UOL


São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Dois estudos lançam novas luzes sobre a escravidão no Rio de Janeiro e a monocultura de fumo, açúcar e mandioca na Bahia durante o século 19

A plantation e o quilombo

O autor encaminha seu estudo contra a tradição da historiografia marxista

Gilberto Felisberto Vasconcellos
especial para a Folha

Brasilianistas existiram e existem por aí às pencas, muitos dos quais vão sendo atualmente olvidados, depois da voga em torno deles na década de 70, mas este, B.J. Barickman, destaca-se por abordar a agricultura brasileira nos finais do século 18 e no século 19 no Recôncavo Baiano, investigando a produção de fumo, açúcar e mandioca em suas relações com a escravidão [em "Um Contraponto Baiano"]. O brasilianista da agricultura parafraseou o título do famoso livro do cubano Fernando Ortiz, "Contrapunteo del Tabaco y el Azúcar", o cromático "black and white" da ilha de Fidel Castro, com objetivo de estudar entre nós "a diversidade possível numa sociedade e numa economia permeadas pelo escravismo e dominadas pela agricultura de exportação". Com profusão de documentos e análises minuciosas, o autor encaminha seu estudo contra a tradição da historiografia marxista, representada em São Paulo, depois da revolução de 30, sobretudo por Caio Prado Jr., que definiu o Brasil escravocrata por meio da mola mestra das plantations (a grande lavoura da monocultura), destinadas a abastecer, pela lógica colonialista, os mercados externos.

A rocinha
Eis o sistema de plantation: produção econômica alicerçada em dois grupos sociais -senhores de engenho e escravos- com o objetivo de estabelecer uma agricultura de exportação. Isso é o básico, o essencial, o fundamento da sociedade brasileira desde o século 16, segundo a "visão plantacionista"; o resto é secundário, todas as outras atividades econômicas são irrelevantes e periféricas. A plantation colonial acabou por obstaculizar a formação de um mercado interno, condenando a população à mera agricultura de subsistência sem o influxo da troca monetária. A tese do brasilianista procura pôr em relevo o contrário disso tudo, defendendo a idéia de que a "utilização do trabalho escravo na agricultura de exportação não constituía, em si, uma barreira intransponível para o desenvolvimento de um mercado interno". A subtese de Barickman é de que os senhores de engenho não monopolizavam o uso da terra no Nordeste. O que me deixa com a pulga atrás da orelha é a suspeita de que essa leitura do passado escravista venha engrossar o caldo neoliberal da atualidade, apresentando os problemas de casa como sendo de ordem exclusivamente doméstica, ou seja, a atitude ideológica de subestimar o estado de infelicidade social em decorrência da inserção subalterna do país no sistema mundial. É evidente que, ao lado da plantation, medrava o roçadinho, assim como alguns impulsos de economia interna, mas a verdade é o todo, e este é representado pelo destino colonial: a exportação de matéria-prima, de comida, de recursos naturais e estratégicos. Nascemos e trabalhamos para enricar as metrópoles. Essa tem sido nossa identidade histórica. O mais interessante no trabalho de Barickman é a informação sobre a dieta da população baiana e o papel preponderante que nela cabe a mandioca, a rainha do Brasil, ou a farinha de mandioca como o "pão da terra". A ciência da nutrição (como é o caso da medicina de Silva Mello) já mostrou que a mandioca é mais nutritiva do que o trigo. A mandioca reinou soberana na lavoura de subsistência do Recôncavo Baiano. Essa prodigiosa planta tropical continua sendo um desafio para a ciência: ela é, ao mesmo tempo, alimento e combustível. Daqui a pouco poderemos, cá na terra, olhar para os aviões movidos a mandioca rasgando nosso belo céu de anil.

Metonímia da liberdade
O trinômio monocultura, latifúndio e escravidão gerou revolta e rebelião em vários momentos da história do Brasil. É o caso dos quilombos, a fuga e a resistência dos escravos. O mais famoso foi o Zumbi dos Palmares, o general dos negros insubmissos. Agora o historiador Eduardo Silva, em seu livro "As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura", amplia a semântica do quilombo, fazendo a distinção entre o quilombo "de rompimento" e o quilombo "abolicionista", tendo como paradigma desse último o que apareceu no bairro do Rio de Janeiro durante a crise final da escravidão.
É o quilombo Leblond, o quilombo Le Blon, o quilombo do Leblon, cuja característica social e política é a negociação com a sociedade mais ampla. Trata-se de um quilombo midiático, em que o ícone era a flor "dama das camélias" ou, no dizer do autor, "um quilombo simbólico, feito para produzir objetos simbólicos. Era lá, exatamente, o símbolo por excelência do movimento abolicionista". As camélias brancas ou rosadas funcionavam como metonímia da liberdade.
Até a princesa Isabel enfeitava os seus vestidos com as flores da liberdade, as camélias do Leblon, além de proteger alguns escravos fugitivos. Isso me lembrou a correspondência do historiador Manoel de Oliveira Lima mantida com o sociólogo Gilberto Freyre sobre essa particularidade da história do Brasil: a progressão legal e sem sobressalto de uma ordem escravocrata para um regime de trabalho livre.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Biomassa" (ed. Senac).

Um Contraponto Baiano
450 págs., R$ 50,00
de B.J. Barickman. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/ xx/21/2585-2000).

As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura
144 págs., R$ 28,00 de Eduardo Silva. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/ xx/11/3707-3500).



Texto Anterior: + livros: A crise inquietante dos contrários
Próximo Texto: lançamentos
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.