São Paulo, domingo, 15 de abril de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+livros

"O Rio de Todos os Brasis", do economista Carlos Lessa, investiga o apogeu e o declínio da ex-capital do país

Uma cidade pós-maravilhosa

Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha

Nem parece que foi feito por um economista, porque magnificamente bem escrito e profundo, o ensaio desbundado sem notas ao pé de página do professor Carlos Lessa sobre o Rio de Janeiro -de todas, a mais brasileira das cidades. É para saborear o excelente achado do título, sugerindo a existência de um Rio entranhado de múltiplos brasis. Título que não deixa de soar nostálgico, pois atualmente os brasis se foram, vendidos e internacionalizados, de modo que o Rio de Janeiro espelhará a tendência geral do país, cujo mote suicida é o de que, fora do dólar, estamos ferrados.
A salvação é o caminho do aeroporto rumo a Miami.
Nenhuma outra cidade -nem Brasília nem São Paulo nem Porto Alegre- tem a sorte ou o infortúnio de manter relação simbiótica com o Brasil. Em meio às suas anotações líricas e às vezes elegíacas, o autor vai em busca da totalidade nacional ao refletir sobre o Rio de Janeiro (da praça 15 à Barra da Tijuca), cidade que durante a república foi o mais cobiçado desejo do homem brasileiro enquanto no presente é danação em que medra a cataplexia generalizada. Câncer urbano. Escreve Carlos Lessa: "No umbral da pós-modernidade o Brasil desvaloriza o Rio. Não deve haver surpresa com essa afirmativa, pois o Brasil mesmo se autodesvaloriza".
Sua abordagem é deliciosamente dialética em não perder de vista o movimento que vai do presente para o passado e vice-versa: do baile funk à capoeira, do surf rodoviário ao entrudo com falta d'água. "A mutilação do Estado brasileiro repercute sobre o Rio mais intensamente que em qualquer outra cidade."
As reflexões inteligentes de Carlos Lessa sobre a Barra da Tijuca, o kitsch da pós-modernidade brasileira, lembram o olhar de um Walter Benjamin só que dos trópicos, abordando a flexibilidade antropofágica do cardápio, com o léxico ianquizado que designa a pelada na areia por "beach soccer". Os ricos emergentes, blindados, protegidos por pistoleiros eletrônicos, confinados com seus filhos dentro dos shoppings, temendo a presença desagradável dos maltrapilhos empilhados nos morros. Isso tudo sob o signo da ambiguidade, pois os morros favelados lhes fornecem serviços domésticos baratos e paraísos artificiais narcotizantes.
Nesse contexto o samba "sifu". Tanto que garfaram o cachê do Paulinho da Vila. O funk bléqui faz zoada com os evangélicos da Igreja Universal do Reino de Deus.
Oscilamos entre o templum crente e o baile funk traficante, o neomalandro cantarolando o rap "Zulu Nation". O carioca da Barra da Tijuca é o típico brasileiro pós-moderno "made in shopping", o qual não está nem aí para o país nem para o espaço nacional. O shopping dispensa-lhe o Estado pela empresa privada, que o protege da ex-alma encantadora das ruas, como poetou o dândi João do Rio. O etos xopicenter dispensa o Estado pelo esquema particular da segurança dada ao "cidadão automotor". Grades. Blindex. Leões-de-chácara. Esse aparato funciona como simulacro substitutivo do país ou do espaço nacional, isto é, longe do chão de estrelas e perto do bangalô californiano. A Barra da Tijuca maiamizada, "downtown", "ocean front resort", é o Brasil finalmente longe daqui; "Sorria, bróder, escapamos da miséria tropical." Tudo no xópi, tal qual no frixópi, fica concentrado na potência comercial da mercadoria, desde os ouvidos tampados pelo sonzinho muzak até a paisagem substituída pela vitrine. Come-se camarão importado da Holanda, mas não há mictório próximo.
A época da auto-estima cultural e arquitetônica do carioca está datada de 1920 a 1960, sendo a Revolução de 30 o arranque inicial. O declínio do Rio viria com a criação de Brasília e o golpe de 64, a que se seguiu a década neoliberal do desmonte do Estado. Para Carlos Lessa, o Rio não é uma dádiva do império, não obstante o choque keynesiano com a vinda de d. João 6º e sua comitiva de nobres e burocratas. D. Pedro 2º é bacanudo, não no Rio, mas em Petrópolis, cidade por ele fundada, Versailles fluminense, odiada pelo maximalista carioca Lima Barreto, embora nunca lá tivesse pisado os pés. Lessa dá um banho de sociologia no capítulo sobre a estrutura social do Rio durante o século 19, dizendo que o esquema de Florestan Fernandes peca por ser abstrato demais, em contraste com a abordagem de Gilberto Freyre, a qual contribui para compreender a especificidade carioca: urbanização sem indústria. Escravos ou, então, pobres e livres sem salário.
A recuperação da auto-estima do Rio de Janeiro requer a recuperação da auto-estima nacional. Por qual caminho não se sabe, ainda; porém uma coisa não se refuta: nenhum ungido alcaide, por mais bem dotado que seja, dará jeito nessa cidade se não for alterado o modelo injusto de inserção do país no sistema capitalista mundial. Mas isso, como dizia Kipling, é outra história.



O Rio de Todos os Brasis
480 págs., R$ 28,00
de Carlos Lessa. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/21/ 585-2000).



Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor, entre outros, de "O Príncipe da Moeda".



Texto Anterior: Newton da Costa: O número da discórdia
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.