São Paulo, domingo, 15 de março de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Biografia de um mediador


"Montaigne a Cavalo" retrata a atuação política do pensador francês


MILTON MEIRA DOS NASCIMENTO
especial para a Folha

O título desta biografia de Montaigne poderia parecer no mínimo curioso para retratar um dos maiores expoentes da filosofia moderna, o defensor da autonomia moral do indivíduo, do ideal cético da investigação cuidadosa, da tolerância religiosa, dos direitos sociais dos menos favorecidos e de tantas coisas mais que Jean Lacouture nos mostra de maneira muito ágil e leve, sem ser leviana.
Jean Starobinski já nos havia mostrado "Montaigne em Movimento", imagem que agora nos é retomada do nosso filósofo a cavalo, instrumento indispensável para os viajantes do século 16. Nessa perspectiva, Montaigne (1533-1592) é apresentado como a figura emblemática da própria concepção de filosofia que nos foi legada por ele. Quem é esse autor capaz de nos deixar uma obra impressionante como os "Ensaios", ter fôlego para acompanhar todos os movimentos político-religiosos de sua época e ser convidado para administrar a segunda cidade mais importante da França no século das guerras de religião?
Como teria se comportado o filósofo diante de tantos acontecimentos, de um século tão conturbado pela rapidez das transformações políticas, sobretudo na França, em meio à luta feroz entre liguenses e reformados? Enfim, a filosofia é contemplação ou imersão nos acontecimentos? Montaigne não nos aparece aqui como um simples espectador da história, sobretudo porque a imagem a cavalo poderia nos dar a entender que esse espectador privilegiado quisesse olhar o mundo um pouco mais do alto do que permitia sua baixa estatura. Ele está presente em todos os movimentos mais importantes que irão decidir a unificação do Estado francês com Henrique de Navarra, o Henrique 4º, depois de tantos incidentes nos quais nosso filósofo desempenhou papel decisivo.
Jean Lacouture nos mostra o senhor de Montaigne, desde suas aventuras numa área de sua especialização, as mulheres, até a sua relação ambígua com Etienne de la Boétie, o autor do "Discurso sobre a Servidão Voluntária", relação que o autor da biografia não hesita em caracterizar como homossexual, sem deixar de nos apresentar alguns textos de Montaigne, nos quais não se poderia perceber outra coisa senão uma relação explícita de uma grande "amizade-paixão".
Vejamos uma parte dos "Ensaios", nos livro 1, no capítulo sobre a amizade: "Em nosso primeiro encontro casual, por ocasião de uma festa pública e em numerosa companhia, sentimo-nos tão atraídos um pelo outro, já tão próximos, já tão íntimos que desde então não se viram outros tão íntimos como nós. (Eis por que) nossa amizade tão repentina alcançou tão rapidamente esse grau de perfeição. Devia durar tão pouco que não havia tempo a perder (...), levados por não sei que atração total (que fazia nossas vontades) (...), se perderem uma na outra, (...) se fundirem numa só (1,28)".

A OBRA
Montaigne a Cavalo - Jean Lacouture. Tradução de F. Rangel. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 021/585-2000). 324 págs. R$ 38,00.



E Lacouture faz questão de invocar outra passagem desse mesmo capítulo: "Em semelhante ligação, em que não apenas a alma provasse plena satisfação, mas também o corpo encontrasse seu prazer, em que cada qual assim se entregasse por inteiro, a amizade seria mais perfeita e total". Este é um dos aspectos ousados desta biografia e que tem provocado a reação de alguns montaignistas que sempre viram nesse texto um elogio da amizade pura e simplesmente. De qualquer maneira, não se pode negar a forte presença de Etienne nas páginas dos "Ensaios", segundo alguns comentadores, escrito como uma espécie de homenagem a La Boétie e encorajado pela lembrança dessa grande amizade.
A própria sorte da obra de La Boétie -"O Discurso sobre a Servidão Voluntária", cuja publicação na íntegra não foi patrocinada por Montaigne, que, aliás, decidiu não apresentá-la nem mesmo em forma de resumo nos "Ensaios"-, certamente foi decidida tanto pelo seu conteúdo radical contra a tirania quanto pela amizade que uniu esses dois autores. Montaigne preferiu apresentá-la como um arroubo de juventude de seu amigo, porque certamente não poderia tomá-la como um libelo contra a monarquia, contribuindo assim para alimentar a corrente reformada contra o poder real, o que de fato aconteceu com a utilização do texto por um teóricos mais importantes da reforma, François Hotman, autor de "O Despertar dos Franceses".
Montaigne desempenhou o papel de mediador no fogo cruzado da luta pelo poder entre a família real, entre Henrique 3º, Henrique de Guise e Henrique de Navarra, sob o comando de Catarina de Médicis. Luta que se desenvolvia também sob o signo da luta religiosa entre católicos e protestantes. Como poderia comportar-se o amigo de Henrique de Navarra -chefe dos huguenotes e, ao mesmo tempo, homem de confiança do poder real, o qual a cada momento difícil o encarregava das missões de pacificação e de coabitação entre as duas facções em conflito? Não foi à toa que Montaigne ganhou a confiança real e foi indicado prefeito de Bordeaux.
Não é ir muito longe dizer, como Jean Lacouture, que, tanto na vida política quanto no trabalho teórico -e até mesmo na vida amorosa- a trajetória de Montaigne tenha se pautado pela ausência de um compromisso radical, que, por exemplo, no terreno político, pudesse identificá-lo com um dos partidos em luta. Embora fosse católico e fiel seguidor de seu soberano, era o homem de confiança do chefe huguenote nas negociações difíceis, que culminaram com o assassinato de Henrique de Guise e com a sagração de Henrique de Navarra. Já em 1572, sobre o grande massacre da noite de São Bartolomeu, Montaigne não se pronuncia. Moita. Por quê? Certamente esse filósofo levara às últimas consequências seus princípios de uma reflexão atenta, que não deixasse escapar nenhum ângulo da questão, e que, a cavalo, certamente pudesse refletir melhor do que em seu gabinete, no castelo dos Montaigne. Da mesma forma que, a cavalo, poderia apreciar melhor a beleza das venezianas ou das romanas que se punham à janela para serem apreciadas pelos transeuntes.
Se o Montaigne político às vezes nos dá a impressão de estar em cima do muro, servindo aos dois lados nas negociações, isto certamente é sinal de que não conseguiu separar a sua reflexão da imersão na realidade concreta do seu tempo. Preço alto para alguém que tivesse como alvo o poder, o que certamente não era o caso do castelão Montaigne, embora, em alguns momentos, tivesse mostrado a habilidade de um grande estadista, agindo rapidamente para surpreender o inimigo antes que este desfechasse o ataque mortal para tirá-lo da prefeitura. Se o filósofo consegue dar conta das contradições da sociedade, fazendo abstração da história, o homem de ação não pode vacilar, não pode manifestar incertezas. Precisa agir com rapidez e mostrar claramente de que lado está. Afinal, entre os Guise, os Bourbon, "Margot", Etienne de la Boétie, Du Plessis-Mornay, onde achar Montaigne? Em toda parte e em nenhuma.


Milton Meira do Nascimento é professor de filosofia política da USP e autor de "Opinião Pública e Revolução" (Edusp/Nova Stela).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.