São Paulo, domingo, 15 de abril de 2001

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Argentina em crise

Associated Press - 21.jun.2001
Funcionários públicos protestam contra corte de salários em Buenos Aires


Para sociólogo, o capital financeiro que se instalou no país trouxe um conteúdo intrinsecamente autoritário, que visa apenas a destruir sua sociedade e seu Estado

por Guillermo O'Donnell

Nem bem terminei este artigo e chegou a notícia da nomeação de Domingo Cavallo para ministro da Economia (em 19/3). Esse episódio devolve ao governo um dos principais promotores -primeiro como presidente do Banco Central durante a ditadura militar e depois como ministro da Economia de Menem- dos processos que descrevo abaixo. Seria mais que ingênuo pensar que essa nomeação modificará as características e as consequências da crise que analiso neste texto.
O capital financeiro que se impôs na Argentina tem administradores, ideólogos e propagandistas muito bem remunerados. Mas não tem nem pode ter aliados sociais. A crise dentro da crise que vive nosso país deveria servir pelo menos para deixar isso claro. Entendê-lo é importante, não só por si, mas também porque indica os possíveis, embora árduos, caminhos que permitiriam solucionar a crise. Esse é o tema deste texto. Ele contém dois argumentos principais.
Um é que o tipo de capital financeiro que se impôs na Argentina não pode ter aliados sociais e que, obedecendo a sua própria lógica, não pode querer outra coisa além de continuar devorando a sociedade e o Estado argentinos. O segundo argumento é que a orientação política desse capital vai desprendendo, de maneira cada vez mais clara, seu conteúdo intrinsecamente autoritário. Infelizmente, como aqui defendo opiniões diferentes das que promovem, com um ensurdecedor aparato propagandístico, os (mal) chamados mercados, terei que fazer alguns rodeios e explicar alguns conceitos. Espero que a paciência dos leitores e leitoras me acompanhe.

Caminhos de sucesso A democracia contemporânea coexiste intimamente com o capitalismo. O capitalismo se movimenta e se reproduz sobretudo por meio dos lucros que os empresários realizam e reinvestem. Esses reinvestimentos legitimam a dominação social dos capitalistas: eles podem argumentar que seu interesse setorial em obter esses lucros é o interesse geral da sociedade, ou seja, por meio de seus investimentos os capitalistas geram emprego e crescimento econômico, e, com os impostos que capitalistas, trabalhadores e outros pagam, o Estado pode prover diversos bens, inclusive para os trabalhadores e os setores mais desprotegidos.
Essa é basicamente a equação keynesiana que promoveu o progresso do capitalismo mundial a partir da Segunda Guerra. Mais tarde, há aproximadamente duas décadas, se acelerou a globalização. Ela inclui o importante peso de um capital financeiro que pode entrar ou sair rapidamente dos países.
Isso criou, mesmo nos países mais poderosos, importantes restrições em suas políticas macroeconômicas (que devem levar em conta a volatilidade do capital financeiro), os levou a induzir suas empresas a exportar cada vez mais e a reduzir o tamanho do Estado (coisa que muito poucos fizeram) e reinventá-lo como entidade menos "ampla" em suas atribuições, porém mais ativa e eficaz em suas intervenções.

Agente do bem público Esses países estão navegando com bastante êxito as tormentas da globalização. São eles Estados Unidos, Canadá, os da Europa Ocidental, Austrália e Nova Zelândia, assim como Japão, Coréia e Taiwan, entre outros. Eles enfrentaram e seguramente voltarão a enfrentar situações difíceis, incluindo problemas de extenso desemprego. Mas esses problemas, que boa parte desses países já superou, foram atenuados pelo seguro-desemprego e outras políticas de proteção social que só podem ser empreendidas por um Estado que continua sendo reconhecido como alavanca fundamental de desenvolvimento e de igualdade social.
Nesses países, o capital financeiro continuou exercendo o papel que lhe corresponde em uma economia voltada para o crescimento. Isto é, aceitar as relações entre outras ramificações do capital ao facilitar, sobretudo por meio de créditos e do funcionamento de Bolsas de Valores, a capacidade de operação e investimento daquelas.
Apesar de nesses países parte do capital financeiro ter-se deslocado para operações especulativas, boa parte do mesmo -e isso quero ressaltar pelo contraste com a Argentina- continua casada com o desenvolvimento das estruturas produtivas -industriais, agrárias e comerciais- que ajuda a financiar e do qual deriva, consequentemente, boa parte de seus próprios lucros. Portanto, é do interesse direto desse tipo de capital financeiro que a estrutura produtiva dos respectivos países se amplie e prospere. É por isso que, apesar das incertezas provocadas pela globalização, esses países conseguiram coisas fundamentais.
Refiro-me, entre outras, a conservar estruturas produtivas dinâmicas, embora parcialmente transformadas; internalizar e difundir socialmente (por meio de educação e trabalho) as inovações científicas e tecnológicas; e reconstituir um Estado que, ao expressar e reforçar essas tendências, continuou sendo um agente basicamente verossímil do bem público. Uma consequência disso é que, embora longe de perfeitas, as democracias desses países gozam de boa saúde.
Infelizmente quase nada disso ocorreu na Argentina.
Discuti em outros textos, que aqui não posso reproduzir, as causas que explicam o rumo que nos levou à crise atual. Esse rumo, anunciado no "Rodrigazo" (1), começou organicamente na malfadada gestão -economicamente inepta e socialmente vingativa- de Martínez de Hoz. Esse foi um verdadeiro pioneiro em seu viés antiindustrial, antitrabalhador e pró-financeiro (recordemos a "tablita" e a especulação desenfreada que provocou), para não falar na brutal repressão em que apoiou suas políticas.
Aí começou a espiral das duas maldições que hoje nos perseguem, a dívida externa e a desintegração da estrutura produtiva. Essa espiral continuou, com o interlúdio parcial do governo Alfonsín (1983-1989) e o fracassado plano Austral, até nossos dias. No caminho, como sabemos pelos trágicos dados da pobreza, do desemprego, da desindustrialização, do desaparecimento de economias regionais e outros, essa espiral conseguiu nos colocar em questão como nação que aspira a ser um teto acolhedor para todos os seus habitantes.
Conexões perversas Nos capitalismos como os mencionados na primeira parte, o capital financeiro continua apoiando a reprodução do capital produtivo; embora tenha ganho peso em relação a outros tipos de capital, aqui ele continua sendo um componente importante, mas não dominante, da forma como esses capitalismos se reproduzem dinamicamente. A tragédia de nosso país é que isso não acontece. Entre nós o capital financeiro tem duas características tão perversas quanto intimamente relacionadas. Uma: já quase não tem conexões com o capital produtivo operante entre nós; além disso, boa parte dessas tênues conexões funciona para obter lucros que, em vez de serem reinvestidos onde foram gerados, realimentam os circuitos do capital financeiro.
A outra característica é que quase todos os lucros desse capital surgem de operações centradas na especulação, política e econômica, em nosso país e no exterior, com os títulos da dívida pública e com as minguadas perspectivas de nosso país continuar a pagá-la -o "risco país" é um termômetro dessas especulações. Esse capital, seja ele castelhano ou inglês (ou qualquer outro), tem um interesse absolutamente prioritário: que a Argentina (na verdade os argentinos, aos quais se pode aplicar o torniquete necessário) pague os juros da dívida pública (embora nunca possa pagar o capital, mas isso não é problema para ele, já que garante em seu benefício sucessivas renovações, com seus consequentes juros, de uma dívida que por isso mesmo continua crescendo). Por seu lado, o Fundo Monetário Internacional faz simplesmente o que sua missão exige: vigiar e, se for o caso, pressionar duramente para garantir essa capacidade de pagamento. O Fundo e esse capital financeiro coincidem nesse interesse prioritário: que de alguma maneira se pague o "serviço" da dívida. Para que isso ocorra, o Estado deve ter suas contas mais ou menos equilibradas, de maneira que, mesmo que não tenha um superávit, o capital financeiro sinta "confiança" suficiente na capacidade de pagamento do Estado para continuar renovando (e portanto aumentando) a dívida e, graças a isso, continuar recebendo juros acrescidos.

Confiança trêmula Assim, esse capital realiza seus lucros, que reaparecem como uma dívida externa que aumenta, por isso mesmo, contínua e rapidamente. Além disso, o Estado, sobretudo depois que renunciou inevitavelmente à propriedade de atividades (como gás e petróleo) que podiam lhe fornecer divisas diretamente, enfrenta o problema adicional de conseguir que esse mesmo capital financeiro aceite trocar (mais ou menos um para um) os pesos que o Estado arrecadou pelas divisas de que necessita para lhe pagar.
Há outra boa razão, sutil, mas nada insignificante, para a voracidade insaciável desse capital: seu interesse racional é equilibrar, por um lado, a capacidade de o país continuar pagando e, por outro, maximizar os juros que cobra.
Essa é outra razão pela qual esse capital exibe, no melhor dos casos, uma "confiança" trêmula que justifica um "risco país" e seus consequentes juros, constantemente altos -cabe entender, diante desse difícil e sempre móvel ato de equilíbrio, as generosas remunerações dos peritos administradores desse capital, assim como se compadecer dos funcionários que, com boa intenção, mas horizonte curto, têm que dançar ao compasso desses cálculos. Finalmente, esse capital financeiro, com escassos vínculos com o que resta de nossa estrutura produtiva, pouco se interessa pela sorte desta, já que uma pequena parte de suas atividades e de seus lucros provém de financiá-la -dilapidando-a com créditos que beiram a usura.
Claro que o custo de continuar cumprindo esse ciclos é espremer cada vez mais um país que -evidentemente, dadas essas circunstâncias- não consegue sair da recessão e de suas trágicas consequências sociais. Mas, embora talvez alguns o lamentem pessoalmente, não é isso que importa para os administradores e porta-vozes do capital financeiro.
A lógica de ferro desse capital exige "confiança", e essa confiança consiste em mostrar a capacidade do país de continuar se endividando, por meio do pagamento de suculentos juros, com esse mesmo capital. Esses ciclos dominam, como vimos repetida e claramente, a política econômica e fiscal de nosso país -em um grau e tipo de dependência que não sonharam nem sequer os textos mais pessimistas sobre dependência escritos há algumas décadas.
O fato é que entre nós o capital financeiro conseguiu ser, em contraste com os países que seguiram caminhos menos destrutivos, a ramificação claramente dominante do capital.

Propinas imensas Parte desse resultado internacionalmente insólito, pelo menos entre países que ainda aspiram a ser nações, se deve atribuir à globalização. Mas já vimos que essa é apenas parte da explicação. Uma parte ainda maior deve ser buscada no resultado de uma corrupção sistemática (em que também foi pioneiro o período de Martínez de Hoz e seus violentos, mas muito tentáveis, sócios militares), em propinas imensas, em manobras brilhantes contra o fisco e, por certo, em privatizações duvidosas. Como deixa entrever o caso Moneta (2), uma imensa massa desse dinheiro "sai" do país para regressar em parte -cúmulo dos cúmulos- como dívida externa, por meio de "prestações" que ajudaram muito não apenas a especulação sobre a dívida pública, mas também que o capital financeiro comprasse a preço de liquidação e subordinasse a seu próprio padrão de acumulação uma parte considerável do que nos foi restando de estrutura produtiva.
Impelido por essa lógica, o capital financeiro governa cada vez mais completa e diretamente. Se os "mercados" perdem "confiança", por meio de sua fuga ameaçam com a cessação internacional de pagamentos ao país, ao qual já não comprariam os pesos de que precisamos para continuar pagando em divisas os juros da dívida. Isso é, simples e claramente, uma extorsão. Provoca rigorosamente cada vez mais "ajustes" para que o Estado, cuja capacidade tributária cai no compasso das recessões que esses mesmos ajustes aprofundam, extraia mais um quilo de carne da população. A extorsão é poderosa porque é verossímil. Em contraste com boa parte do capital produtivo, incluindo o tipo de capital financeiro que tem fortes vínculos com ele, o que opera entre nós pode sair quase completamente do país sem ter de lamentar ter deixado muito mais que alguns bons computadores e algumas belas mansões em Pilar.
Quero insistir sobre um ponto crucial. Dada a posição estrutural que esse tipo de capital financeiro alcançou em nosso país (tênues vinculações com a estrutura produtiva e, paralelamente, concentração de suas atividades na especulação centrada na dívida pública), o mesmo atua com rigorosa racionalidade, acompanhado pela verdadeira missão de várias agências internacionais (em especial, mas não exclusivamente, o FMI): garantir, por meio de todos os "ajustes" necessários, a capacidade de o país continuar pagando os juros da dívida e, ao mesmo tempo, aumentando-a.
Além disso, um tipo de capital que se tornou tão dominante -inclusive sobre outras frações do capital que operam localmente- e com tamanha capacidade de extorsão quer maximizar ilimitadamente seus lucros. Assim, deixa claro que não está disposto a aceitar que os "ajustes" incluam que ele pague alguns impostos sobre suas próprias atividades e lucros -veja-se por exemplo a espetacular omissão desse teor nas medidas anunciadas por López Murphy (3).
A auto-isenção de obrigações que mostrariam um mínimo de solidariedade com o país do qual extrai seus lucros é característica da arrogância de um capital que se sente sem inimigos à vista, sejam eles outros setores capitalistas que quanto mais acertam ao se queixar de serem também eles explorados como uma sociedade esgotada pelo desemprego e o empobrecimento constantes. Essa arrogância aparece no discurso dos porta-vozes desse capital. Eles retrucam nos advertindo de que cada volta do parafuso é absolutamente a única coisa que se pode fazer e que, portanto, toda crítica é sinal de "ideologia" e "irracionalidade".
O que esses porta-vozes dizem, é claro, não é nada disso; é conhecimento "técnico", apoiado por credos econômicos que exportam do Norte para os crédulos subdesenvolvidos, mas que ali não crêem nem praticam.

Solidão dos vencedores O problema para esse capital e seus porta-vozes é que seu discurso não pode ser verossímil. É demasiado evidente, apesar dos esforços publicitários que se fazem e que serão redobrados no futuro, que o interesse particular desse capital financeiro não pode ser de maneira alguma o interesse geral de nossa sociedade. Esse capital, em contraste com outros mais engajados nas respectivas estruturas produtivas, não pode legitimar a dominação que exerce e que vem estendendo, em um crescendo quase ininterrupto desde o processo até a cúpula do Estado.
A voraz especulação que constitui esse tipo de capital tem, na medida em que se desnuda cada vez mais, a grave consequência de despojá-lo de aliados sociais. Evidentemente, para dissimular a nudez, esse capital pode usar sua imensa capacidade de corrupção e de cooptação. Mas essas não são alianças que permitem projetar estratégias políticas; são contratos de compra e venda de pouca duração e baixa densidade política. Há pouco tempo, em uma entrevista que me fez Horacio Verbitsky no jornal argentino "Página 12", falei no risco de morte lenta de nossa democracia. Isto é, não se trataria de um golpe militar abrupto, mas da progressiva corrosão das liberdades básicas, o crescente distanciamento da política em relação ao conjunto do país e a redução da política ao estreito cenário das intrigas de palácio.
Nesse sentido, o desnudamento da lógica implacável resultante da posição que alcançou o capital financeiro, espetacularmente acelerado pelo recente "ajuste", me parece por um lado motivo de profunda preocupação e, por outro, indício de rumos melhores que talvez ainda possamos empreender.
Explico-me. A forma de operação do capital financeiro em nosso país e sua consequente solidão social aparece na política por meio de um discurso cada vez mais autoritário. Esse discurso insiste em que a pílula amarga do eterno ajuste deva ser imposta a uma população que não sabe na verdade o que lhe convém; não fala aos cidadãos, mas a sujeitos, cujo descontentamento interpreta, é claro, como confirmação de sua irracionalidade e ignorância. Daqui há apenas um passo para reprimir com boa consciência as manifestações desse descontentamento -se os governantes vão fazer direito suas contas, em seus cálculos orçamentários deveriam incluir novos gastos para gases lacrimogêneos, balas (esperemos que apenas) de borracha, espionagem de lideranças sociais e soldo extra para policiais e -por que não?- militares, entre outras belezas.
Esse discurso comete a mesma degradação do outro quando se refere aos "políticos", embora claro que não se refira a todos (há alguns que entendem "os mercados"), mas aos que de alguma maneira expressam, embora às vezes com notável recato, esse descontentamento. A política pública, incluindo aquela que afeta profundamente uma imensa maioria, é subtraída da discussão pública -somente alguns, os que sabem e têm os contatos adequados, podem decidir.
Salvo os que recitam o credo do capital financeiro, todos os demais estorvamos -espero que este artigo também.
Essa é, evidentemente, a própria essência do discurso autoritário. Para dizer de maneira suave, pouco condiz com o regime democrático e com as liberdades que ainda temos. Como conseguir votos no Congresso e, principalmente, na população -augúrios cada vez mais negros das eleições de outubro- para validar esse "ajuste" interminável? Claro, por enquanto se pode abusar do recurso profundamente antidemocrático dos decretos de "necessidade e urgência" e das "leis de emergência". Mas a precariedade legal desses recursos deixa "os mercados" nervosos. A rota do ajuste, sobretudo desde que desnuda sua vinculação com esse capital financeiro, é a da desvalorização, se não da moeda, da cidadania e, com ela, a tendência a uma crescente repressão que -ecos de épocas não tão distantes- se autojustificará na incurável "irracionalidade" das pessoas, de suas lideranças sociais e dos "políticos".

Possibilidades O que acabo de descrever não tem a ver com as características morais (além do mais, ao que parece, nada elevadas) dos administradores e corifeus desse capital financeiro. Trata-se de um dado estrutural, o da posição que este conseguiu e, a partir dela, da lógica inelutavelmente predadora com que realiza seus lucros. Dado isso, aqueles seriam muito maus administradores se não continuassem dilapidando o país.
Escrevo estas linhas não apenas porque vale a pena conhecer esses mecanismos. Também o faço porque eles marcam algumas demandas e, talvez, algumas possibilidades, à política. Diante dessa perversa estruturação da dominação do capital financeiro, as lideranças políticas que se pretendem democráticas e progressistas não têm o direito de agir como se o que está ocorrendo não passasse de percalços de um caminho que por si mesmo não é objetável.
As intrigas de palácio e as lutas para conseguir ou manter certo cargo no governo não desviam em um milímetro a trajetória destrutiva pautada por esse capital financeiro. Além disso, essas manobras apenas ratificam o desprezo desse capital pelos "políticos" e abrem caminho para diversas vocações autoritárias.
Há momentos na história em que as lideranças sociais e políticas devem convalidar sua posição ou cedê-la a outros, por meio de um lúcido e corajoso esforço para reverter tendências maléficas. Ao final da Primeira Guerra Mundial, contemplando a triste situação da Alemanha e entrevendo seu terrível futuro, Max Weber afirmou, sem perder nem exagerar a esperança, que "a política é um árduo limar de duras madeiras". Isso não é menos válido para a Argentina hoje.
O futuro de um país cada vez mais dilapidado e governos cada vez mais autoritários só pode ser evitado com uma grande tarefa política: promover uma aliança produtiva fundada em valores de equidade social e de revigoramento democrático que por sua vez sustentem a decisão de reconstituir uma nação contra a mera aglomeração de indivíduos, aliás cada vez mais desigual, a que nos leva ao processo que descrevi.
Para essa tarefa se deveriam convocar os segmentos capitalistas que ainda têm alguma capacidade e vocação produtiva e as lideranças sindicais atuais ou emergentes e combiná-los aos impulsos provenientes da sociedade na forma de organizações de usuários, de aposentados, estudantis, de bairro, de direitos humanos, de fomento da transparência governamental e empresarial e, por sorte, um longo etc. Não se trata, é claro, de promover uma aliança de santos (não parecem restar muitos em vários dos atores sociais recém-mencionados), mas de promover objetivamente coincidências entre os que têm tanto aspiração quanto interesses consistentes de que a Argentina e seu Estado sejam um teto acolhedor para todos.
As madeiras que haverá que polir são particularmente duras. O capital financeiro e seu extenso aparato propagandístico se defenderão com unhas e dentes. Ameaçarão e produzirão alguns golpes de mercado, que deveremos atravessar com pulso firme e uma cidadania solidária; seus gurus anunciarão intermináveis desgraças, e os sempre prontos repressores apontarão contra as mobilizações que aqueles que farão aquela política aceitarão e promoverão. Para piorar, o fruto dessas lutas não será imediato. Trata-se de um longo e duro caminho, como corresponde a reverter uma situação que vem há mais de duas décadas estruturando-se em um poder que, embora socialmente seja politicamente solitário, conta com enormes recursos.
Os detalhes desse caminho não podem ser prescritos a priori. Mas a voraz dominação do capital financeiro nos fez, pelo menos, o favor de deixar clara a direção geral desse caminho. Em diversos espaços da sociedade argentina há pessoas e lideranças que acompanhariam essa tentativa. Mas não podem fazê-lo sozinhas. Também são necessárias lideranças políticas que as convoquem e articulem, aceitando sofrer, longe do palácio e seus bolos, os frios ventos de duras lutas contra grandes poderes. Se essas lideranças existem ou se vão surgir antes que seja tarde demais é a grande pergunta que faz o momento atual.


Notas
1. Pacote econômico baixado pelo então ministro da Economia, Celestino Rodrigo, em 1975, durante o governo de Isabel Perón. Consistia, em linhas gerais, na desvalorização do peso e aumento brutal das tarifas públicas, mas em aumento de salários relativamente pequeno. Os sindicatos, em protesto, convocaram greve geral e o governo recuou, levando Rodrigo a demitir-se;
2. Raúl Moneta, ex-banqueiro e amigo íntimo do então presidente argentino, Carlos Menem (1989-1999), sofreu acusações de sonegação fiscal e corrupção;
3. Ricardo López Murphy, ministro da Economia que antecedeu Cavallo. Teve passagem fugaz, de duas semanas, e caiu após deflagrar uma crise política ao apresentar um pacote com cortes de US$ 2 bilhões nos gastos deste ano.



O texto acima foi publicado no jornal "Página 12".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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