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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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TEMAS DO TANGO

Silvio Cioffi - 31.out.2002/Folha Imagem
Apresentação de tango em Buenos Aires


EM PALESTRA INÉDITA DE 1969, O ESCRITOR ARGENTINO DISCUTE AS ORIGENS CONTROVERSAS DO ESTILO MUSICAL E EXPLICA POR QUE DISCORDA DE QUE ELE SEJA UM RITMO "TRISTE"

por Jorge Luis Borges

Apenas algumas palavras, umas poucas palavras liminares. Gostaria de chegar a este tema tomando uma certa distância, pois quero apontar um paradoxo. O paradoxo, como se sabe, como De Quincey [escritor inglês (1785-1859), autor de "Confissões de um Comedor de Ópio Inglês"] costumava lembrar, não é uma coisa extravagante; não, é uma verdade que pode parecer inacreditável. Mas vamos ao paradoxo que o tango encerra, e mais do que o tango, a fama do tango, o quase-mito do tango.
Vamos recordar algumas coisas sobre este país em geral. Pensemos no território que é hoje a nossa querida pátria; pensemos que foi talvez a mais pobre, a mais esquecida, a mais despovoada região do vasto império espanhol; pensemos que a conquista foi superficial: que havia poucos índios e menos espanhóis, pelo menos nesta porção do Sul. É possível que muitos índios nem soubessem da conquista. Quanto às cidades, essas que agora são grandes cidades, sabemos que falar de sua fundação é uma sorte de engano, pois elas foram fundadas um pouco ao sabor do cansaço das tropas. E assim temos Buenos Aires, por exemplo, praticamente ao nível do lento rio, "do rio imóvel", como diria Mallea; e temos a mesma coisa em Rosario; temos Córdoba encravada numa sorte de buraco.
E depois ocorre um fato, um fato que os historiadores já assinalaram: os conquistadores, além de estenderem o império e a religião, têm na religião um pretexto para buscar a prata e o ouro do encoberto tesouro, para repetir aqueles versos que Prescott usa como epígrafe em sua "História da Conquista do Peru".
Pois bem, temos um território de pobres planícies, de planícies cuja riqueza seria futura; temos umas poucas cidades, não cidades ilustres como Lima ou México, mas cidades pobres e um ambiente burguês, um ambiente no qual, segundo li, os próprios vice-reis não ostentavam seus títulos nobiliárquicos porque não havia ambiente para tanto. E assim temos a nossa época colonial, pobríssima, e depois, afortunadamente para nós, as invasões inglesas, que repelimos e que mostraram ao povo de Buenos Aires sua própria força, já que as autoridades pouco fizeram. Foi Buenos Aires que se defendeu, e em seguida viria a Revolução de Maio, e depois aquele Congresso de 1816, em que tomamos a decisão de ser argentinos, quer dizer, de ser algo que praticamente não tinha sentido ainda.
E depois vem a história argentina, tão conturbada. Temos o fato de a guerra da Independência desta parte da América (a do Norte é muito anterior) ser, em grande parte, obra argentina, colombiana, venezuelana. E tudo isso por conta de alguns senhores e, claro, dos soldados, dos soldados que não deviam ter maior consciência do que era a pátria nem da empresa que acometiam. Depois temos as guerras civis e temos a guerra com o Brasil, após a vitória na longa guerra contra os espanhóis; depois as guerras da primeira ditadura, seguida pela guerra do Paraguai e pelas guerras civis, quer dizer, pela guerra contra aqueles caudilhos que tomaram partido da barbárie, e pela guerra contra o índio.
E, mais ou menos por volta de 1910, fomos talvez a primeira república latino-americana, e isso é um fato que costumamos esquecer. Pensamos que composições como "Oda a la Argentina", de Rubén Darío, ou as "Odas Seculares", de Lugones, foram meros brindes, meras efusões de brindes. Mas, realmente, eu, que recordon aqueles anos (aqueles anos em que o cometa me parecia uma parte da iluminação do Centenário), sei que tudo isso correspondeu a um grande entusiasmo, como mais tarde, digamos, na revolução de 1955. E em todos aqueles anos fizemos muitas coisas: fizemos deste território perdido uma grande República, por obra também da imigração, certamente, que fez de nós um país que difere de outros do continente, pelo fato de ser um país de classe média e de população branca, sem muita população indígena e quase sem população africana, já que os escravos e os descendentes dos escravos desapareceram misteriosamente. Então, com a revolução, nasce um gênero literário peculiar: a poesia gauchesca, inaugurada pelo montevideano Bartolomé Hidalgo e que chega a nós e culmina na obra de Ascasubi, de Hernández, também em "Segundo Dom Sombra". Depois o "modernismo", que renova diversas literaturas, cujo instrumento é a língua espanhola e que surge do lado de cá do oceano, pois, contrariando a geografia, estávamos mais perto -e talvez ainda estejamos-, mais perto da França e de Edgar Allan Poe que da Espanha. E surge também essa grande cidade, Buenos Aires, e o fato de que todos nos sentimos argentinos. Aqui pouco importa nossa ascendência. Eu sei, por exemplo, que um de meus amigos mais íntimos é Carlos Mastronardi, o grande poeta entrerriano Carlos Mastronardi, cujos pais, se não me engano, são florentinos. Eu, que eu saiba (mas ninguém pode ter certeza disso), não tenho sangue italiano; tenho sangue português, espanhol, inglês. Sei que outro grande amigo meu, Bioy Casares, é parcialmente de origem francesa; assim como Manuel Peyrou, do sul da França. Tenho amigos judeus, tenho amigos de diversas raças, e isso não significou a menor distância entre nós: o importante é que todos nos sentimos argentinos.

Segredo para o mundo
Pois bem, o "modernismo", como lembra Max Henríquez Ureña em sua "Breve Historia del Modernismo", tem uma de suas capitais em Buenos Aires. A outra é o México. Só depois, como ouvi de Juan Ramón Jiménez e como pude comprovar historicamente, só depois ele chega à Espanha e inspira, por exemplo, dois grandes poetas: os irmãos Manuel e Antonio Machado. Tudo isso são feitos nossos. De certo modo, porém, tudo isso é segredo para o mundo, não tem maior interesse para as pessoas. Mas, ao mesmo tempo, acontece outra coisa, outra coisa quase ignorada. Eu conversei com Saborido, autor de "La Morocha", conversei com Ernesto Poncio, autor de "Don Juan" e acho que de "El Entrerriano"; conversei com gente da família de Greco; conversei com homens que viveram as origens do tango. Quero recordar aqui o meu amigo dom Nicolás Paredes, um caudilho de Palermo. Quero recordar um tio meu, marinheiro, Francisco Borges, que com alguns amigos resolveu dançar o tango com "cortes" e "quebradas" em um cortiço da rua Las Heras. Esse cortiço se chamava Los Cuatro Vientos, o que já sugere grandes pátios ventosos. E eles foram expulsos dali porque, como diz Carriego em um poema, "a casa pode ser tudo o que quiserem, mas é decente". Isso quer dizer que o povo da época não ignorava a origem do tango. Essa origem é uma origem híbrida. Depois se construiu uma lenda, uma espécie de "histoire d'un jeune homme pauvre" de uma dança suburbana que é rejeitada pela alta sociedade e que o povo por fim acaba impondo. Eu diria que aconteceu exatamente o contrário. Certa vez estudei a topografia do tango e notei, sem grande surpresa, que cada um o levava para seu próprio bairro, cada um achava que o tango tinha nascido em seu bairro, o que é uma prova do amor das pessoas, do amor que sentimos por ele. Há um livro de Vicente Rossi, "Cosas de Negros", que é citado no livro da senhora De Panti e de Tomás de Lara ["El Tema del Tango en la Literatura Argentina"] -do qual, se não me engano, é transcrito um trecho-, que nos leva até uma academia, até uma casa de bailes públicos na cidade velha de Montevidéu, ao sul, acho que perto da rua Yerbal, uma rua de má fama. Também falei com o doutor Bioy e com muitos outros. Naturalmente, se o interlocutor era rosarino, o tango era evidentemente de Rosario, do bairro próximo à estação Rosario Norte; se era montevideano, correspondia a Montevidéu; se era de Buenos Aires, correspondia não apenas a Buenos Aires, mas também a seu bairro de Buenos Aires. Mas que importância tudo isso pode ter, que importa essa topografia? O importante é este fato curioso: o fato de que, enquanto publicamente estamos fundando um grande país -contra a barbárie, às vezes contra o gaúcho, contra o índio-, também se vai criando, urdindo, engendrando nas sombras uma coisa que nos tornará famosos no mundo, e essa coisa é o tango. E o tango vem, não do povo, não da alta sociedade, mas, na minha opinião, do ambiente misto de certas casas "não santas", e acho que a prova disso está nos instrumentos. Se o tango tivesse nascido do povo, seu instrumento seria o violão. Eu, quando era menino, cansei de ouvir o violão nas vendas, um violão muito mal tocado, mas frequente. Contudo sabemos que os primeiros instrumentos do tango foram o piano, a flauta e o violino, aos quais mais tarde se somaria o bandônion. E nada disso tem a ver com o povo. Tudo isso já pressupõe esse ambiente em que se ombreavam o rufião e o boêmio bem-nascido. Eu me lembro daqueles primeiros tangos sem letra ou com letra obscena e me lembro também de ter visto -estou pensando agora na esquina das ruas Serrano e Guatemala-, de ter visto o tango ser dançado ao som de um realejo por pares de homens, de homens porque as mulheres não queriam participar de uma dança cuja origem conheciam muito bem. E me lembro daquela sentença criada por Lugones: "O tango, esse réptil de lupanar". Quero elogiar a precisão da palavra "réptil", que contém as figuras do tango, as "quebradas" e os "cortes", a sinuosidade da dança e, claro, o desprezo que Lugones, um cordovês, devia sentir por uma dança com origem -equívoca ou não, mas bastante inequívoca- em Buenos Aires. E depois o tango cresce, e agora, como acaba de apontar Gancedo, todos nós, para além da nossa procedência, sentimos que o tango nos exprime, nos confessa. Claro que há diferenças de épocas: eu sou um senhor já de certa idade, não em vão nasci em 1899, e o tango que eu sinto que me confessa -ou que eu gostaria que me confessasse, pois já há uma certa nostalgia em tudo isso-, é o tango-milonga, ou o chamado "tango da velha-guarda". E aqui voltarei a recordar o meu amigo Paredes, homem de violão e punhal. Estávamos em um café da rua Santa Fé e tocaram, acho que tocaram "Caminito". Ele ouviu a canção com perplexidade e disse: "Tudo isso pode estar muito bem, mas para mim é científico demais". Não sei o que ele teria dito de outras, digamos, elocuções do gênero, se já essa música simples e campestre excedia seus parcos conhecimentos de mau violonista e bom "payador". Quer dizer, para mim o tango ainda continua sendo, por exemplo, "El Pollito", "El Cuzquito", "Rodríguez Peña", "El Choclo" e outros. Também quero pensar em outro amigo. Quero pensar em Sergio Piñero. Sergio Piñero publicou um artigo em uma publicação de cuja redação não fiz parte, embora nela tenham publicado um ou outro poema meu. Estou falando da revista "Martín Fierro". Aí ele se queixou do arrefecimento do tango, da perda daquilo que o tango tinha de milonga, quer dizer, daquela sorte de coragem florida. Tudo isso foi arrefecendo com o tempo. Depois o tango foi levado a Paris -acho que, entre outras pessoas, por Ricardo Güiraldes-, e voltou com ares de decência: triste, e lento, e sentimental. E recentemente, alguém que parece não ter escutado "El Cuzquito" ou "Rodríguez Peña" ou "El Choclo", disse: "O tango é um pensamento triste que se dança". Ao que eu, timidamente, quero opor aqui, timidamente porque meus conhecimentos de música e de dança beiram o nada absoluto, quero opor algumas tímidas objeções.

Por que triste?
Em primeiro lugar, não acho que a música, sendo uma arte, possa provir de um "pensamento"; eu diria que de uma emoção. Depois, esse "triste". Por que triste? Alguns tangos podem ser tristes, mas o tango para mim ainda é uma expressão de valentia, de alegria, de coragem (é verdade que estou pensando no tango-milonga, e não no tango-canção). E por último, "que se dança". Parece um acréscimo, porque, se eu vou caminhando pela rua e vejo alguém assobiando, reconheço imediatamente o tango. Eu posso gostar ou não desse tango, mas existe algo em meu corpo, existe algo em meu corpo não apenas de portenho, mas também de argentino, que o reconhece imediatamente. O fato é que essa dança que de início foi rejeitada pelo povo mais tarde foi aceita por ele, quando foi aceita em Paris. Nós muitas vezes julgamos as coisas segundo o julgamento alheio, o que é sem dúvida uma forma de humildade e de modéstia, que não devemos censurar.
Pois bem, de certo modo, como acaba de dizer Gancedo, o tango continua misteriosamente a nos representar: podemos gostar de uns e não de outros. Podemos preferir o tango sentimental; eu prefiro o tango forte. Também podemos preferir esses jogos musicais que recebem o nome de tango e que eu não reconheço por completo (o fato é que já sou um senhor de idade, como disse há pouco), mas o tango continua a nos representar. Quer dizer, alguns boêmios, alguns canalhas -por que não dizê-lo?!- e decerto alguns bons músicos criaram, provavelmente lá pelos lados do chamado "bairro tenebroso", das ruas Junín e Lavalle, algo que agora não apenas deu fama ao nome "argentino" -mas que importa a fama?!, absolutamente nada-, mas algo que exprime a todos nós. E há tantos testemunhos sobre o tango! Acho que todos eles estão reunidos neste livro.

Transcrição da fala do escritor argentino Jorge Luis Borges pronunciada em 7 de outubro de 1969, dentro do evento "Temas do Tango nas Diferentes Épocas", em que foi apresentado o livro de Tomás de Lara e Inés Leonilda Roncetti de Panti "O Tema do Tango na Literatura Argentina". O texto está sendo agora publicado na Argentina no livro "El Círculo Secreto" (ed. Emecé).
Tradução de Sergio Molina.


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