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Monólogo no exílio
Leopoldo Waizbort
especial para a Folha
Um romancista francês, certa feita, aplicou seus
variados talentos narrando como as crianças
brincavam, sob o olhar atento das governantas, nos parques parisienses. Isso se tornou,
ousaria dizer, um "topos", e uma de suas variações encontramos agora na figura de Norbert Elias (1897-1990),
que brincava não nos Campos Elíseos, mas nos jardins
que deixaram construir sobre a antiga muralha de sua
cidade natal, Breslau. A governanta, símbolo do bem-estar da burguesia, zelava pelo menino, quando não
protegido pelo interior burguês e pela presença sempre
cheia de amor de mamãe.
Isso, e muito mais, nos é narrado no livro que Elias
deixou publicar pouco antes de sua morte e que reúne
uma longa entrevista e alguns apontamentos autobiográficos; nos dois modos, temos um rico trabalho da
memória de um octogenário bastante seguro de si e que
se esforça para marcar indelevelmente o seu lugar.
O livro responde à necessidade de explorar a vida do
autor, de revelar à curiosidade pública quem é, afinal,
esse sociólogo em exílio constante, cuja obra, descoberta tardiamente, impacta a sociologia e disciplinas afins.
A construção da obra Se por um lado o livro revela uma série de passagens da vida de Elias, há uma tensão que foi percebida pelo retratado e que ele tenta, recorrentemente, aplainar: para Elias, sua vida é seu trabalho e, portanto, só é legítimo o interesse pelo autor se
esse interesse se desloca para sua obra; o autor, sempre
muito determinado e autoconfiante, sempre seguro da
importância de seu trabalho, dirige a construção da biografia para a construção da obra; uma vez que esta se revela em sua grandeza, então a figura do autor pode aparecer em sua exata dimensão.
O rol de temas e problemas abordados no livro é amplo e retoma, de modo sintético, muitas das preocupações de Elias; suas lembranças são variadas e atravessam o século passado: seus tempos de infância e de colégio e, a seguir, suas traumáticas recordações da Grande
Guerra, quando se alistou voluntariamente no Exército
do imperador. Do imediato pós-guerra, Elias nos oferece um retrato da vida intelectual em Heidelberg, esmiuçando algo da dinâmica institucional, das alianças e dos
conflitos e oferecendo uma visada, é verdade que particular, da grande polêmica acerca da "sociologia do conhecimento", que balançou as ciências humanas na
Alemanha na virada para os anos 30.
Seu percurso de Heidelberg a Frankfurt, seguindo
Karl Mannheim e contrapondo-se, então, à turma do
Instituto para a Pesquisa Social, capitaneado por Max
Horkheimer, é prova das enormes disputas que cindiam o campo intelectual e
que provocavam, muitas vezes, incompreensões tacanhas -como demonstra
a correspondência entre Norbert Elias e
Walter Benjamin, que publiquei na revista "Plural".
Elias narra também seus desencontros
na busca da almejada posição como professor, na Alemanha, França e Inglaterra;
sua aventura na África, como professor em Gana e, por
fim, o tardio e crescente reconhecimento. No entremeio, ele desenvolve suas reflexões sobre a questão dos
judeus alemães, no âmbito de sua teoria dos estabelecidos-outsiders; seus esforços para consolidar o lugar de
uma teoria dos processos sociais e das figurações, com
destaque para os processos de longa duração; seu diagnóstico da polarização União Soviética-EUA e, por fim,
sua crítica do "homo clausus": tudo isso é tratado, embora rapidamente, no livro.
Mas, como disse, o fulcro é o entrelaçamento de vida e
trabalho: "Minha memória ainda é bastante boa", disse
ele, "embora eu viva já há muito. O desejo de me recordar talvez tenha se acentuado nos últimos anos (...). Mas
uma grande parte de minha vida esteve, de fato, inteiramente relacionada a meu trabalho". Mais à frente, Elias
insiste no fato de que suas emoções -justo ele, que escreveu uma sociologia das emoções e discutiu os problemas do engajamento e do distanciamento na ciência- eram "realisticamente" orientadas, de modo a
não só não prejudicarem seu trabalho,
mas sim o estimularem ("minhas emoções estavam direcionadas para o fato de
que eu não queria cair nas ilusões correntes"). O sociólogo percebeu "rapidamente" que suas ambições profissionais
eram incompatíveis com casamento e filhos, e tudo foi "sublimado" (em sentido
eliasiano) na "obra". E para que filhos, se
há alunos e discípulos?
Apenas dez palavras A contrapartida do sobre-humano do sociólogo há de aflorar em algum lugar. As
descrições do pai e da mãe não poderiam ser mais pungentes, ainda mais devido ao destino bárbaro que os separou: o filho que se exila do terror nacional-socialista e
os pais que se recusam a ver o perigo que os ronda e que
acabará por vitimá-los. E os remorsos do filho? "O que
permanece é o luto... Simplesmente não consigo me livrar da imagem, na qual vejo minha mãe em uma câmara de gás. Não consigo superar isso.
Ainda tenho as últimas cartas que minha mãe me escreveu, por intermédio da Cruz Vermelha, quando estava no primeiro campo de concentração. De lá ainda se
podiam enviar cartas. Ela tinha permissão para escrever
dez palavras, nem uma a mais. Meu sentimento é presente, é muito forte; mesmo após 40 anos não consigo
superá-lo." Esse apego aos pais, sobretudo à mãe, por
vezes tingido de culpa, está na relação a mais direta com
a figura do filho único, doentio, solteiro, centro das
atenções, concentrado no trabalho, intelectualizado e
determinado, por toda a vida imerso na solidão e no
isolamento.
Disso tudo brotam suas variadas fantasias, de que o livrinho, como nenhum outro, dá notícia: a conversa telefônica na qual sua voz não é ouvida e na qual ninguém
tem nada a lhe dizer e que, de fato, é apenas um monólogo ("Permanece em mim uma fantasia, que me acompanha há muito: falo ao telefone e a voz do outro lado
diz: "Por favor, fale mais alto, não consigo ouvi-lo".");
sua assombrosa identificação com Mozart -na figuração familiar, na rebeldia e independência diante do estabelecido, na disciplina de trabalho e, sobretudo, no
"gênio"-, sobre quem escreveu um livro que possui,
dentre outras coisas, a dimensão de uma autobiografia
cifrada; a alternativa imposta a si mesmo, durante toda
a vida, do triunfo final total (tornar-se um "clássico" da
disciplina) ou do fracasso absoluto; e outras mais, que
deixo para o leitor descobrir por entre as linhas e entrelinhas deste curioso livrinho, cujo segredo ainda está
por ser revelado.
Norbert Elias por Ele Mesmo
168 págs., R$ 23,00
A.J. Heerma van Voss e A. van
Stolk (orgs.). Trad. André Telles.
Ed. Jorge Zahar (r. México, 31,
sobreloja, CEP 20031-144, RJ,
tel. 0/ xx/ 21/240-0226).
Leopoldo Waizbort é professor do departamento de sociologia da
USP e autor de "As Aventuras de Georg Simmel" (ed. 34).
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