São Paulo, domingo, 15 de abril de 2001

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"O Nada Que Existe" refaz a história do zero desde os sumérios até hoje

O número da discórdia

Newton da Costa
especial para a Folha

O zero constitui uma das noções fundamentais da matemática, não apenas da matemática pura, mas também da aplicada. No entanto o zero originou (e ainda origina) numerosos embaraços conceituais, especialmente para aqueles que não são afeitos à matemática.
Aqui no Brasil, por exemplo, ocorreram situações, envolvendo o zero, dignas de nota, pelo menos como fatos curiosos.
Assim, Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891), general do Exército brasileiro, político de destaque, um dos fundadores de nossa república e considerado por alguns um bom matemático, escreveu um livro intitulado "Teoria das Quantidades Negativas"; a tese básica dessa obra era a de que, como zero significa nada, não podem existir números menores do que zero, como ocorre com os números negativos. Com efeito, como poderia existir algo menor do que nada?
Outro exemplo: há uns 25 anos alguém solicitou para seu carro, no departamento de trânsito do Estado de São Paulo, placa com o número zero. Isso provocou uma enorme discussão, pois não se sabia se zero era número natural (exigência para os números de placas) nem, até, se zero era, de fato, número. Foi necessário apelar para o Instituto de Matemática da Universidade de São Paulo a fim de resolver a questão...
Um filósofo da matemática, entre nós, raciocinava mais ou menos assim: existem vários zeros em matemática, tais como o zero dos números naturais, o zero dos polinômios, o zero dos números reais etc. Ora, como só pode haver um único nada, isso mostra quão falaciosa é a matemática.
Deixando de lado questões como as anteriores, frutos da ignorância em matemática, consideremos o conteúdo do livro de Robert Kaplan.
A obra tem cunhos expositivo e histórico muito interessantes. Vemos como o primeiro aparecimento, ainda obscuro, do zero se deu entre os sumérios, cerca de 700 a.C. Porém as civilizações grega e romana não o conheciam, ao que tudo indica. Sem tal algarismo, não pode haver numeração posicional, como em nosso sistema decimal de numeração (cada algarismo representa unidades de acordo com sua posição e unidades simples, dezenas, centenas etc.; o zero, que é essencial, em particular, indica ausência de unidades da ordem que sua posição evidencia).


Há uns 25 anos alguém solicitou para seu carro, no departamento de trânsito de São Paulo, placa com o número zero; isso provocou uma enorme discussão, pois não se sabia se zero era número natural (exigência para os números de placas) nem se era, de fato, número


Imagine-se, por exemplo, de que maneira procederia um antigo romano ao ir às compras. Não era possível efetuar as operações elementares com os algarismos romanos, isto é, com sequências de símbolos como V, X e L. Como então ele agiria? A resposta é simples: pelo uso sistemático de ábacos. Semelhantes ábacos somente foram abandonados, no Ocidente, quando, em profunda mudança de paradigma, se principiou a recorrer ao sistema decimal, ou seja, indiretamente, ao zero.
Hoje, com os computadores menores e cada vez mais potentes, inclusive portáteis, está-se deixando de lado o hábito da realização efetiva e direta das operações numéricas. Talvez, no futuro, nossos descendentes não saibam mais efetuar as quatro operações, a não ser por meio de computadores...
Kaplan discorre sobre o surgimento definitivo do zero e do sistema decimal na Índia, sua utilização pelos árabes e sua introdução no Ocidente por Leonardo de Pisa (c. 1175-1240). No capítulo 11 trata do quase-nada, isto é, dos infinitésimos e do cálculo infinitesimal.

Quase-nada Os infinitésimos causaram problemas significativos, de difícil solução. Assim, no primeiro tratado de cálculo diferencial da história, seu autor, o marquês de Primeiro Hospital (1661-1704), afirmava que duas quantidades distintas que diferirem por um infinitésimo são iguais. Essa afirmação encerra contradição patente e, para superar as dificuldades conceituais do quase-nada, levou muito tempo, o que só ocorreu com o matemático alemão K. Weierstrass (1815-1897).
Convém observar, todavia, que aqueles que pensam que zero, em matemática, significa sempre nada se enganam redondamente. Poincaré dizia que a matemática é a arte de dar o mesmo nome para coisas diferentes. E isso se passa com o zero, que assume as mais variadas significações nessa ciência: número cardinal do conjunto vazio, número ordinal do conjunto vazio, vetor nulo, polinômio identicamente nulo, elemento neutro de certas operações etc.
O livro de Kaplan, em síntese, constitui uma história do zero, envolvendo o que os maias, babilônicos, gregos, romanos, indianos e árabes realizaram, bem como a atividade de matemáticos do início da era moderna e de épocas mais recentes. Todos, de alguma forma, entraram para a história do zero. E tudo isso é relatado em estilo atraente e ao alcance de toda pessoa interessada.

Newton C.A. da Costa é professor no departamento de filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e professor de fundamentos da computação e lógica da Unip (Universidade Paulista), autor de, entre outros, "O Conhecimento Científico" (Discurso Editorial).


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