São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

Peter Burke

Uma história cultural dos odores

É possível escrever uma história dos odores? Que certos lugares e períodos são marcados por diferentes "panoramas de odores" é algo que muitos de nós, ao menos os que têm mais de 50 anos, sabem por experiência própria. Cada cidade ou cada agrupamento regional de cidades possui odores característicos: em Araraquara, por exemplo, sobressai o cheiro de laranja, e na São Paulo dos anos de 1980, quando havia mais carros movidos a álcool do que hoje, era possível sentir, já no aeroporto, um cheiro doce inconfundível -a ponto de eu não ter a menor dúvida de que, mesmo se chegasse de olhos vendados, saberia em que cidade me encontrava. No caso do Reino Unido, ainda lembro vivamente de um odor da minha infância, o cheiro azedo que impregnava as ruas dos bairros pobres por onde eu passava a caminho da escola. Marcel Proust, como não poderia deixar de ser, dava muita atenção aos odores assim como ao sabor de sua célebre madeleine, e, há alguns anos, caminhando por Hong Kong, tive o que se poderia chamar de experiência proustiana.

Campanha de purificação
Ao passar por uma mercearia, retornei 40 anos e me vi subitamente de volta ao período em que vivi em Cingapura. Naquela época, bem antes de o governo cingapurense dar início a sua campanha de purificação, determinadas ruas possuíam um peculiar odor agridoce, o qual devia ter muito a ver com a culinária do Sul da China, embora eu nunca tenha sido capaz de analisá-lo e decompô-lo em seus elementos constituintes. Analisar odores dessa maneira requer destreza ou, talvez, um dom. No "Conto de Genji", narrativa romanesca japonesa do século 11, um dos passatempos dos cortesãos e cortesãs é justamente adivinhar os ingredientes de coquetéis de perfume. E o herói do romance "O Perfume", de Patrick Süsskind, distingue-se pelo condão de mesclar odores para criar novos perfumes, assim como pela habilidade em analisar os componentes de perfumes já existentes. No entanto, talvez por eu ser historiador, a lembrança mais nítida que guardo do romance não são as aventuras desse sujeito talentoso, mas sim a evocação dos odores típicos da Paris setecentista. E isso me leva a indagar, retomando a questão colocada no início deste artigo, se seria possível aos pesquisadores, baseando-se em documentos, escrever uma história semelhante à que Süsskind compôs a partir de sua imaginação. Ora, o caso é que isso já foi tentado por alguns. Nessa área, como em outras, o pioneiro foi Gilberto Freyre. Em "Sobrados e Mucambos", por exemplo, Freyre aventura-se no que ele chamou de história sensual, uma história com lugar para os odores, assim como para o sabor dos "doces de Pernambuco" e para o som ("ruge-ruge") das saias compridas nas escadas da casa-grande. Freyre descobriu um lugar em sua história para o fato de que, no sobrado tradicional, "os quartos de dormir impregnavam-se de um cheiro composto de sexo, de urina, de pé, de sovaco, de barata, de mofo".

Novas práticas de higiene
Todavia, aqui como alhures, os insights de Freyre foram demasiado numerosos para que ele tivesse tempo de desenvolvê-los ou investigá-los sistematicamente. De fato, tanto quanto sei, foi somente no início da década de 1980, poucos anos antes da publicação do romance de Süsskind, que um historiador profissional publicou um livro sobre o tema do odor. Trata-se de "Saberes e Odores" (1982) [editado no Brasil pela Companhia das Letras], do pesquisador francês Alain Corbin, que depois disso ainda escreveu um livro sobre os sinos e o "panorama de sons" na França oitocentista. Corbin devota seu estudo à percepção dos odores e à ascensão de novas práticas de higiene na França do século 19, como, por exemplo, o hábito de se lavar com mais freqüência e limpar mais partes do corpo do que se costumava fazer em séculos anteriores (quando as classes privilegiadas valorizavam mais o asseio dos lençóis e toalhas de mesa do que o da própria pele). O argumento central do livro é o de que essas novas práticas foram uma resposta à redução no nível de tolerância ao que então se entendia por cheiros ruins. Em outras palavras, o que Corbin faz -e o que a documentação disponível lhe permite fazer- é uma história da percepção dos odores, da sensibilidade aos odores, mais do que uma história dos odores propriamente dita. Parece-lhe mais fácil registrar e descrever a mudança na sensibilidade do que explicar por que esse fenômeno teve lugar naquele momento.

Avanço civilizacional
Seja como for, seu relato sobre as conseqüências de tal mudança é bastante convincente e nos revela como um tema aparentemente tão frívolo e superficial quanto o do odor pode nos ajudar na tarefa de compreender as mentalidades e sensibilidades do passado. A passagem de uma tolerância ampla a grande variedade de odores para a suposição de que -exceção feita a flores e perfumes- a ausência deles é preferível à sua presença simboliza e integra a história do avanço civilizacional, e também, como salientou Sigmund Freud, indica o preço que temos de pagar por essa realização coletiva, o preço que pagamos por viver num ambiente cada vez mais higienizado. Talvez devêssemos refletir sobre a sociedade moderna em termos de empobrecimento olfativo. As conclusões de Corbin sobre a transformação da sensibilidade aos odores não devem ser limitadas ao caso francês. Também no Reino Unido o século 19 testemunhou mais ênfase nas virtudes, bem como no apelo estético, do sabão. Nos últimos 20 anos, alguns historiadores -como Piero Camporesi, na Itália, Robert Jütte, na Alemanha, e Mark Jenner, na Inglaterra- aplicaram e adaptaram o modelo de Corbin à história dos odores em outros países. E há inclusive diretores de museus que passaram a se interessar pelo assunto. Na cidade de York, no norte da Inglaterra, por exemplo, o museu de Jorvik, inaugurado em 1984, oferece aos visitantes a reconstrução não só de artefatos do passado medieval, mas também de odores característicos desse período. Recuando a noção de crescente intolerância com os maus cheiros para um contexto anterior ao estudado por Corbin, alguns estudiosos afirmam que a Europa setecentista presenciou uma verdadeira "revolução olfativa". Talvez seja possível recuar ainda mais. Tenho a forte suspeita de que novas pesquisas mostrarão como, em certas partes da Europa, em certos períodos e em certos grupos sociais, essa "revolução" ocorreu muito antes disso. Na Inglaterra do século 16 não era incomum que, ao se aventurarem pelas ruas de Londres, os membros das classes privilegiadas levassem consigo uma "pomander", uma fruta recheada com essências aromáticas que lhes servia de proteção contra o inevitável assalto de odores pútridos. Tal prática indica que, já naquela época, ao menos algumas pessoas demonstravam intolerância aos odores que infestavam as ruas. De fato, sabe-se de médicos que argumentavam que os maus cheiros contribuíam para disseminar e até mesmo originar moléstias como a peste.

O odor no Brasil?
Novas pesquisas provavelmente revelarão outras diferenças de atitude, tanto em relação aos odores em geral quanto no tocante a odores específicos -entre pessoas da cidade e do campo, jovens e velhos, homens e mulheres. A realização de pesquisas em outros continentes também pode vir a modificar a história contada por Corbin e seus seguidores.
Quando alguém seguirá as pegadas de Corbin, retomando as pesquisas de Freyre no ponto em que ele as deixou, a fim de produzir uma história dos odores no Brasil? Quais seriam as características, em diferentes regiões e períodos, dos odores no Brasil? Como povos diferentes reagem a diferentes tipos de odores? Seriam os brasileiros mais tolerantes aos odores do que (por exemplo) os ingleses ou os norte-americanos? Teria o Brasil passado por uma "revolução olfativa" e, em caso positivo, quando teria ocorrido essa revolução? Aguardo as sugestões de meus leitores.


Peter Burke é historiador inglês, autor de "Uma História Social do Conhecimento" (Jorge Zahar Editor) e "O Renascimento Italiano" (ed. Nova Alexandria). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Alexandre Hubner.


Texto Anterior: + literatura: Amor, sublime amor
Próximo Texto: + autores: Freud ou a glorificação do poeta
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.