São Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 1998

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LIVROS
Universo em ponto pequeno


"Nó na Garganta" expõe em linguagem apurada a sordidez provinciana


JOSÉ MARCOS MACEDO
especial para a Folha

Certos romances, e esses podem ser contados nos dedos atualmente, impõem-se não tanto pelo assunto que narram, mas pela excelência da forma em que são narrados. "Nó na Garganta", de Patrick McCabe, é um livro complexo e minucioso, narrado em primeira pessoa por um habitante de uma cidadezinha irlandesa, que reconta fatos aterradores de sua adolescência.
O autor cria um estilo que se destaca da própria voz e adere à visão do personagem cujos passos dão cor à trama, expressando a sua angústia, a sua violência incontida, mas também o seu anseio por um mundo de impossíveis laços singelos, livres do peso sufocante de uma vida oprimida como a sua.
O garoto narrador é o protótipo do desajustado, afligido por toda espécie de adversidades, a que ele reage com virulência cada vez maior, sendo incapaz de uma análise ponderada. Mas sob a bitola estreita de sua perspectiva, os vícios da comunidade ganham aos poucos contornos mais nítidos, o recorte da sordidez interiorana assume relevo nas entrelinhas desse discurso despachado e de notável fluência coloquial, fazendo com que as miudezas e cacoetes pérfidos da cidade sejam tomados como espelho do mundo, e o vilarejo reproduza o universo em ponto pequeno.

A OBRA
Nó na Garganta - Patrick McCabe. Tradução de Lídia Cavalcante-Luther. Geração Editorial (r. Cardoso de Almeida, 2.188, CEP 01251-000, SP, tel. 011/872-0984). 242 págs. RÏ 19,90.



Articular em linguagem a consciência observadora, mas borboleteante, do personagem não é o único dos méritos; nem o maior deles é manter vivas a tensão e curiosidade sobre a malvadeza ou o destino final desse sujeitinho sinistro que é o narrador. A chave está em desvendar a torpeza cabal de uma localidade beata e promissora -o time da cidade vai bem no campeonato, as pacatas senhoras, todas velhuscas, levam uma vida de futricas sob a vista tutelar do vigário da paróquia- por meio do filtro narrativo de um personagem que tinha tudo para ser, ele sim, um rematado vilão.
Aliás, atormentado pelo suicídio da mãe neurótica, pela perda do pai alcoólatra, pelo afastamento do melhor amigo e também pela descoberta de que seu tio Alo, o herói familiar que supostamente fizera a vida na cidade grande ("Ele manda em dez homens em Londres!"), é na verdade um reles porteiro subserviente, nosso anti-herói agarra-se a compensações imaginárias e chega até a adotar os critérios de probidade do meio, desejando inconscientemente ter por mãe sua arqui-rival, Dona Nugent. Ao se dar conta disso, sua repulsa e dor o fazem penitenciar, a si e aos outros, com cólera tanto maior.
Vítima da torpeza do ambiente, a fala irada do narrador de poucos horizontes é dotada de uma clareza interna que põe o mundo a descoberto. Este, da forma como é retratado no romance, encontra-se sob o signo de duas imagens: uma, a mais óbvia, é a figura do porco, índice do ultraje com que a senhora Nugent (e toda a cidade) trata a família de Francie, o narrador; outra, já menos aparente, mas que percorre todo o livro, são os retratos de JFK espalhados pelas casas das gentes de bem -uma espécie de santo patrono contra o gênio do mal, Khruschov. Entre elas, traçando um paralelo engenhoso entre o destino individual e a atmosfera apocalíptica da época, está o conflito, a que o romance não faz referência direta, da Baía dos Porcos, em Cuba.
Sem uma linguagem bem orquestrada, sem a técnica apurada que revela ter, o livro cairia facilmente no melodrama tradicional, na história de terror que só deseja prender a atenção por uns minutos e nada mais. Patrick McCabe, neste bom romance, envolve não só por dar uma dimensão eletrizante à escalada enraivecida do herói, mas também por fixar a narrativa a algo mais sólido, adequando a fala do personagem a seu irrefletido modo de ser.


José Marcos Macedo é mestre em teoria literária pela USP.



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