São Paulo, domingo, 15 de abril de 2001

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+ brasil 501 d.C.

O império frustrado

Reprodução
"Coroação do Imperador dom Pedro 1º pelo Bispo do Rio de Janeiro..." (1828), óleo sobre tela de Jean Baptiste Debret (1768-1848)


Evaldo Cabral de Mello

Da historiografia do reinado de d. João 6º no Brasil pode-se dizer que aceitou passivamente a concepção que lhe venderam os publicistas da época, segundo os quais o príncipe regente criara finalmente o grande império luso-brasileiro há tanto sonhado pelos estadistas da metrópole. O livro de Oliveira Lima, por exemplo, parte dos pressupostos da ideologia saquarema do Segundo Reinado para creditar o período joanino com haver lançado os alicerces da ordem monárquica, que consolidariam o filho e o neto. Na realidade, a construção imperial não passou de figura de retórica, com que a Coroa bragantina procurou desfazer a penosa impressão criada na Europa pela sua retirada súbita para os domínios americanos, apresentando-a como uma medida de alto descortínio destinada a habilitar Portugal a se retemperar no Novo Mundo para regressar ao Velho na condição de potência de primeira ordem. Do lado de cá do Atlântico, o grande império serviria para afagar a vaidade ingênua dos seus vassalos sudestinos, mediante os arcos de triunfo das celebrações cívicas, com aquele em que, perante o retrato de d. João, a Lusitânia saudosa da real ausência se ombreava com a África ajoelhada e com o Brasil, "de manto real e borzeguins, oferecendo também o coração que tinha nas mãos", tudo encimando a quadra otimista: "América feliz tens em teu seio,/ do Novo Império o fundador sublime./ Será este o país das santas virtudes,/ quando o resto do mundo é todo crime".
Mesmo depois da promoção do Brasil ao estatuto de Reino Unido em 1816, idéia que provavelmente Palmela vendeu a d. João fazendo-a passar por sugestão de Talleyrand, de modo a dar-lhe maior autoridade, a concepção imperial se esgotou em duplicar no Rio de Janeiro o aparato estatal que ficara em Lisboa. A nenhum dos administradores, por não ser possível chamá-los de homens de Estado, de que se cercou o monarca (com a exceção do conde da Barca, cujo francesismo o tornara suspeito, ocorreu que a criação do novo império exigiria adaptar a concepção herdada de d. Luís da Cunha ou do conde de Souza-Tarouca às circunstâncias bem diversas que prevaleciam naquele começo de século 19.
Tal adaptação tinha o nome de reformas políticas, cuja discussão era sempre curto-circuitada nas rodas palacianas pela objeção, reputada esmagadora, de que a Revolução Francesa também começara por elas. Nesse particular, o período joanino caracterizou-se por um extremo conservadorismo, que reduzia a atuação do poder público a questões administrativas a serem resolvidas segundo as práticas do antigo Estado. Mesmo seu ministro mais ativo, d. Rodrigo de Sousa Coutinho, mais não fez, como reconheceu atiladamente Oliveira Lima, que lhe era simpático, do que "acelerar extraordinariamente o movimento sem mudar o mecanismo (do Estado do Antigo Regime), apenas aumentando-lhe as peças e carregando demasiado a pressão". Em última análise, só as reformas políticas poderiam dar ao Reino Unido algumas chances de sobrevivência.
Ninguém analisou com maior acuidade que Hipólito José da Costa a incapacidade de se auto-reformar do Estado português instalado no Rio. Ele julgava mesmo que, no Brasil, o governo real se tornara ainda mais autoritário do que no reino. Se era certo que ali a antiga constituição estava reduzida à teoria, ainda existiam no povo e nas ordens privilegiadas a memória dos antigos privilégios, como as reuniões das cortes, e a consciência de limites tradicionais que mesmo um regime absolutista não podia ultrapassar sem correr sérios riscos, o que, em caso extremo, funcionava como freio às tendências despóticas não d'El Rei, a quem se reconhecia universalmente a bondade chã, embora suspicaz, com que ainda hoje é conhecido, mas dos seus ministros e cortesãos.
Lembrava Hipólito da Costa que o Brasil não possuía nem tradição constitucional nem o que posteriormente virá a ser designado por corpos intermediários. Entre nós inexistia nobreza titular, e as famílias que se impingiam de aristocráticas não formavam uma ordem institucional reconhecida como tal, de modo que, como dizia frei Caneca, suas pretensões não tinham mais peso que a preferência dos cônegos sobre os párocos. Quanto à religião, nem abadias acaudaladas nem prelados faustosos, como os que Beckford havia descrito no reino, de vez que o clero vivia mediocremente da côngrua que lhe pagava o Estado, quando não vegetava na pobreza dos pés-de-altar escassos das vilas do interior. Por fim, no tocante à terceira ordem, as cidades brasileiras jamais haviam gozado do privilégio da representação em cortes.
Hipólito compreendeu desde o início que a transmigração da família real para o Rio mais não fora do que uma mudança de capital. "O governo do Brasil (escrevia em 1809) arranjou-se exatamente pelo Almanaque de Lisboa, sem nenhuma atenção ao país em que se estabelecia. Mostra, por exemplo, o Almanaque de Lisboa um Desembargo do Paço, um Conselho da Fazenda, uma Junta de Comércio etc.; portanto quer o Brasil careça desses estabelecimentos quer não, erigiu-se no Rio de Janeiro, logo que a corte ali chegou, um Desembargo do Paço, um Conselho da Fazenda, uma Junta de Comércio etc." E, com efeito, a elite de poder a quem o monarca confiara a tarefa de criar um novo império carecia precisamente de visão imperial.

Grupo incompetente A análise de Hipólito revela-se particularmente contundente quando incide sobre a qualidade do grupo dirigente. A esse respeito, era revelador o método de seleção dos altos funcionários da coroa. Os grandes aristocratas julgavam ofensivo a seus brios nobiliárquicos enviarem os primogênitos a Coimbra, de modo que nenhum deles possuía graus acadêmicos, à exceção dos filhos segundos que haviam acedido ao título pelo falecimento do irmão mais velho. E, contudo, era nesse círculo que se recrutavam os presidentes dos conselhos, os quais, por sua vez, compunham exclusivamente o Conselho de Estado, que era o órgão máximo do sistema institucional. Fora esse "o mesmo Conselho de Estado que passou ao Brasil para lançar os fundamentos àquele novo e grande império. Que se pode esperar?". O poder tornara-se o monopólio de um grupo de incompetentes, a exemplo do marquês de Ponte de Lima, que, malgrado haver sido impedido por sentença judiciária de gerir seus próprios bens, fora guindado à posição de presidente da Junta de Comércio.
O ministro reputado encarnar o espírito de renovação, d. Rodrigo de Souza Coutinho, cuja honestidade pessoal Hipólito reconhecia, era criticado pela sua incapacidade de traduzir o programa imperial em políticas públicas. D. Rodrigo, é certo, matriculara-se no curso de leis em Coimbra, mas, sendo reprovado logo no primeiro ano, abandonara os estudos superiores, o que não obstou a que fosse nomeado ministro plenipotenciário em Turim, donde regressara ao reino para ser secretário da Marinha, repartição que abrangia os assuntos ultramarinos. Da Sabóia, d. Rodrigo trouxera a idéia, que a essa altura carecia de novidade, segundo a qual Portugal deveria se tornar "a cabeça de um vasto império" que integraria economicamente a metrópole e as colônias mediante uma poderosa marinha.

Leis, alvarás, decretos Em quatro anos de ministrança, o ambicioso plano não fora além da criação de um almirantado tão numeroso quanto o britânico. Não se construíra um único vaso de guerra nem se introduziram reformas: "De tudo quanto prometera não fez mais do que expedir uma infinidade de leis, alvarás, decretos e avisos, que sempre precisavam de outros para sua explicação, de maneira que houve tal cego em Lisboa (os cegos gozando do monopólio da venda de publicações oficiais) que se enriqueceu só a vender as leis que publicou d. Rodrigo". Não obstante o futuro conde de Linhares se vira guindado a ministro da Fazenda.
No Rio, como ministro da Guerra, d. Rodrigo estimulara ambições imperiais no Prata e na Guiana, quando "o Brasil o que menos necessita é de terreno" e quando o envolvimento num conflito internacional só poderia redundar na disseminação de idéias republicanas na colônia e no adiamento do essencial, isto é, das reformas políticas. Mesmo descontada a animada versão reinante em Londres entre o redator do "Correio Brasiliense" e um irmão de Linhares, embaixador junto à sua majestade britânica, o perfil do grande ministro do príncipe regente surge sob luz bem menos favorável do que a projetada por Oliveira Lima e, na sua esteira, a historiografia do período joanino. Aliás, segundo o grande historiador, d. Rodrigo teria sido um convertido tardio ao projeto de transferência da corte portuguesa para a América, devido a que fora ressuscitado no círculo de estrangeirados reunido em torno do duque de Lafões e do marquês de Alorna.


Ainda está por fazer o estudo da impressão causada pela China sobre os círculos dirigentes portugueses, que deriva do interesse atribuído ao tema pela filosofia política do século 18


Em 1813, já falecido o conde de Linhares, Hipólito constatava que, tendo-se a corte instalado havia mais de quatro anos no Rio, não se levantara uma palha com vista à liquidação do sistema colonial, com o que corria o risco de que outros a promovessem, alusão velada a uma história dos Açores, escrita em inglês e que acabava de ser publicada, na qual se propunha que a Grã-Bretanha transformasse o arquipélago num protetorado, argumentando inclusive com o arcaísmo do sistema político português.
Não se julgue, contudo, que a crítica de Hipólito se baseava em ressentimento antilusitano, tanto assim que era o primeiro a proclamar que a corte do Rio tratava tão mal o reino quanto o Brasil e que o papel da ex-metrópole no conjunto do novo império deveria ser revisto de maneira a preservar seus legítimos interesses, que o tratado de comércio com a Inglaterra comprometera gravemente. Sob o aspecto da reformulação do sistema de relações comerciais entre Portugal e o Brasil, a falta de imaginação imperial não era menos pronunciada, de vez que não se tiraram as implicações da abertura dos portos, imposta pelas circunstâncias, para o conjunto imperial.
O tratado com a Inglaterra desiludira Hipólito acerca das vantagens que o Brasil poderia obter do comércio internacional. Em tais circunstâncias, ele se voltava, como meio século antes o duque de Silva Tarouca, para o exemplo da China, a qual "não tem comércio externo e, contudo, é um próspero, rico e respeitável país". A comparação entre ambas as nações não se lhe afigurava desmedida, pois que tinham em comum a dimensão continental, a fertilidade do solo, a qualidade do clima e a facilidade de comunicações interiores. A diferença residia evidentemente na população, que no nosso caso o "Correio Brasiliense" se propunha a remediar pela imigração européia.

"Um milhão de chinas" Ainda está por fazer o estudo da impressão causada pela China sobre os círculos dirigentes portugueses, a qual deriva provavelmente do interesse atribuído ao tema pela filosofia política do século 18. O fato é que o império chinês também exerceu grande atração sobre Linhares, que, segundo o relato de um cortesão hostil, teria cogitado resolver o problema da nossa escassez de gente "mandando vir um milhão de chinas", o que resultaria em benefício mútuo à China, devido ao excesso populacional que lhe era nocivo, e ao Brasil, graças à introdução de duas manufaturas tão importantes quanto a da seda e a da porcelana. Nos anos 70 do século 19, o gabinete Sinimbu ainda pensava em resolver o problema da falta de braços da lavoura cafeeira mediante a importação de "coolies".
Antes que a historiografia do império pusesse nas nuvens o reinado joanino, sua reabilitação histórica começara em meados de Oitocentos pela pena dos publicistas do Rio comprometidos com a fórmula centralista adotada pela Independência. Via-se destarte nos 13 anos de d. João 6º na terra a fórmula salvadora que permitira a d. Pedro 1º fundar o império e a d. Pedro 2º governá-lo. Escusado assinalar que se tratava, em boa parte, de uma idealização. Como assinalou Sérgio Buarque de Holanda, "no Brasil, as duas aspirações -a da Independência e a da unidade- não nascem juntas e, por longo tempo ainda, não caminham de mãos dadas".
E ainda: "Essa unidade, que a vinda da Corte e a elevação do Brasil a Reino deixara de cimentar em bases mais sólidas, estará a ponto de se esfacelar nos dias que imediatamente antecedem e sucedem a proclamação da Independência. Daí por diante irá fazer-se a passo lento, de sorte que só em meados do século pode dizer-se consumada".
A tradição saquarema da historiografia da corte e dos seus epígonos da República, para quem a história da nossa emancipação política se reduz à da construção de um Estado centralista, tende, portanto, a ignorar que, se o reinado americano de d. João 6º pode ser considerado o marco inicial da construção do futuro edifício imperial, não é menos verdade que ele esteve a ponto de destruir-lhe as frágeis possibilidades, precisamente devido à sua incompetência para superar a retórica do vasto império, atualizando-o e realizando-o.
Quando o representante do governo republicano de 1817 procurou obter o apoio material e diplomático dos Estados Unidos, o argumento principal que usou foi exatamente esse: o de que a transmigração da coroa havia frustrado as expectativas dos seus vassalos americanos, particularmente dos menos informados, com referência à introdução das reformas políticas de que tanto necessitava a ex-colônia.
Que a idealização do reinado joanino nascesse e se desenvolvesse no Rio parece algo de perfeitamente natural quando se sabe que a sede da corte foi a grande beneficiária da imigração dos Braganças, enquanto as capitanias se viram adicionalmente taxadas de modo a financiar o embelezamento da capital para fazê-la aceitável aos cortesãos e funcionários públicos de extração reinol.

Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "Rubro Veio" e "O Negócio do Brasil -Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669" (ed. Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!.


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