São Paulo, domingo, 15 de junho de 2008

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+ Sociedade

Memórias caninas

Percorrido por considerações filosóficas, livro narra a relação existencial de um poeta com seus cães

HARRY EYRES

Existem duas maneiras de ler "Dog Years" [Idade do Cachorro, ed. Jonathan Cape, 216 págs., 11,99, R$ 38], de Mark Doty.
A primeira: como um livro de memórias caninas, que trata do amor de um homem por seus amigos cães. A segunda: como reflexão poética sobre questões não caninas evocadas pela convivência com cães -especialmente, mas não exclusivamente, a dor e a perda.
Em qual das duas maneiras se lê "Idade do Cachorro" pode depender de até que ponto você é amante de cachorros ou, então, de como você reage a trechos como o seguinte: "Sua testa está um pouco enrugada, com um pouco de preocupação. Então ela se volta para mim, faz contato ocular e dá um sorriso repentino, cativante, do tipo que desarma e que pode tão bem significar "quem é você?" quanto "oi!"."
Passando dos limites Na condição de alguém que gosta moderadamente de cachorros, mas não é dono de nenhum, devo confessar que acho esse tipo de coisa ligeiramente sentimentalóide, até mesmo embaraçosa.
Sinto que uma linha foi infringida, inserindo os cães demasiadamente no reino humano. Embora sejam criaturas fantásticas, não são exatamente pessoas. Ou, como disse certa vez aquele sábio padre-detetive criado por G.K. Chesterton, o Padre Brown, não se deve escrever "cão" de trás para diante [o que, em inglês, resulta em "deus"].
Mas pode-se ter certeza de que Doty já refletiu sobre isso assim como sobre praticamente qualquer reserva possível que alguém possa ter em relação a um livro que exprime com candura corajosa seu amor orgulhosamente imoderado por dois cães -um cão de caça dourado e um negro.
Se você ler esse livro como outra coisa além de um volume de memórias caninas, encontrará um livro belamente escrito sobre a maneira como o tempo passa, carregando com ele tudo o que amamos e nos desafiando a encontrar alguma razão para querermos viver, a despeito dos ataques implacáveis das perdas.
Doty reconhece que, como poeta elegíaco e gay cercado pela epidemia de Aids, ele pode ter se apegado ao tema da perda. Lemos sobre o adoecimento e a morte do parceiro, descritos por meio do filtro delicado do amor comum dos dois pelos cães, da doença mortal do cão de caça dourado e, em seguida, do ataque às Torres Gêmeas.
Ponto zero Perto do final do livro, o próprio Doty se deixa abater por uma espécie de desespero existencial, seu próprio ponto zero.
Tendo perdido a vontade de viver, ele é salvo não por qualquer contato humano, mas pela confiança absoluta que seu cão moribundo manifesta nele.
Curtos e cronológicos, os parágrafos são pontuados por seções às quais o autor chama de entreatos, contendo reflexões filosóficas e poéticas, em muitos casos dotadas de densidade e beleza lírica consideráveis.
Os espíritos que as presidem são Heráclito, o filósofo que insistia que tudo flui e passa, e Emily Dickinson, a poeta que escreveu sobre o desespero inexprimível e a esperança inabalável. Os entreatos representam uma expressão da aceitação da perda e da tristeza.
Nas páginas finais, quando descreve a velhice e a morte pacífica do cão preto, Arden, Doty arrancou lágrimas deste leitor -que, por acaso, é amante de gatos.


Este texto foi publicado no "Financial Times". Tradução de Clara Allain.


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