São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 2006

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+ cultura

Ensaios do filósofo André Comte-Sponville e da eslovena Renata Salecl dissecam as relações entre moral, consumo e capitalismo por meio de um viés didático, mas pouco questionador

Beabás do capitalismo

Adam Butler - 1º.mai.2000/Associated Press
Policias prendem manifestante durante protestos do Dia do Trabalho, na Trafalgar Square, em Londres (Inglaterra)


MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Nos tempos de Sartre ou de Althusser, todo filósofo procurava inventar uma rede conceitual própria, tornando a leitura de seus escritos uma tarefa árdua, destinada a especialistas. Uma leva mais recente de pensadores franceses, como André Comte-Sponville, Alain Renault e Luc Ferry, se caracteriza pela extrema acessibilidade com que aborda temas clássicos da ética, da política e da estética.
A demanda por cursos e palestras de iniciação filosófica, que também se nota no Brasil, faz parte dessa "virada popularizante", que sem dúvida corresponde a um momento de crise na instituição universitária.
Professor na Universidade de Paris-Sorbonne e autor de um grande sucesso filosófico na década passada (o excelente "Pequeno Tratado das Grandes Virtudes"), Comte-Sponville parece ter entrado com invejável entusiasmo e loquacidade no circuito das palestras.
As profusas páginas de "O Capitalismo É Moral?" se originam, diz o autor, "de numerosas conferências que pronunciei, muitas vezes com esse mesmo título, para públicos bem diferentes: estudantes e professores de escolas de comércio e de gestão (em Nantes, Reims, Le Havre, Orléans...), membros de certo número de associações (especialmente a Associação para o Progresso da Gestão) ou funcionários de algumas empresas".

Vôo confortável
Comte-Sponville não quer impor turbulências a seu público, e cuida para não se afastar de um plano de vôo confortável. As relações entre moral e capitalismo suscitariam imensa variedade de questões: há como legitimar as desigualdades sociais? Estas se agravaram com a globalização? Como se conciliam impulso consumista e ética do trabalho? Do aquecimento global às justificativas para o direito de herança, todo tipo de problemas poderia ser abordado pelo autor; não é o que acontece.
A enormidade da pergunta proposta no título permite, paradoxalmente, uma resposta simples por parte de Comte-Sponville. Diga-se em seu favor que ele tampouco está interessado em dizer à platéia o que ela gostaria de ouvir. O capitalismo é amoral. "Não contem com o mercado para ser moral no lugar de vocês", avisa. "Um sistema econômico é feito para criar riqueza. (...) O erro seria crer que baste a riqueza para fazer uma civilização ou mesmo uma sociedade humanamente aceitável. É por isso que necessitamos também do direito e da política... Não peçamos à economia para fazer as vezes deles!" Seria "a mais ridícula das tiranias, a da riqueza", completa Comte-Sponville.
Nessa menção ao ridículo e à tirania se concentra o aspecto mais interessante do livro, onde o autor propõe, em chave pascaliana, uma nova definição do conceito de barbárie e de seu oposto simétrico, o "angelismo". Confundem-se, diz ele, ordens de natureza distinta: não se avalia a economia com os instrumentos da moral nem vice-versa. Lições de bom senso não faltam neste livro, cujo maior defeito está na contínua vontade de agradar: a coloquialidade, o ameno humorismo de palestra, a diluição das dificuldades resultam em texto nem sempre rigoroso, ainda que bastante ordeiro.
Também com cara de palestra -brevíssima e, apesar disso, repetitiva-, "Sobre a Felicidade", de Renata Salecl, inaugura uma simpática coleção de ensaios curtos intitulada "Situações". Inspirada em Lacan e Benjamin, a autora, que pertence ao grupo do filósofo e colunista da Folha Slavoj Zizek, trata de "ansiedade e consumo na era do hipercapitalismo" -que ela também chama de capitalismo, capitalismo tardio, modernidade ou pós-modernidade.
Certamente, não há como situar com precisão no tempo um sistema onde vigora, diz Salecl, a "idéia de que supostamente somos capazes de nos administrar, e que existe uma escolha sobre como lidarmos com nossas emoções".
A despeito de generalidades desse tipo, o livro tem o mérito de tratar conceitos como o "Grande Outro" de forma inteligível. Resta saber se precisamos de Lacan para concluir, como faz Salecl, que "com a falta de autoridades tradicionais, o sujeito não parece próximo da "felicidade". Ele busca desesperadamente por novas autoridades".

O Capitalismo é Moral?
224 págs., R$ 32,50
de André Comte-Sponville. Trad. Eduardo Brandão. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330, CEP 01325-000, SP, tel. 0/ xx/11/ 3241-3677).
Sobre a Felicidade
58 págs., R$ 19,90
de Renata Salecl. Tradução de Marcelo Rezende. Alameda Editorial (r. Ministro Ferreira Alves, 108, CEP 05009-060, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/ 3862-0850).



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