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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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+ literatura

Ken Monaghan fala da relação do autor de "Ulisses" com a família e conta a história do Bloomsday, que é celebrado amanhã em todo o mundo

O sobrinho de James Joyce


Ken Monaghan


Betty Milan
especial para a Folha

Ken Monaghan é sobrinho de James Joyce, filho de May Joyce Monaghan, uma das irmãs do escritor. Desde que se aposentou, em 1987, ele se dedica em tempo integral ao Centro James Joyce (Dublin). Embora conheça bem a obra de Joyce, Monaghan se interessa sobretudo pela família do mesmo e pelas circunstâncias que contribuíram para formar o escritor. Fez muitas conferências na Irlanda e no exterior e, além de ser diretor do centro, é membro honorário da Fundação Internacional James Joyce desde 1992.
Bloomsday é o dia de Leopold Bloom, ou melhor, da comemoração do dia em que o personagem de Joyce vive e revive no "Ulisses" a sua história: 16 de junho de 1904. Oficiosamente é o dia em que Joyce conheceu Nora, a comemoração do encontro do escritor e da sua musa, a mulher de Galway.
Tendo ido a Dublin para cobrir as comemorações, tive a ocasião de conhecer e entrevistar Ken Monaghan no pátio interno do Centro James Joyce.

O senhor é sobrinho de James Joyce. O que sua mãe dizia sobre ele?
Cresci numa época em que o nome de Joyce era uma palavra feia na Irlanda. Minha mãe nos dizia que não devíamos negar que éramos parentes dele, mas que também não precisávamos sair contando a verdade. Guardava todos os artigos publicados sobre Jim, porém raramente nos falava do irmão. As lembranças que ela tinha da família eram penosas. Por causa do pai -que se tornou um alcoólatra- a família foi obrigada a deixar o conforto e a segurança da zona sul de Dublin e ir para a zona pobre do norte. Num período de 11 anos -1893 a 1904- teve que se mudar 16 vezes. Porém alguma coisa sua mãe deve ter lhe contado... Contava o quão delicado Jim era com as meninas. Deu a entender que não aprovava o fato de ele ter ido para Paris com Nora Barnacle, com quem só se casaria muitos anos depois (em 1931, para legalizar a situação dos filhos). Mamãe era muito religiosa.

Joyce escrevia para sua mãe?
Jim deixou a Irlanda e não manteve contato com as irmãs. Mas há uma pessoa da família para quem ele frequentemente escrevia. Sim, uma tia, quando ele estava escrevendo "Ulisses". Correspondia-se com tia Josefina e fazia perguntas como, por exemplo, quantas árvores há na frente da igreja ou onde está o senhor O'Brien etc.

Qual a relação de Joyce com os pais?
Quando era pequeno, era muito ligado à mãe. Com o tempo, se afastou dela e passou a admirar o pai, que era o depravado mais bem dotado da Irlanda. Minha mãe se referia ao pânico que tomava conta dos filhos quando o pai introduzia a chave na porta. Chegava bêbado, já batendo em todo mundo. Isso obviamente também marcou Joyce. Foi na infância e na adolescência que ele acumulou os materiais para as histórias, para os personagens...

Quais por exemplo?
Quase todos. O pai aparece em toda a obra de Joyce. Inspirou a maioria das histórias de "Os Dublinenses". No "Retrato do Artista Quando Jovem", Stephen Dedalus descreve o pai como Joyce poderia descrever o seu: um tenor, um político, um ótimo companheiro, um contador de histórias. No "Ulisses", o pai aparece das mais diversas maneiras -o som da sua voz, a atitude física... Ora inspira Bloom ora Stephan Dedalus.

Que relação Joyce manteve com a mãe depois de se exilar?
Com 20 anos, ao terminar a universidade, foi para Paris com o propósito explícito de estudar medicina. Pretendia sobreviver escrevendo para jornais e dando lições de inglês. A mãe ficou em Dublin sem dinheiro, com nove crianças e um marido bêbado. Não obstante Jim escrevia pedindo ajuda. Dizia, por exemplo, que não tinha comido havia cinco dias e estava morrendo de frio por não ter como pagar o aquecimento. A mãe fazia o possível e o impossível e mandava um dinheirinho, que ele imediatamente gastava para ir ao teatro. Depois, escrevia para ela sobre a peça que havia assistido. Com o tempo, a relação dos dois foi se tornando muito insatisfatória. Numa das suas cartas, a mãe escreve que lamenta tê-lo decepcionado, não ter entendido o que ele queria dela. Desculpa-se no fim e acrescenta que é mesmo burra, como ele dizia. Joyce era tão sádico com a mãe quanto o seu pai. Sádico como Stephan Dedalus no "Ulisses"... Sim, tratava-a com desprezo, como aliás as outras mulheres depois, as que o sustentavam. Era sádico por se identificar com o pai... O pai era um grande contador de histórias e profundamente irreverente. Havia uma admiração recíproca, mas quando Jim foi embora com Nora, o pai ficou com raiva, e eles romperam. Depois, voltaram a se comunicar, mas, a partir de 1912, não se encontraram mais. O pai ficou na miséria, escrevia para o filho pedindo uma libra, e Jim às vezes mandava, às vezes, não. Ou seja, ele fazia com o filho exatamente o que este fazia com a mãe, era a mesma conduta. Sim, exatamente a mesma. Jim escrevia para o pai prometendo um bilhete para Paris, só que ele não cumpria a promessa. Quando o pai morreu, aos 82 anos, Jim ficou abaladíssimo.

O senhor é independente, não levou em conta a recomendação da sua mãe e se tornou mesmo diretor do Centro James Joyce. Como foi que isso aconteceu?
Sempre me interessei pelo escritor. Li "Dublinenses" quando tinha 18 anos, "Retrato do Artista Quando Jovem", aos 20. Não li "Ulisses" durante muitos anos porque não era possível conseguir um exemplar aqui em Dublin. Quando enfim adquiri um, fiz 12 tentativas de ler antes de conseguir. Hoje aconselho as pessoas a irem em frente, entendendo ou não. Li o "Ulisses" muitas vezes. Cada vez a gente encontra algo novo.

Como o senhor explica que Joyce tenha conseguido tantos mecenas?
Não sei. Várias mulheres o apoiaram e Silvia Beach enfrentou muitos problemas para publicar o "Ulisses". O mais impressionante é que Joyce nunca as tenha tratado bem.

Num certo sentido ele considerava que era a obrigação delas ajudar: ele tinha uma missão. Qual a relação do neto de Joyce com a obra?
Ele é o legatário dos direitos e é muito complicado. Prefiro não tocar nesse assunto.

Desde quando Bloomsday é celebrado aqui?
A primeira vez foi em 1954, quando cinco escritores, entre os quais O'Brien, resolveram fazer a celebração. Partiram à cavalo de Marcelo Tower -onde se passa o primeiro capítulo do "Ulisses"- com o propósito de ir longe, mas as tentações, os pubs eram tantos no caminho que a coisa desandou. Em 1982, no centenário, houve uma outra celebração. Só na última década Bloomsday foi festejado todo ano. Será que o dia é comemorado porque o dia de Bloom no "Ulisses" também é o dia em que Joyce e Nora se encontraram? O que eu quero dizer é que Bloomsday também é a celebração do amor. Trata-se de uma interpretação maravilhosa. Isso não tinha me ocorrido. O "Ulisses" foi um presente que Joyce deu a Nora. Não há muitas mulheres que tenha recebido um presente assim, não é?

Quantas pessoas participam da comemoração?
Cada vez mais gente. Temos notícia de 200 celebrações no mundo.


Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de " O Papagaio e o Doutor", entre outros.


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