São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2004

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Juan José Saer

Freud ou a glorificação do poeta

Com muita freqüência ao longo de sua obra, quase em cada página, Freud, cujo gosto literário nem sempre parece ser dos melhores e que confessa, não menos freqüentemente, nem sempre de modo sincero, sua ignorância na matéria, rende, a seu modo (embora devamos distinguir claramente Jensen de Dostoiévski), uma homenagem indiscutível e apaixonada à poesia, que não deve ser entendida no sentido restrito do verso, mas sim da criação literária em seu conjunto. Esse elogio constante da literatura é formulado por duas razões muito precisas, uma retórica e outra instrumental. A razão retórica é comum a muitos textos de ciências humanas do século 19, pois, achando-se em via de formação, essas ciências adotavam como antecedente intuitivo de sua atividade as grandes obras literárias e filosóficas do passado. O elogio do poeta e do artista também pode ser considerado como um tópico retórico do discurso científico, cuja finalidade é mostrar, por contraste, os limites da ciência e a complexidade do universo cuja intuição só é acessível à arte. Desse modo, a glorificação do poeta pode ser considerada uma idealização de especialista.

Razão instrumental
Mas Freud venera a poesia também por uma razão instrumental: porque, assim como a psicose, a poesia, com seu poder de concentração significante, mostra de um modo mais claro, mais denso, certos processos da psique que são universais, mas que passam despercebidos no contexto da normalidade e até da neurose. Assim, Sófocles, Shakespeare e Dostoiévski têm um interesse comum para o analista: mostrar, cada um à sua maneira, um substrato universal da personalidade, o complexo de Édipo, que, por ser inconsciente e por estar submetido a uma série de processos psíquicos que o disfarçam -repressão, sublimação, transferência etc.-, seria irreconhecível na maioria dos seres humanos. A veneração de Freud tem, ainda, outras razões de tipo instrumental: porque a literatura, para ele, seria o reino do afeto por excelência. "Como psicanalista, devo interessar-me mais pelos processos afetivos que pelos intelectuais", declara em "Sobre a Psicologia do Escolar". A literatura, segundo Freud, ao trabalhar na dimensão dos afetos e das emoções, não fez mais do que se adiantar à psicanálise: toda a imaginária conceitual da ciência nascente está implícita na obra dos grandes poetas. Esses elogios instrumentais, a meu ver, levantam uma objeção: nem toda a literatura pode ser definida como a expressão de arquétipos psicológicos universais, e a expressão desses arquétipos não é condição suficiente de seu valor. As "Devoções" de Donne não apresentam nenhum arquétipo dessa espécie, enquanto a "Gradiva" de Jensen não possui o menor interesse do ponto de vista estritamente literário. Talvez o elogio que Freud faz da poesia esconda uma petição de princípio: como, nos primeiros anos da psicanálise, as únicas provas de que ele dispunha para validar sua teoria dos instintos eram aquelas fornecidas pela práxis analítica, pretendia encontrar essas provas (ou de fato as encontrava) na poesia. Mas Freud nunca apresenta a poesia como prova de teorias que considera já bem comprovadas.

Poesia e psicose
Segundo sua obscura homenagem, portanto, poesia e psicose seriam impossibilidades. O próprio Freud manifesta, em seus textos, seu duplo desinteresse pela psicose e por tudo o que na arte não é conteúdo. Ambas existem apenas como exemplos. Incontrolável e excepcional como a psicose, a poesia, grosseira e paradoxalmente, apresenta a generalidade em sua estranheza. Se levarmos em conta que, na retórica do discurso científico, a poesia é o oposto da especialidade, entenderemos melhor que o elogio oblíquo não faz mais do que insistir na velha imagem da poesia como uma força irracional que se manifesta através do poeta num processo do qual o poeta é pouco responsável e consciente. A origem divina comum à poesia e à psicose lhes atribui um status excepcional, mas ao mesmo tempo isenta as duas de um exame rigoroso. No entanto Freud -e com ele a psicanálise inteira- rende, por outro caminho, uma homenagem mais profunda e mais verdadeira à poesia e particularmente à narração. Essa homenagem reside no reconhecimento explícito de que a análise é uma atividade essencialmente verbal e que a palavra é o único instrumento terapêutico de que ela dispõe. A psicanálise não investiga os fenômenos psíquicos, e sim o discurso que, para ela, os representa. Os jogos de palavras, a transmissão oral dos sonhos, o diálogo analítico, a associação livre são o material específico do trabalho analítico, depois de ter sido o da poesia durante séculos. Considerando os fatos desse ponto de vista, a poesia não forneceu conteúdos para a psicanálise examinar, e sim seu repertório metodológico; não o objeto, e sim o instrumento da análise. A psicanálise e a poesia, portanto, têm como característica comum o fato de só na linguagem, e por meio dela, poderem conseguir os resultados a que se propõem.

Narração e alucinação
Mas a psicanálise também rende uma homenagem específica à narração. Objetivo capital da sessão analítica, a narração aparece como o resultado dramático da interação de um conjunto de forças psíquicas que constituem a porção oculta do sistema referencial em jogo, fazendo dele a matéria de um desenho confuso, indefinidamente tecido e desmanchado. O narrador não opera, nunca operou, de outro modo em seu trabalho. Para Freud, o sistema referencial em jogo -nem existente nem inexistente, nem verdadeiro nem falso a priori, mas apenas em jogo- é, no caso das alucinações, o fragmento de verdade histórica que as fundamenta e as torna verossímeis para o doente. Tecidas com a mesma matéria histórica, narração e alucinação, cada uma de seu jeito, elaboram essa matéria num sistema que a transcende. Essa matéria histórica não é mais do que o fragmento ubíquo, incerto, que fervilha como o elemento comum de um conjunto de narrações que se complementam, que se opõem e sobrepõem, se distorcem ou se corrigem mutuamente. A história da narração ocidental não é menos dramática que a história clínica em que analista e paciente constroem e descartam repetidas vezes, por meio da palavra, uma realidade possível. Essas construções são humildes: modestas proposições sobre um magma obscuro, movediço, fugidio. O resultado é sempre incerto e, não raro, inexistente. Às vezes, a construção inteira tem de ser demolida para ser reerguida; às vezes, só em parte. Sugerindo, modificando, avançando e recuando, a narração e o diálogo analítico elaboram, com procedimentos semelhantes, uma estrutura frágil de verossimilhança relativa, de validade temporária, no fundo da qual corre, como se fosse o do sangue, o rio da memória. Em "Análise Terminável e Interminável", Freud discute a possibilidade de finalizar uma análise. Em alguns casos, segundo ele, esse término é possível. Embora admita que a normalidade não passa de uma ficção ideal, é evidente que Freud considera que, mediante a elaboração dos instintos, a psicanálise pode restituir um certo equilíbrio ao sujeito.

Particularidade redutora
Assim, do modo como aparece em muitos textos de Freud, a construção narrativa da psicanálise, em contraste com a narração em geral, apresenta uma particularidade redutora: a de pretender que existe um conflito preciso, uma intriga significante que deve ser resolvida, o que equivale a dizer que, em certas circunstâncias, existe análise terminável.
Essa particularidade poderia transformar a narração analítica num simples caso da forma narrativa. Dito de outro modo, em um gênero. Para a narração analítica, assim como para o romance policial, pode haver desenlace.
O mesmo não acontece com a outra: enquanto a análise pretende deixar, de sua construção, um conteúdo, a narração deixa apenas o procedimento, a própria construção. A narração não é terminável; fica sempre inacabada. Valéry já dizia: um poema nunca se termina, apenas se abandona.


Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.


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