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O deputado federal Aldo Rebelo responde às críticas feitas a seu projeto de lei sobre o uso de estrangeirismos na língua portuguesa
A intriga das línguas
Aldo Rebelo
especial para a Folha
"Embebedaram-se ambos/ garrafas secaram três/ cachorro fez um discurso/ falando na língua inglês;/ gato embolava no chão/ também falando francês" (José Pacheco, "A Intriga do Cachorro com o Gato")
A língua, como o tacape, a espada, a pólvora e a
moderna tecnologia, tem sido uma ferramenta
de conquista. A cultura dominante impõe seu
vocabulário à cultura dominada. Quando as
tropas indonésias ocuparam o Timor Leste em 1974, a
primeira providência dos invasores foi proibir o ensino
e o uso do português. Banido das escolas, o português
passou a ser defendido pelas armas dos guerrilheiros da
Fretilin, que restabeleceram o uso do idioma tão logo alcançaram a autonomia da antiga colônia portuguesa. O
uso da palavra para a conquista de nações e territórios
tem um exemplo eloquente no Brasil. Quando Portugal
decidiu empreender a colonização, cuidou de providenciar um idioma para a comunicação com os nativos.
Ao contrário do que se pensa, os 2 milhões de índios
não falavam, como os 200 mil remanescentes não falam, apenas o tupi, e sim numerosas línguas e dialetos.
O português falado no Brasil, mais, muito mais que o
escrito, demonstrou plasticidade suficiente para atrair a
insubstituível contribuição das línguas indígenas e africanas e assim consolidar-se como elemento decisivo da
unidade nacional. Essa obra, respeitosamente, não a devemos aos escritores nem à academia. Edificou-a o povo que se foi formando no Brasil, não mais português,
mas uma mistura deste com o africano e o índio.
Batuque, cafuné, mocambo, samba, camundongo
enriqueceram o nosso falar pelo lado africano, da mesma forma que abacaxi, caipira, cambembe e maracanã
nos ampliaram a comunicação pela herança indígena.
As incorporações e empréstimos indígenas e africanos apenas prosseguiram a grande capacidade do português de absorver contribuições de outras línguas.
Açúcar, almirante, algarismo, azeite soam tão naturais
para ouvidos brasileiros que muitos estranhariam ou
mesmo contestariam a origem árabe destes vocábulos.
Mesmo futebol, que tomamos do inglês, tivemos a sabedoria de adaptá-lo na pronúncia e na escrita, mudando não apenas vogais, mas também a entonação da expressão inglesa. É o caso de toalete, restaurante e milhares de francesismos que acomodamos ao nosso falar e a
nossa escrita.
"Sale", "delivery" O projeto de lei 1.676/99, de
minha autoria, longe da xenofobia de que é acusado ou
de rejeitar contribuições de línguas estranhas (o autor
faz referência ao artigo "Guerras em Torno da Língua",
de Carlos Alberto Faraco, publicado no Mais! de 25/3),
tão-somente deseja a valorização da nossa. Por que
substituir liquidação ou "queima" das lojas populares
pelo pedante "sale", para não falarmos de "delivery",
"playoffs", "valet parking", "drive thru"? Outro dia um
empertigado apresentador de canal noticioso espatifou
contra a tela a descoberta de uma nova estrela na constelação de "Oráion", pronunciada assim mesmo, em inglês, uma palavra grega, há séculos latinizada e conhecida em português: Órion.
Penso que acusar o projeto de repetir a política linguística de Franco, Mussolini e outros parecidos não resiste a um sopro sobre a poeira de preconceito e ignorância que reveste o argumento. Franco e Mussolini, notadamente o primeiro, tentaram impor as línguas
dominantes, no caso a de Castela, a povos que tinham
línguas próprias, fossem bascos, catalães ou galegos.
Nós não queremos impor o português a ninguém,
mas apenas preservá-lo para aqueles que o têm como
língua materna e na condição de obrigação constitucional. Ou deveríamos aceitar que a moeda da globalização
(o dólar) imponha, além de seus esquemas monetários,
seus modelos culturais e também seus padrões linguísticos? Ou alguém acha que o camponês nordestino que
denomina um pequeno rio de riinho, riacho, riachinho,
corgo, corguinho esculpiu estes vocábulos pelo mesmo cinzel dos esnobes da Barra da Tijuca que entronizaram uma estátua da liberdade em pleno Rio de Janeiro e infestaram suas ruas de placas e anúncios em inglês,
no que foram ridicularizados pelo próprio "The New
York Times"? A liberdade de os matutos nordestinos
conservarem as reminiscências léxicas e sintáticas do
português arcaico combinadas com a influência do tupi
e da fonética indígena foi magistralmente defendida
nos anos 40 pelo mestre Mário Marroquim.
Aprofundar o fosso social Acolher sob os mesmos argumentos a substituição de palavras e expressões consagradas em língua portuguesa pelo dialeto de
Miami é contribuir para aprofundar o fosso social com
novas barreiras linguísticas, como se não bastassem as
já existentes em país tão socialmente desequilibrado como o Brasil.
Desconfio de que o meu pressentimento tenha base
científica, pelo menos em tese de doutorado em linguística que me foi enviada pelo professor Georg Otte, chefe
do departamento de letras anglo-germânicas da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. "A Língua Inglesa enquanto Signo na Cultura Brasileira", tese de autoria da professora Vera Lúcia Menezes, percorre 394 páginas descrevendo e documentando com esmero e talento a ação e a presença de signos
em língua inglesa na comunicação de massa do Brasil.
A linguista da UFMG viu antes deste modesto escriba
-seu doutoramento ocorreu em 1991- que "a língua
estrangeira se torna muito mais um instrumento de dominação do que de comunicação, uma vez que a maioria da população não tem acesso a essa língua nem como produtora nem como receptora".
As medidas que proponho reclamam a melhoria do
ensino e do aprendizado da língua portuguesa. Convocam o poder público, as universidades e os meios de comunicação a um esforço para promover e valorizar um
bem intangível da pátria e do povo: o idioma. As restrições que estabelecem não se aplicam às comunidades
indígenas, a situações que decorram da livre manifestação do pensamento e da livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação.
Preserva a informação destinada a estrangeiros, o ensino e o aprendizado das línguas estrangeiras e as palavras e expressões em língua estrangeira consagradas
pelo uso, registradas no vocabulário ortográfico da língua portuguesa. Coíbem apenas o abuso, o pedantismo
que humilha brasileiros desconhecedores de outra língua senão o português.
Aldo Rebelo é deputado federal pelo PC do B de São Paulo.
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