São Paulo, domingo, 15 de março de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS
A letra dos mortos

Rogério Albuquerque/Folha Imagem
O livreiro e antiquário Pedro Corrêa do Lago em seu alfarrábio em São Paulo



O livreiro Pedro Corrêa do Lago edita em álbum parte de sua coleção de 25.000 autógrafos célebres


JOÃO BATISTA NATALI
da Reportagem Local

Uma criança colecionadora de figurinhas carimbadas ou um adolescente com quilos de conchas recolhidas na praia talvez demonstrassem o mesmo entusiasmo. Mas Pedro Corrêa do Lago, 40, tem alguns nítidos diferenciais.
Seus 25.000 autógrafos -de longe a maior coleção brasileira do gênero- narram, sozinhos, uma sequência pitoresca de histórias, em relação às quais esse filho de diplomata, livreiro e antiquário, coloca-se mais ou menos como uma espécie de porta-voz erudito.
Ele discorre com eloquência e rapidez sobre cada peça da coleção -um simples cartão de visitas amarelado, com um bilhete de poucas palavras no verso, um pergaminho que já valeria pela escrita gótica de um calígrafo, uma fotografia com dedicatória, uma longa carta com palavras arredondadas, desenhadas em bico de pena.
Os romancistas Thomas Mann, Machado de Assis ou Giuseppe Tomasi de Lampedusa estão logo ali, dentro de pastas, sob a forma de cartões ou bilhetes, encomenda de remédios, agradecimento a um convite para jantar.
Músicos como Beethoven, Richard Wagner ou Carlos Gomes estão arquivados numa gaveta mais abaixo. Não falam, nesses fragmentos de cotidiano, da arte que os consagrou. Discorrem sobre dinheiro ou família. A carta assinada por Verdi é prova explícita de sua preferência pelos vinhos italianos Chianti.
Giacomo Puccini dá com quase um século de atraso uma má notícia para o libretismo brasileiro: recusa a oferta de Osório Duque Estrada de parceria para uma ópera.
Esse mundo díspar e fascinante de documentos está armazenado em arquivos metálicos à prova de fogo. Impossível calcular com precisão seu valor.
"Na Europa, dá para saber quanto vale uma carta de Mark Twain ou outra de Victor Hugo. Aqui, sem um verdadeiro mercado, não é simples avaliar um bilhete assinado por Graciliano Ramos, Olavo Bilac ou Monteiro Lobato."
De maneira bem genérica, ele diz ter poucos autógrafos que valeriam internacionalmente mais de US$ 15.000. O grosso, afirma, estaria na faixa de US$ 100 a US$ 500.
"Não tenho casa própria, ações compradas em Bolsa ou patrimônio. Tudo o que tive até hoje eu investi na coleção", diz Pedro Corrêa do Lago.
Uma coleção que foi iniciada quando ele mal completara 11 anos. Na época, revela, descobriu entre os livros do pai uma espécie de "Who"s Who" que trazia o endereço postal de artistas, escritores ou personalidades públicas ainda vivas, da premiê israelense Golda Meir ao cineasta francês François Truffaut.
Passou a escrever para todos eles. Recebeu algumas respostas -curtos bilhetes personalizados- e engordou sua coleção embrionária com doação de parentes.
Dois anos depois, descobriu em Londres que os autógrafos constituíam um sólido mercado. Passou a comprá-los com parte da mesada. Nunca por mais que duas ou três libras esterlinas.
A mania não o largou mais. Aos 17 anos, passa a viver no Brasil -até então, havia morado na Bélgica, Venezuela e Suíça.
Forma-se em economia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio. Faz mestrado como orientando do atual ministro da Fazenda, Pedro Malan. Tema: da Sumoc (Superintendência da Moeda e do Crédito do Banco do Brasil) à criação nos anos 60 do Banco Central. É estagiário no BankBoston. "Mas não nasci para ser economista."
Muda-se em 1986 para São Paulo. Abre no bairro do Itaim uma livraria, a Corrêa do Lago, que se especializa em gravuras (hoje 15.000 em estoque) e livros antigos (60.000). Espécie de Disneylândia para qualquer cidadão com o mínimo de curiosidade intelectual.
É bem verdade que, em meio a bibliófilos sem muito dinheiro, prevalecem decoradores com carta branca de seus clientes. É chique exibir um ambiente com metros lineares de livros encadernados.

A OBRA
Documentos Autógrafos Brasileiros - Pedro Corrêa do Lago. Ed. Salamandra (av. Nilo Peçanha, 155, salas 301/5, CEP 20027-900, RJ, tel. 021/240-6306). 192 págs. R$ 70,00.



Mas, na livraria, Pedro Corrêa do Lago circula com a desenvoltura de um nobre em seu feudo. É lacônico nas ordens que transmite do alto de seu 1m92 de altura. Mas tem o sorriso fácil, a afabilidade dos quatrocentões que escolhem com cuidado a palavra de efeito e que irá agradar.
Sua mãe é filha de Oswaldo Aranha, um dos líderes gaúchos da Revolução de 30, ministro das Relações Exteriores durante o Estado Novo e um dos defensores, no início dos anos 40, do alinhamento do Brasil aos Estados Unidos -e não à Alemanha- na Segunda Guerra Mundial.
"Eu infelizmente nada herdei de vovô. Toda a correspondência dele -com os autógrafos que ela continha- foi doada ao CPDoc, o centro de estudos históricos da Fundação Getúlio Vargas, no Rio.
O pai, com família de origem maranhense, foi diplomata por 40 anos e embaixador por 26. Aposentou-se nos anos 80 como embaixador em Paris.
"Fui criado em meio a muita evocação de um período que não vivi", diz em referência à família. "Cresci com muito conforto, sem ser rico", complementa ao ser indagado sobre as pinceladas que comporiam seu retrato.
Da mesma forma que os filatelistas são cartógrafos ou geógrafos amadores, os colecionadores de autógrafos acabam virando historiadores, por força de ofício.
Um álbum de capa escura, uns 80 cm de cada lado, exemplifica essa vocação. De d. João 1º (século 14) até FHC, há todos os reis portugueses do Brasil Colônia, os dois imperadores e todos os presidentes -com exceção de Collor, sobre quem que Pedro Corrêa do Lago diz não fazer questão.
Fora do álbum, e em meio a outros fetiches ou afetos, o autógrafo mais enigmático é o de Afonso, o Sábio, rei português em 1210. Possivelmente analfabeto, em lugar de assinar o nome ele desenhava nos pergaminhos um leão.
O menos enigmático dos personagens presentes é um outro monarca, d. Pedro 2º. Sua pasta começa com uma centena de cartas ou fotografias dedicadas e termina com o convite para seu enterro, no exílio, em Paris.
Os atuais descendentes da família Orleans e Bragança são amigos do colecionador. Em sua livraria, uma cadeira metálica com o assento a um metro e meio do chão foi providenciada para uma noite de autógrafos de d. João, irmão de d. Pedro de Alcântara, suposto sucessor do trono brasileiro e patriarca do ramo de Petrópolis da família imperial.
Mas Pedro Corrêa do Lago nega ser monarquista. Em política, define-se como admirador do presidente Fernando Henrique Cardoso e por suas afinidades com o PSDB,
De comum com os descendentes da princesa Isabel o colecionador tem de qualquer modo a francofilia. "Gosto de comida francesa, de ler em francês, da França."
A exemplo do francês médio, não é chegado a computador. Não navega tampouco na Internet, em que seria um surfista privilegiado, em razão dos cinco idiomas que fala e redige correntemente.
"Quem tem e-mail lá em casa é a Bia", diz com um novo sorriso, referindo-se a sua segunda mulher, filha do escritor Rubem Fonseca.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.