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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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+ brasil 504 d.C.

FETICHE NA RAZÃO


As teses de Adorno e Horkheimer se enganam redondamente, caindo numa armadilha tão simples que pode ser desarmada num artigo de jornal


José Arthur Giannotti

Nas ciências cabe distinguir estruturas e o discurso que as apresenta. É o que se percebe claramente quando se compulsa um livro de matemática: as estruturas são anotadas simbolicamente e o resto do texto é escrito em linguagem natural. Numa tradução, apenas esta se altera. Não há dúvida de que os limites não são precisos, mas cada ciência possui sua prosa. Se a linguística, em particular, necessita examinar a linguagem na qual está falando, não é por isso que a distinção entre uma estrutura e seu discurso carece de sentido. Essa distinção, no entanto, vale para a razão? Não o creio. Uma vez descartada a idéia de uma faculdade racional, nela se verifica um processo, discursivo e prático, de explicação progressiva dos fatos que, além do mais, se volta sobre si mesmo para explicar tanto o funcionamento dessa explicação como os compromissos explícitos ou tácitos pressupostos por ela. Daí minha ojeriza a divisões como razão substantiva e subjetiva, comunicacional e técnica e assim por diante. Max Horkheimer, em seu livro "Eclipse da Razão" (ed. Labor do Brasil), trata de diferenciar a razão técnica de outra, substantiva, dando continuidade à parceria que sempre manteve com Theodor Adorno. Na "Dialética do Esclarecimento" (ed. Jorge Zahar), ambos tentaram mostrar que o racionalismo esclarecedor foi para o brejo porque cedeu aos encantos de um tipo de razão que, deixando de lado o conteúdo das ações racionais, se consagra à análise dos meios sem questionar o fim que as orienta. E a denominam subjetiva porque, segundo eles, o processo de formalizar requerido por esse procedimento termina subjetivando seus conteúdos, como se tudo se resumisse ao discurso da consciência.

Escolha estratégica
No fundo, eles defendem aí duas teses básicas: a primeira, a idéia de que exista uma argumentação científica que venha a se mover preservando um fim dado; a segunda, a idéia de que o não-questionamento do fim tornaria a razão incapaz de reconhecer a racionalidade de processos objetivos, limitando-se por isso a uma razão subjetiva. Ambas se enganam redondamente, caindo numa armadilha tão simples que pode ser desarmada num artigo de jornal. Vejamos a primeira. Para isso, tomemos o exemplo do conceito de número. Escolha estratégica, pois, para Adorno e Horkheimer, a lógica formal é a manifestação mais simples da razão subjetiva e, o número, o cânone do esclarecimento. Deixando de lado os penduricalhos, esses autores simplesmente reclamam que a prática de uma abstração em busca da forma identitária termina por criar uma forma apenas subjetiva, incapaz de visualizar o lado não-idêntico do conceito. No fundo, estão dizendo o seguinte: contamos com os dedos, com seixos etc. e, quando passamos a considerar os números positivos, isso se faz de tal modo que a identidade desse números perturba a visão da maneira de contar com os dedos, seixos e assim por diante. Essa crítica considera, contudo, apenas metade do processo de formalização. Consideremos a sequência dos números positivos começando por 1, 2, 3... A esses números, como é sabido, se aplicam as quatro operações. Mas com limites. Para que 4 seja diminuído de 4 é necessário introduzir o zero, nesse plano subentendido como a negação do procedimento de contar que resultou em 4. A nova sequência 0,1,2,3... recebe o nome de sequência dos números naturais. Mas, nela, ainda não se pode subtrair 3 de 1, a não ser que se inventem os números negativos (o resultado será - 2), sendo que os dois conjuntos somados formam então o conjunto dos números relativos. No entanto essa sucessiva ampliação do espaço dos números positivos vai redeterminando cada um dos elementos da série. Na sequência dos números positivos, a subtração inverte a soma, mas na sequência dos naturais, aplicada a números iguais, tem a virtude de abolir a adição, pois o zero é uma não-operação. Já na sequência dos números relativos todos os números passam a ter o seu respectivo inverso (1 tem 1 e assim por diante), menos o zero, que aparece então como elemento neutro ou, com outras palavras, zero vem a ser o simétrico de si mesmo. Ora, esse operação de possuir um inverso, um elemento neutro e, suponhamos, numa subtração em cadeia, poder associar os elementos dois a dois é o que os matemáticos vão chamar de grupo, conceito algébrico, e não mais aritmético. Desde logo é possível notar que essa extensão do universo dos números não se processa unicamente no plano dos conceitos, pois seria praticamente inviável enquanto não fosse abandonada a notação romana (I, II, III....) dos números positivos. Mesmo que a ela se acrescentasse o zero e os números negativos, as operações continuavam não levando em conta os blocos de 10. Note-se a dificuldade da operação "L - XXX = XX", comparada a "50 - 30 = 20", pois nessa última se levam em consideração apenas os dígitos representando as dezenas.

Fio do novelo
Em resumo, a inovação resulta, de um lado, da exploração das possibilidades formais de uma estrutura; de outro, do sucesso na busca de novos instrumentos capazes de tornar efetiva tal exploração. A simples manipulação dos algarismos arábicos cria novas possibilidades estruturais, podendo ou não ser exploradas, sendo que a invenção do zero, em particular, se desde logo evita erros de cálculo que eram o fantasma dos comerciantes, ainda coloca problemas específicos para o matemático. Que tipo de número aparece quando, por exemplo, zero vem a ser dividido por um número qualquer e vice-versa? Percebe-se, enfim, por que o matemático trabalha como se estivesse puxando o fio de um novelo cuja visão panorâmica lhe escapa. Por isso está sempre à beira do platonismo, de pensar que ilumina apenas uma estrutura já pronta num céu qualquer. Seja como for, o que não tem cabimento é ver nesse processo da razão apenas o lado subjetivo, e não refletir como ele também abre espaço para novas formas de objetividade. Examinemos agora a segunda tese. Dado um fim, há meios racionais que levam a sua obtenção. As ciências não discutiriam a escolha de tais fins, tarefa relegada à investigação filosófica. Tudo se passa como se o pensamento científico fosse uma espécie de compasso que, apoiando uma de suas pernas num ponto de uma folha de papel, definiria, com a outra, o campo dos traços possíveis. Mas a escolha da perna a permanecer imóvel ficaria fora da investigação científica. Por causa do predomínio avassalador da racionalidade orientada por fins dados, associado às formas da sociedade capitalista, que tende a mercantilizar todos os seus produtos, ocorreria o eclipse da razão filosófica, entendida diferentemente como razão objetiva ou comunicativa etc., conforme varia o dialeto dos filósofos da Escola de Frankfurt. Já no exemplo da expansão racional do conceito de número, percebe-se que aquela perna, apoiada numa intuição (os dedos, seixos etc.), também vem a ser erguida no processo de racionalizar. É como se o compasso perdesse seus apoios no papel para que um novo universo de possibilidades formais fosse divisado.

A rua e a estrela
Enfim, para que uma nova estrutura pudesse ser inventada. Ao contar com os dedos, depois com seixos e assim por diante, somos levados pelos objetivos mais diversos. Não é possível determinar o fim que levou à invenção dos números naturais (positivos e negativos). Por que haveria de se supor, então, que as ciências se armam a partir de um único fim? Além do mais, qualquer ação mais complexa é sempre motivada por fins variados, cabendo precisamente à razão selecionar um a um para descobrir quais os meios que lhes convêm.
Mais ainda, essa determinação recíproca entre fins e meios está inscrita na própria estrutura do julgar. Repiso um exemplo que me parece o mais simples possível. Se quisermos medir a distância que vai de uma rua a outra, podemos eleger como padrão o metro, a braça etc., todos eles servindo à medida que os resultados caibam num intervalo razoável, isto é, que não impeça seu uso para os fins propostos. Mas, se quisermos medir as distâncias das estrelas usando o metro, por exemplo, a escolha ficaria invalidada por causa dos erros cometidos durante o procedimento efetivo de mensuração. Ora, no plano da definição, um ano-luz não é redutível a metros? Percebe-se assim que a variação ocorre nos dois lados. No primeiro, escolhem-se padrões para medir uma distância, padrões que variam segundo o interesse posto. No segundo, conforme se medem as distâncias entre as ruas ou as estrelas, outros fins vão sendo descobertos à medida que se ampliam as estruturas "formais" que estamos utilizando. Por exemplo, escolho o metro para medir distâncias, mas, quando preciso projetar uma cadeira, a medida das distâncias é apenas um expediente para adequar essa cadeira ao tamanho de um corpo médio. Não é esse o padrão de medida que passa a orquestrar o processo?


É muito alto o custo do intelectualismo frankfurtiano, que deixa de considerar o lado ambíguo de todo produto capitalista


Ilusão
Em resumo, conforme os resultados vão sendo obtidos, vão sendo repostos os padrões de medida e modificada a intenção de medir. Uma vez, medimos para encontrar o caminho mais curto; outra, para estender um fio de telefone; e, quando medimos a distância entre estrelas, estamos interessados em confirmar ou negar esta ou aquela teoria, além de imaginar como vem a ser possível enviar uma nave que, aproximando-se delas, nos traga novos dados sobre o Universo. Desde que se perceba a progressiva determinação recíproca da teoria e da prática, trampolim para o capitalismo se renovar e encontrar novas formas de poder, essa idéia de uma racionalidade técnica não passa de uma ilusão. Convém então perguntar: onde está o eclipse ou a crise da razão? Primeiramente, na cabeça daqueles que, pensando essa razão como linha dedutiva ligando princípios a teoremas, lamentam sua queda no relativismo radical por ter perdido sua linearidade (1). Mas basta examinar o desenvolvimento de um conceito científico para ver que esse é engano de filósofo pouco familiarizado com as ciências formais. Em segundo lugar, ela se impõe para aqueles que ainda sustentam uma concepção fenomenológica do juízo, como se este se resolvesse na formulação de uma imagem mental, para em seguida sair à procura dos casos a ela adequados. Ao subjetivizar, por definição, o processo de abstrair, isso inventa, como consequência tautológica, uma razão subjetiva.

Dualidade fantasiosa
Não pretendo jogar fora a criança com a água do banho. O sentido da investigação teórica está em jogo com o encurtamento do tempo de reflexão e com o modo de produção das teorias científicas associado aos movimentos do capital. Aqui está o problema, e não numa dualidade da razão e no esquecimento da razão substantiva, como se fosse possível separar, num processo racional, suas estruturas da prosa que as apresenta. A meu ver, cabe reconhecer que há crise, cujas raízes não se encontram, porém, numa dualidade fantasiosa da razão, mas no modo de produção das ciências contemporâneas ligado às novas formas da sociabilidade capitalista. Ela se manifesta nas figuras que assume o trabalho do investigador e no mapa do progresso da ciência, em que as áreas de maior relevo são aquelas que recebem maiores investimentos. É muito alto o custo do intelectualismo frankfurtiano, que tudo explica por meio de diferenciações entre formas caricatas da racionalidade contemporânea, em vez de examinar como a produção científica se vincula à produção capitalista. Desde logo, deixa de considerar o lado ambíguo de todo produto capitalista, reflexo ao mesmo tempo do progresso tecnológico e da consequente diminuição progressiva de seu custo, que os torna acessíveis às massas, de outro, do entorpecimento que espreita o ato de produzir assim como o de consumir. Essa dualidade não tem como primeiro sintoma a cesura crescente entre a investigação das estruturas científicas e a prosa que fala dela? O trabalho do cientista e o trabalho do filósofo não se inserem diferentemente na produção contemporânea do pensamento? É ainda maior o custo de interpretar essa cesura como se brotasse da separação entre o lado objetivo e o lado subjetivo do processo de racionalizar. No plano da subjetividade não há pensamento que se sustente. Foi-se o tempo em que se pensava que um conceito, o de vaca, por exemplo, seria construído a partir do exame das várias vacas, a fim de ter em mente apenas aqueles traços comuns a todas elas. Para que se possa falar corretamente de vaca é preciso saber falar de bois, de bezerros e de outros seres participando do mesmo universo. Existem relações internas entre os diversos critérios que nos permitem mencionar cada um desses bovinos, aliás, socialmente determinados, pois entre os nueres, povo da África Oriental, não se pode falar de mulher sem se falar de vaca, o ser eleito por excelência. Em resumo, nunca se reporta ao real um único conceito, mas todos aqueles entrelaçados numa estrutura; nunca se diz "esta vaca é branca" sem ter em vista todo o espectro que separa o branco das outras cores. Mas os nueres não possuem o conceito genérico de cores, sendo que as nuanças coloridas da vaca se tornam o critério de suas diferenciações.

Fetiche hermafrodita
Esse total desprezo pelo lado estrutural da razão caracteriza o pensamento dos primeiros frankfurtianos. Operam como se um jogo de linguagem pudesse ter um único termo. É o que comprova o uso que fazem da palavra "esclarecimento". Configurado a partir de seu único fim, a saber, perseguir sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores, serve para constatar em seguida que a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal ("Dialética do Esclarecimento"). A identidade do conceito não explica seu lado negativo, o que levanta a necessidade de outro conceito positivo.
Posto nesses termos, o conceito de esclarecimento não é conceito, mas representação subjetiva que só pode representar do real aquilo os investigadores se representam, deixando de lado o travejamento estrutural e histórico na qual essa representação se tornaria conceito. Por isso emprestam à palavra "Aufklärung" uma ambiguidade que não possui quando se reporta a um movimento político e intelectual chamado Iluminismo. O Esclarecimento, traduz corretamente Guido de Almeida, nomearia o processo da razão de racionalizar, mas desde o início caracterizado como razão técnica, como os autores gostariam de demonstrar. Porque não encontram aquela unicidade que esperavam da razão, a transformam num fetiche hermafrodita, ao mesmo tempo macho e fêmea, cujo fantasma é preciso exorcizar.
Não é sintomático que os melhores resultados da investigação de Adorno ocorram, em primeiro lugar, no campo da música, uma arte que lida com configurações estruturais inegáveis mesmo quando passam desapercebidas? Não é por isso que despreza o jazz, no qual a estrutura formal se improvisa? Finalmente, em segundo lugar, convém lembrar que, se o conceito de indústria cultural ressalta corretamente a mercantilização da cultura e sua alienação, não sendo um conceito de fato, impede principalmente que Adorno veja o lado positivo desse processo, principalmente o cinema, a meu ver, a arte mais rica do século 20.

Nota
1. Para o tema da crise vale a penar ler, de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, "Crítica da Razão na Fenomenologia" (Edusp).

José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).


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