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São Paulo, domingo, 15 de junho de 2003

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Ensaios reunidos em "Um Limite Tenso", como de Alain Badiou e Bento Prado Jr., abordam a relação entre filosofia e psicanálise na obra de Jacques Lacan

A crise inquietante dos contrários

Os textos combinam a energia da crítica independente com o virtuosismo na elegância literária

Oswaldo Giacoia Jr.
especial para a Folha

O leitor deve à inspiração de Vladimir Safatle a iniciativa de transformar o centenário de nascimento de Jacques Lacan, em 2001, numa ocasião para dedicar a sua obra uma atenção filosófica cuidadosa, que efetivamente se colocasse à altura da importância dessa obra e fizesse justiça à contribuição que o legado clínico e teórico de Lacan aporta às ciências humanas contemporâneas. Como facilmente se constata, ao percorrer as páginas dessa coletânea, aquele objetivo foi plenamente alcançado, pois os estudos ali reunidos combinam admiravelmente o rigor analítico com o engenho hermenêutico, a energia da crítica independente com o virtuosismo na elegância literária. O interesse principal do livro consiste no exame escrupuloso das multifacetadas relações entre filosofia e psicanálise em Lacan, partindo da mais viva consciência de que não se poderia tratar aqui de uma convivência harmoniosa, apesar de Lacan sempre ter flertado com os filósofos, de cujo pensamento se apropriou por deslocamento.

Reservada cautela
Essa percepção fica desde logo consignada na inquietação de Alain Badiou, que abre o primeiro ensaio da coletânea, marcando o tom de reservada cautela, própria do front filosófico: "Mas Lacan posicionou sua experiência sob a bandeira da antifilosofia. Vamos homologar sem exame prévio a reintegração, entre nós, de um antifilósofo declarado? Reunir-se sob o emblema sarcástico da antifilosofia não seria um julgamento a respeito de nossa própria falência filosófica?" (pág. 14). Safatle organiza seu livro com base em duas coordenadas de integração dos textos que reúne: num eixo denominado "conexões" e em outro chamado "interiores". Eles definem campos de inserção apropriados à natureza das contribuições que, no primeiro registro, exploram -num ângulo de exterioridade- as relações transversais e colaterais entre as teses psicanalíticas de Lacan e suas implicações e apoios filosóficos. No segundo caso, altera-se a perspectiva -que se institui como que num plano de verticalidade- explorando o surgimento, desde o interior do trabalho psicanalítico lacaniano, de problemáticas genuinamente filosóficas por ele concitadas. No eixo transversal das "conexões", as contribuições variam desde a estilização, por Badiou, das relações ambivalentes entre Lacan e Platão, como superfície de projeção das tensões entre "antifilosofia" e psicanálise, até a exploração, por Paulo Arantes e Ruy Fausto, dos vínculos entre psicanálise e dialética, especialmente as influências da lógica do reconhecimento na constituição social da estrutura da subjetividade.

Sujeito e verdade
Por sua vez, o ensaio de Peter Dews aproxima Lacan de Habermas relativamente aos problemas da linguagem, validade e transcendência, destacando a insistência singular de Lacan na íntima vinculação entre os conceitos de sujeito e de verdade. Para Monique David-Ménard, tão distintos quanto possam se apresentar os campos da teorização filosófica e psicanalítica, a apreensão conceitual (e, portanto, filosófica) dos modos de intervenção da psicanálise acarreta consequências para as pretensões da própria filosofia, tanto no plano ontológico quanto no lógico e no epistêmico. Slavoj Zizek, por sua vez, mostra admiravelmente como, em Lacan, o real tem que ser admitido como aparência e que consequências podem ser daí derivadas para a compreensão do imaginário religioso em Lacan. Encerrando as "conexões", Safatle pergunta pelo "locus" próprio da ruptura de Lacan com o paradigma da intersubjetividade, detectando aí uma viragem em direção a uma nova figura de apreensão conceitual da clínica, que orientará o trabalho ulterior de Lacan. Esta seria determinada pela crítica à filosofia prática de Kant, feita em articulação com o marquês de Sade. No registro dos "interiores", Bento Prado Jr. reconstitui as referências de Lacan à biologia do comportamento, como meio para compreender a estruturação da metapsicologia segundo a tripartição entre real, simbólico e imaginário; ao fazê-lo, demonstra que a imbricação entre psicanálise e filosofia constitui uma dimensão interna essencial à obra lacaniana. Nesse mesmo sentido, Antonia Soulez tematiza a ligação entre o estilo em Lacan e o estilo de Lacan, pondo em evidência que as peculiaridades do estilo respondem estritamente ao objeto de que esse trata. Richard Theisen Simanke considera que o uso e o sentido preciso da metáfora, em Lacan, constitui o elemento que justifica conceitualmente a aparente arbitrariedade que caracteriza a apropriação lacaniana dos conceitos fundamentais de Freud e outros pensadores, revelando-se tanto como estratégia de leitura quanto instrumento de produção teórica. O texto de Célio Garcia se propõe a percorrer uma parte significativa da trajetória de Lacan, para vislumbrar perspectivas que se insinuam no horizonte teórico formado pelas explorações lacanianas da linguagem, da lógica, da lei e da política, e que são para nós da mais extrema relevância e atualidade.

O sentido na enunciação
Concluindo a seção "interiores" -em que as demandas filosóficas irrompem do próprio âmago do trabalho desenvolvido na clínica analítica-, Jean-Pierre Marcos reconstitui a descrição fenomenológica da experiência psicanalítica, proposta por Lacan, discernindo nela uma importante inflexão, que atenua a importância da função apofântica da linguagem, à medida que o sentido já não residiria mais agora, prioritária ou exclusivamente, no que é dito, mas no ato mesmo de dizer, na enunciação. Ao concluirmos a leitura de "Um Limite Tenso", não podemos deixar de situar a psicanálise, sob o signo contemporâneo de uma crise profunda e duradoura, em seu campo teórico e doutrinário, não menos do que no âmbito clínico e político-institucional. Esse mesmo diagnóstico vale também para a filosofia e as assim chamadas ciências do espírito.

Limite fecundo
E, no entanto, no interior dessa crise, os temas maiores de Lacan -do sujeito e da verdade, do imaginário e do simbólico, da ética, responsabilidade, da lei e da liberdade, do ser e do real, do desejo e do ser-no-mundo- não cessam de reverberar, apresentando-se como injunções incontornáveis a mobilizar o empenho da reflexão filosófica e da escuta analítica. Razão pela qual essa nova contribuição de Safatle é muito mais que bem-vinda, pois, nessas circunstâncias, é oportuna e urgente uma retomada, "filosoficamente advertida", da obra seminal de Lacan.
É certo que nela o convívio entre a psicanálise e a filosofia é marcado por um limite tenso e conflituoso, não isento de problemas graves e de difícil solução. Mas nem por isso esse limite é menos fecundo, pois talvez o traço de união entre esses dois instáveis domínios da cultura seja constituído precisamente pela mesma obstinação em transformar impasses em estímulo, de transfigurar os próprios restos calcinados, descobrindo, nas palavras de Safatle, "a força de um pensamento que" sabe "crescer por meio da exploração sistemática de seus próprios impasses" (pág. 9).


Oswaldo Giacoia Jr. é professor livre-docente de filosofia na Universidade Estadual de Campinas. É autor de "Nietzsche" (Publifolha) e "Labirintos da Alma" (ed. da Unicamp), entre outros livros.

Um Limite Tenso
372 págs., R$ 30,00
Vladimir Safatle (org.). Ed. Unesp (praça da Sé, 108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/xx/11/ 3242-7171).



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