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"O Rio de Todos os Brasis", do economista Carlos Lessa, investiga o apogeu e o declínio da ex-capital do país
Uma cidade pós-maravilhosa
Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha
Nem parece que foi feito por um economista,
porque magnificamente bem escrito e profundo, o ensaio desbundado sem notas ao pé
de página do professor Carlos Lessa sobre o
Rio de Janeiro -de todas, a mais brasileira das cidades.
É para saborear o excelente achado do título, sugerindo
a existência de um Rio entranhado de múltiplos brasis.
Título que não deixa de soar nostálgico, pois atualmente os brasis se foram, vendidos e internacionalizados, de
modo que o Rio de Janeiro espelhará a tendência geral
do país, cujo mote suicida é o de que, fora do dólar, estamos ferrados.
A salvação é o caminho do aeroporto rumo a Miami.
Nenhuma outra cidade -nem Brasília nem São Paulo nem Porto Alegre- tem a sorte ou o infortúnio de
manter relação simbiótica com o Brasil. Em meio às
suas anotações líricas e às vezes elegíacas, o autor vai em
busca da totalidade nacional ao refletir sobre o Rio de
Janeiro (da praça 15 à Barra da Tijuca), cidade que durante a república foi o mais cobiçado desejo do homem
brasileiro enquanto no presente é danação em que medra a cataplexia generalizada. Câncer urbano. Escreve
Carlos Lessa: "No umbral da pós-modernidade o Brasil
desvaloriza o Rio. Não deve haver surpresa com essa
afirmativa, pois o Brasil mesmo se autodesvaloriza".
Sua abordagem é deliciosamente dialética em não
perder de vista o movimento que vai do presente para o
passado e vice-versa: do baile funk à capoeira, do surf
rodoviário ao entrudo com falta d'água. "A mutilação
do Estado brasileiro repercute sobre o Rio mais intensamente que em qualquer outra cidade."
As reflexões inteligentes de Carlos Lessa sobre a Barra
da Tijuca, o kitsch da pós-modernidade brasileira, lembram o olhar de um Walter Benjamin só que dos trópicos, abordando a flexibilidade antropofágica do cardápio, com o léxico ianquizado que designa a pelada na
areia por "beach soccer". Os ricos emergentes, blindados, protegidos por pistoleiros eletrônicos, confinados
com seus filhos dentro dos shoppings, temendo a presença desagradável dos maltrapilhos empilhados nos
morros. Isso tudo sob o signo da ambiguidade, pois os
morros favelados lhes fornecem serviços domésticos
baratos e paraísos artificiais narcotizantes.
Nesse contexto o samba "sifu". Tanto que garfaram o
cachê do Paulinho da Vila. O funk bléqui faz zoada com
os evangélicos da Igreja Universal do Reino de Deus.
Oscilamos entre o templum crente e o baile funk traficante, o neomalandro cantarolando o rap "Zulu Nation". O carioca da Barra da Tijuca é o típico brasileiro
pós-moderno "made in shopping", o qual não está nem
aí para o país nem para o espaço nacional. O shopping
dispensa-lhe o Estado pela empresa privada, que o protege da ex-alma encantadora das ruas, como poetou o
dândi João do Rio. O etos xopicenter dispensa o Estado
pelo esquema particular da segurança dada ao "cidadão
automotor". Grades. Blindex. Leões-de-chácara. Esse
aparato funciona como simulacro substitutivo do país ou do espaço nacional, isto é, longe do chão de estrelas e perto do bangalô californiano. A Barra da Tijuca maiamizada, "downtown", "ocean front resort", é o Brasil finalmente longe daqui; "Sorria, bróder, escapamos da
miséria tropical." Tudo no xópi, tal qual no frixópi, fica
concentrado na potência comercial da mercadoria, desde os ouvidos tampados pelo sonzinho muzak até a paisagem substituída pela vitrine. Come-se camarão importado da Holanda, mas não há mictório próximo.
A época da auto-estima cultural e arquitetônica do carioca está datada de 1920 a 1960, sendo a Revolução de
30 o arranque inicial. O declínio do Rio viria com a criação de Brasília e o golpe de 64, a que se seguiu a década neoliberal do desmonte do
Estado. Para Carlos Lessa, o Rio não é
uma dádiva do império, não obstante o
choque keynesiano com a vinda de d.
João 6º e sua comitiva de nobres e burocratas. D. Pedro 2º é bacanudo, não no
Rio, mas em Petrópolis, cidade por ele
fundada, Versailles fluminense, odiada pelo maximalista carioca Lima Barreto, embora nunca lá tivesse pisado
os pés. Lessa dá um banho de sociologia no capítulo sobre a estrutura social do Rio durante o século 19, dizendo que o esquema de Florestan Fernandes peca por ser
abstrato demais, em contraste com a abordagem de Gilberto Freyre, a qual contribui para compreender a especificidade carioca: urbanização sem indústria. Escravos
ou, então, pobres e livres sem salário.
A recuperação da auto-estima do Rio de Janeiro requer a recuperação da auto-estima nacional. Por qual
caminho não se sabe, ainda; porém uma coisa não se refuta: nenhum ungido alcaide, por mais
bem dotado que seja, dará jeito nessa cidade se não for alterado o modelo injusto de inserção do país no sistema capitalista mundial. Mas isso, como dizia Kipling, é outra história.
O Rio de Todos os Brasis
480 págs., R$ 28,00
de Carlos Lessa. Ed. Record (r.
Argentina, 171, CEP 20921-380,
RJ, tel. 0/xx/21/ 585-2000).
Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG)
e autor, entre outros, de "O Príncipe da Moeda".
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