizem enfrentar filas em todos os serviços de apoio (consulta, ambulatório, tomografia etc.).
Regina diz que hoje existem associações de apoio a indivíduos com as deficiências mais variadas. Na sua experiência, ela observou que as associações que mais funcionam são aquelas formadas por familiares. "Eles se ajudam muito na divulgação de informações sobre a deficiência e de diagnósticos mais precisos. Os cientistas dão assessoria para esses grupos", diz.
Priscilla já namorou um rapaz ouvinte, mas lembra-se de que "perdia muito da conversa", pela falta de sintonia na comunicação. Ela conheceu o marido em uma festa junina freqüentada por surdos. Hoje, os dois dão aula no Derdic (Divisão de Educação e Reabilitação dos Distúrbios da Comunicação da Pontifícia Universidade Católica-SP). O que mais um surdo pode fazer além de dar aulas ou trabalhar em uma comunidade restrita?
"Surdo é diferente da maioria dos deficientes. Ele tem capacidade de fazer tudo. Acredito que dá para comparar com o ouvinte analfabeto: ele também não se comunica em muitos âmbitos", acredita Priscilla.
Em termos práticos, porém, ela sabe que um analfabeto pode ouvir pelo alto-falante do aeroporto que seu avião não sairá mais do portão número 15, por exemplo, mas do número 20. O que não é seu caso.
"De fato, toda vez que eu chego ao aeroporto, preciso ir ao guichê de embarque avisar que eu sou surda."
A babá eletrônica toca, quer dizer, acende, e César sobe a escada do sobrado para ver o que a filha quer.
Como estão em casa apenas Priscilla, César e o pai dela, Roberto, a reportagem pergunta se pode fazer a foto em outro dia, com mais familiares. Ela diz prontamente que sim, claro, e propõe no domingo seguinte, quando reunirá muitos parentes para um almoço.
"Isso aqui é uma verdadeira surdolândia", diz César, rindo, já de volta à sala.


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