São Paulo, domingo, 15 de março de 1998

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Cenas da intimidade

da Reportagem Local

Percorrer com os olhos uma boa sequência de autógrafos provoca algo semelhante ao prazer perverso do voyeurismo: seus autores são por nós surpreendidos em momentos de intimidade.
Passivos, alguns mortos há tantos séculos, não podem reagir à curiosidade de quem não foi o destinatário original de uma carta, da dedicatória de uma fotografia, que não foi súdito ou contemporâneo de um reinado, sujeito à obediência de um decreto ou uma lei.
"Documentos Autógrafos Brasileiros na Coleção Pedro Corrêa do Lago", com suas 191 páginas trabalhadas com atraente projeto gráfico, é um livro com uma vantagem suplementar: Cruza, em todos os momentos, personagens sobre os quais qualquer um de nós possui referências precisas.
Autógrafo é uma palavra ambígua. Pode ser, em sentido corrente, a assinatura de uma personalidade do mercado cultural que determinado admirador cultua com evidente fetichismo.
Na historiografia, no entanto, autógrafo é o documento manuscrito com certo interesse.
Dois primeiros exemplos que o livro de Corrêa do Lago traz: Santos Dumont, às vésperas do suicídio, lança a 14 de julho de 1932 um apelo para que mineiros e paulistas não se confrontem numa revolução fratricida; Carlos Drummond de Andrade, redator-chefe do "Diário de Minas", escreve em 1928 a Oswald de Andrade, dizendo não ter gostado de todos os poemas que comporiam seu livro "Primeiro Caderno".
Nelson Rodrigues, dramaturgo de profundidade amoral, aos 13 anos faz uma composição escolar em que elogia o escotismo, "instituição mais pura, mais perfeita que existe na história da humanidade".
As frases se deslocam na história. Trazem conteúdos inesperados. "O brasileiro é muito revolucionário enquanto não lhe tocam nas comodidades e principalmente na bolsa..." Algum reconhecido cínico? Não. É de Luiz Carlos Prestes, em carta de 1927.
"Quando muito, sou um aspirante à profissão (de escritor), aguardando sem pressa que as circunstâncias definam-me a vocação", diz em carta de 1896 Graça Aranha, ao recusar um convite para ocupar uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras.
São todos exemplos pescados ao acaso. São no mínimo curiosos, por vezes fascinantes, em suas caligrafias, escritas personificadas -que nem por isso se prestariam a um diagnóstico psicanalítico do autor.
A coleção de autógrafos de Pedro Corrêa do Lago é um mundo dentro do mundo. A publicação que ele faz de pequena amostragem provoca, à leitura, um agradável e constante sorriso nos lábios. (JBN)



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