São Paulo, domingo, 15 de abril de 2001

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Monólogo no exílio

Leopoldo Waizbort
especial para a Folha

Um romancista francês, certa feita, aplicou seus variados talentos narrando como as crianças brincavam, sob o olhar atento das governantas, nos parques parisienses. Isso se tornou, ousaria dizer, um "topos", e uma de suas variações encontramos agora na figura de Norbert Elias (1897-1990), que brincava não nos Campos Elíseos, mas nos jardins que deixaram construir sobre a antiga muralha de sua cidade natal, Breslau. A governanta, símbolo do bem-estar da burguesia, zelava pelo menino, quando não protegido pelo interior burguês e pela presença sempre cheia de amor de mamãe.
Isso, e muito mais, nos é narrado no livro que Elias deixou publicar pouco antes de sua morte e que reúne uma longa entrevista e alguns apontamentos autobiográficos; nos dois modos, temos um rico trabalho da memória de um octogenário bastante seguro de si e que se esforça para marcar indelevelmente o seu lugar. O livro responde à necessidade de explorar a vida do autor, de revelar à curiosidade pública quem é, afinal, esse sociólogo em exílio constante, cuja obra, descoberta tardiamente, impacta a sociologia e disciplinas afins.

A construção da obra Se por um lado o livro revela uma série de passagens da vida de Elias, há uma tensão que foi percebida pelo retratado e que ele tenta, recorrentemente, aplainar: para Elias, sua vida é seu trabalho e, portanto, só é legítimo o interesse pelo autor se esse interesse se desloca para sua obra; o autor, sempre muito determinado e autoconfiante, sempre seguro da importância de seu trabalho, dirige a construção da biografia para a construção da obra; uma vez que esta se revela em sua grandeza, então a figura do autor pode aparecer em sua exata dimensão.
O rol de temas e problemas abordados no livro é amplo e retoma, de modo sintético, muitas das preocupações de Elias; suas lembranças são variadas e atravessam o século passado: seus tempos de infância e de colégio e, a seguir, suas traumáticas recordações da Grande Guerra, quando se alistou voluntariamente no Exército do imperador. Do imediato pós-guerra, Elias nos oferece um retrato da vida intelectual em Heidelberg, esmiuçando algo da dinâmica institucional, das alianças e dos conflitos e oferecendo uma visada, é verdade que particular, da grande polêmica acerca da "sociologia do conhecimento", que balançou as ciências humanas na Alemanha na virada para os anos 30.
Seu percurso de Heidelberg a Frankfurt, seguindo Karl Mannheim e contrapondo-se, então, à turma do Instituto para a Pesquisa Social, capitaneado por Max Horkheimer, é prova das enormes disputas que cindiam o campo intelectual e que provocavam, muitas vezes, incompreensões tacanhas -como demonstra a correspondência entre Norbert Elias e Walter Benjamin, que publiquei na revista "Plural".
Elias narra também seus desencontros na busca da almejada posição como professor, na Alemanha, França e Inglaterra; sua aventura na África, como professor em Gana e, por fim, o tardio e crescente reconhecimento. No entremeio, ele desenvolve suas reflexões sobre a questão dos judeus alemães, no âmbito de sua teoria dos estabelecidos-outsiders; seus esforços para consolidar o lugar de uma teoria dos processos sociais e das figurações, com destaque para os processos de longa duração; seu diagnóstico da polarização União Soviética-EUA e, por fim, sua crítica do "homo clausus": tudo isso é tratado, embora rapidamente, no livro.
Mas, como disse, o fulcro é o entrelaçamento de vida e trabalho: "Minha memória ainda é bastante boa", disse ele, "embora eu viva já há muito. O desejo de me recordar talvez tenha se acentuado nos últimos anos (...). Mas uma grande parte de minha vida esteve, de fato, inteiramente relacionada a meu trabalho". Mais à frente, Elias insiste no fato de que suas emoções -justo ele, que escreveu uma sociologia das emoções e discutiu os problemas do engajamento e do distanciamento na ciência- eram "realisticamente" orientadas, de modo a não só não prejudicarem seu trabalho, mas sim o estimularem ("minhas emoções estavam direcionadas para o fato de que eu não queria cair nas ilusões correntes"). O sociólogo percebeu "rapidamente" que suas ambições profissionais eram incompatíveis com casamento e filhos, e tudo foi "sublimado" (em sentido eliasiano) na "obra". E para que filhos, se há alunos e discípulos?

Apenas dez palavras A contrapartida do sobre-humano do sociólogo há de aflorar em algum lugar. As descrições do pai e da mãe não poderiam ser mais pungentes, ainda mais devido ao destino bárbaro que os separou: o filho que se exila do terror nacional-socialista e os pais que se recusam a ver o perigo que os ronda e que acabará por vitimá-los. E os remorsos do filho? "O que permanece é o luto... Simplesmente não consigo me livrar da imagem, na qual vejo minha mãe em uma câmara de gás. Não consigo superar isso.
Ainda tenho as últimas cartas que minha mãe me escreveu, por intermédio da Cruz Vermelha, quando estava no primeiro campo de concentração. De lá ainda se podiam enviar cartas. Ela tinha permissão para escrever dez palavras, nem uma a mais. Meu sentimento é presente, é muito forte; mesmo após 40 anos não consigo superá-lo." Esse apego aos pais, sobretudo à mãe, por vezes tingido de culpa, está na relação a mais direta com a figura do filho único, doentio, solteiro, centro das atenções, concentrado no trabalho, intelectualizado e determinado, por toda a vida imerso na solidão e no isolamento.
Disso tudo brotam suas variadas fantasias, de que o livrinho, como nenhum outro, dá notícia: a conversa telefônica na qual sua voz não é ouvida e na qual ninguém tem nada a lhe dizer e que, de fato, é apenas um monólogo ("Permanece em mim uma fantasia, que me acompanha há muito: falo ao telefone e a voz do outro lado diz: "Por favor, fale mais alto, não consigo ouvi-lo"."); sua assombrosa identificação com Mozart -na figuração familiar, na rebeldia e independência diante do estabelecido, na disciplina de trabalho e, sobretudo, no "gênio"-, sobre quem escreveu um livro que possui, dentre outras coisas, a dimensão de uma autobiografia cifrada; a alternativa imposta a si mesmo, durante toda a vida, do triunfo final total (tornar-se um "clássico" da disciplina) ou do fracasso absoluto; e outras mais, que deixo para o leitor descobrir por entre as linhas e entrelinhas deste curioso livrinho, cujo segredo ainda está por ser revelado.



Norbert Elias por Ele Mesmo
168 págs., R$ 23,00
A.J. Heerma van Voss e A. van Stolk (orgs.). Trad. André Telles. Ed. Jorge Zahar (r. México, 31, sobreloja, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/ xx/ 21/240-0226).



Leopoldo Waizbort é professor do departamento de sociologia da USP e autor de "As Aventuras de Georg Simmel" (ed. 34).


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