São Paulo, domingo, 15 de julho de 2001

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O Brasil no limiar so século 21


Leia a seguir trecho da última conferência proferida pelo crítico na Sorbonne, em Paris, pouco antes de morrer e que fará parte de livro que sairá pela Topbooks reunindo seus inéditos e dispersos


por José Guilherme Merquior

É possível passar em revista os grandes projetos históricos do Brasil-nação. Eu distinguirei, aproximadamente, uma meia dúzia de projetos. É claro que eu não quero dizer que cada um desses projetos tenha alcançado êxito. Quero apenas discernir por toda a nossa história, de maneira um pouco mais consciente, em certos casos, e menos consciente, em outros, aquilo que ainda assim apresentou uma espécie de articulação de projeto nacional no Brasil. É aliás uma palavra, essa palavra de projeto, com ressonâncias talvez existencialistas, talvez hegelianas, que os pensadores nacionalistas brasileiros, aqui representados pela presença de Helio Jaguaribe, utilizavam muito desde a década de 50: a idéia de um projeto nacional. Citarei em primeiro lugar, já que agora me viro inteiramente para o Brasil independente, o que chamarei de bom grado "o projeto Andrada", por causa de José Bonifácio de Andrada e Silva, pai fundador do Estado brasileiro soberano. Por que será que eu acredito ter o direito de falar de um "projeto Andrada"? Pois bem, porque dispomos agora de um material historiográfico suficientemente abundante e convincente para nos persuadir de que Andrada, que aliás estava nisso em convergência quase perfeita com o príncipe real que se tornou imperador, Pedro 1º, tinha uma noção que se apoiava em três bases e que resumia sua concepção do futuro do Brasil, mas no imediato, quer dizer, do futuro como esforço nacional a ser imediatamente empreendido. Esse projeto supunha um executivo muito forte, o que explica a adaptação do tema francês, Benjamin Constant, do Poder Moderador e sua transformação muito sutil em Poder Executivo num nível mais eminente. Supunha a imigração, e eles se bateram, o imperador e seu ministro, várias vezes, contra interesses dos fazendeiros naquela época e, finalmente, esse projeto requeria crédito. O que é muito novo, o que é muito moderno, o que é schumpeteriano, se me é permitido dizê-lo. Daí partiu a defesa que eles fizeram do Banco do Brasil como a principal instituição, para não dizer a única, à qual caberia naturalmente a tarefa de fornecer recursos a essas novas camadas demográficas que viriam se acrescentar à velha sociedade patriarcal do Brasil antigo. Nós sabemos muito bem que tudo isso fracassou. Sabemos que os maiores homens políticos do Partido Conservador, na época, montaram contra esse todo uma resistência parlamentar que terminou por ganhar o jogo, porque isso forçou a abdicação de Pedro 1º e porque isso também apresentou a sua abdicação como reiteração da própria Independência. Escreveu-se toda uma historiografia oficial para provar que o 7 de abril de 1851, abdicação de dom Pedro, era uma repetição do 7 de setembro de 1822, quer dizer, a proclamação da Independência. Ora, nada é mais falso: havia um projeto social, econômico e político alternativo para o Brasil. Tendes todo o direito de considerar que esse projeto não será impecavelmente liberal, que era um projeto cujas raízes se aprofundavam mais para o lado do despotismo esclarecido do que para o lado do liberalismo. Isso é outra questão. Mas já não se tem o direito, do ponto de vista da consciência histórica, de negar que havia um projeto alternativo, no próprio início do império no Brasil, e que esse projeto foi inteiramente afastado por uma hegemonia das elites brasileiras na época, que não queriam esse gênero de desenvolvimento. Ora, qual é, portanto, o projeto vencedor? O projeto vencedor é um projeto liberal oligárquico. E como foi possível a esse projeto hegemônico triunfar? Creio que o principal motivo é muito simples e muito banal. Se examinarmos todo o curso do século passado [século 19", do ponto de vista da história dos preços, verificaremos que, enquanto os preços industriais, por causa da própria revolução industrial e desses progressos, tendiam à baixa, o preço de diversos produtos agrícolas se mantinha (...) para eliminarem em seu nascedouro o outro projeto e para manter durante várias décadas, que se estendem, aliás, do meio do Império até as primeiras décadas republicanas, um outro projeto nacional cujo aspecto oligárquico é evidente. Aí estão, digamos, as raízes da desigualdade. Foi esse triunfo do oligarquismo tornado possível pelas próprias condições de nossa inserção no comércio internacional naquela época. Disso provieram certos bloqueios e certos impasses, por um lado a coroa conserva muito poder. No fim das contas, quem governa o Brasil? É o imperador, e não o Parlamento, o que só interessa ao imperador. Há um jogo muito civilizado de partidos, sobretudo quando se o compara com as violências caudilhistas da maioria dos países da América hispânica naquela época, mas tudo não passa de um jogo: é o rei quem governa e controla, e ele chega mesmo a agir de maneira que a emancipação dos escravos depois da abolição pudesse se tornar uma realidade e, nesse ponto, é claro, ele entraria em choque com uma grande parte das elites agrárias, nem todas, é certo, porque o regime servil não era tão importante no Norte e no Sul, mas ainda era a base no centro, região da cultura do café. Por outro lado, o direito à propriedade agrária nunca foi submetido às idéias centrais da coroa e da corte, mas, ao contrário, sempre esteve sob a dominação direta, e às vezes violenta, dos senhores, quer dizer do outro elemento, do outro pólo dessa dialética, juntamente social, econômica e política.

O positivismo de Constant
Terceiro projeto. Já nos encontramos sob a República e surge nesse momento um jacobinismo positivista. Mas esse jacobinismo positivista funda-se na idéia do soldado-cidadão. (Atenção! Entre Maquiavel e a Revolução Francesa foi gasta e mesmo desperdiçada muita tinta para elogiar o cidadão-soldado! Quer dizer, a idéia de milícia, a idéia de Exército nacional etc. Digamos que entre o famoso elogio dos discursos sobre Tito Lívio em Maquiavel até Valmy e Jemappe, que mereceram a admiração de Goethe, era a idéia cívica do cidadão-soldado que tomava das suas armas para defender sua pátria.)
Bem, no Brasil ocorre o contrário, com os oficiais positivistas, sobretudo com a grande figura de Benjamin Constant, o que vinga é o soldado-cidadão. Mas o soldado-cidadão era o menos militarista dos soldados! Benjamin Constant, que é o pai fundador de nossa paleorepública, porque, em última instância, foi ele que impediu o marechal Deodoro de proclamar a República, não era em absoluto um profissional em matéria de Exército; quase que sentia vergonha de seu uniforme. A figura do soldado-cidadão naquele momento está muito mais próxima de Danton nos trópicos, dos chefes da Revolução Francesa numa certa fase, dos antimilitaristas. E, aliás, há toda uma tradição no Exército brasileiro de crítica feroz a Benjamin Constant, justamente por causa disso e sobretudo sob Getúlio Vargas, com o general Góes Monteiro, que representava no interior do Exército a vanguarda das idéias um pouco parafascistas naquela época.
Enfim, havia uma crítica declarada de Benjamin Constant, a tal ponto que a figura de Benjamin Constant foi minimizada em certos monumentos públicos, ou destes retirada, para dar lugar a uma espécie de "image-building" em torno de Caxias. O duque de Caxias, a espada conservadora do Império, tornava-se o ídolo do Exército para afastar esse não-militarismo de tipo jacobino que Benjamin Constant representava.
Os positivistas sofreram no Brasil dois ataques, de duas vagas sucessivas de crítica. A vaga católica integralista, por um lado, e, em seguida, a vaga marxista. Nem os cristãos da direita naquela época (porque em tal época ser cristão e ser de direita eram quase sinônimos) nem os marxistas deram seu justo valor às idéias sociais, ao projeto nacional que os positivistas encarnavam. Mas em todo caso poder-se-ia dizer que o projeto de "sociocracia" -porque era esse o termo de Auguste Comte- "se chocou" com o projeto de "democracia".


Temos, é verdade, um sistema judiciário tão desenvolvido quanto a maior parte dos outros países -mas o acesso real, prático e eficaz da população a esse sistema permanece uma mentira


Ainda uma vez oligárquico, muito elitista, projeto representado pelos grandes fazendeiros que se apropriaram da República desde seu quinto ano, quer dizer, por volta de 1894 (é por isso que se fala de República dos Conselheiros, porque eram pessoas que já ocupavam lugares de elite durante o Império e que, em seguida, se deram os meios do poder particularmente por meio de uma descentralização que deixava a São Paulo e, mais tarde, por causa da variação dos preços do café, a Minas Gerais, a alternância no poder das elites agrárias). É por isso que gosto sempre de citar uma frase de Sérgio Buarque de Holanda, que dizia que não era sob o Império, mas sob a República (o que nós chamamos de "a velha República", nossa primeira República, que morre em 1930), que houve no Brasil o império dos fazendeiros. A frase é perfeita porque foi então que o domínio senhorial mais direto fez sentir o seu peso. Não foi absolutamente durante a primeira fase autônoma. Finalmente chegamos à era Vargas, digamos, de 15 anos, 1930-1945. Como caracterizar do ponto de vista sociológico, de uma maneira esquemática, esse consulado getuliano? Nunca encontrei melhor explicação, para ficarmos nesse nível de esquematismo, do que aquela que um historiador francês, ainda muito jovem na época, encontrou quando foi, ele próprio, ao Brasil e foi testemunha da eleição de Vargas em 1950. Esse historiador, Charles Moraz, em seu livro sobre o Brasil estabelece uma analogia, que sempre me impressionou, com o Segundo Império francês. O que ocorreu, em última análise, sob o regime de Vargas? Expansão do Estado, sobretudo como organização burocrática: os poderes do Estado se tornaram, por fim, tentaculares do ponto de vista do controle burocrático. Há o início da industrialização, e esforços -na altura do fim de seu consulado- de industrialização, em que certas preocupações sociais existiam -é preciso admiti-lo, desde o início- e que eram mais ou menos um denominador comum entre os "tenentes" e os liberais mais à esquerda da Revolução de 30. Tendes aí três traços que muito relembram Napoleão 3º, que é, aliás, hoje em dia, uma figura política que se procura reavaliar... já não se vê de Napoleão 3º apenas a figura que dele fez Victor Hugo, vê-se-o como um bom saint-simoniano, é certo que autoritário, mas cujas preocupações sociais e modernizadoras eram, ainda assim, reais. Essa idéia é interessante porque ela mostra que a velha República foi uma espécie de época "weak" (emprego a palavra no sentido histórico-técnico, em inglês, naturalmente). A velha República, o império dos fazendeiros, para retomar a expressão de Sérgio Buarque de Holanda, foi a outra época "weak", no sentido de que uma elite agrária, que alcançou por fim muito êxito do ponto de vista da renda permitida pela renda agrária, foi, por fim, capaz seja de financiar os inícios da industrialização (porque é preciso afastar de forma absoluta as teses de um marxismo vulgar que consistem em apresentar sempre a industrialização como um fenômeno burguês, contra o patriciado agrário, quando a metade pelo menos, senão mais, do financiamento da industrialização inicial brasileira provinha precisamente da renda agrária), seja, por outro lado, de financiar também nossa renovação cultural, porque o modernismo e tudo isso no Brasil da década de 20 provêm das elites de São Paulo às quais ainda pertenciam à hegemonia social e política em meu país.

Texto fará parte de "O Outro Ocidente"

"O Brasil no Limiar do Século 21" é um dos ensaios de José Guilherme Merquior ainda inéditos no Brasil que serão publicados pela editora Topbooks no segundo semestre no volume "O Outro Ocidente". A obra trará também textos sobre Max Weber, Bobbio e Machado de Assis, entre outros. A Topbooks também deve relançar nos próximos meses obras de Merquior atualmente esgotadas, como o estudo sobre Carlos Drummond de Andrade, "Verso Universo em Drummond".

Bismarckismo mitigado
Por fim, atingimos a época central do período democrático depois da queda de Vargas, isto é, o pós-guerra: a redemocratização brasileira. E como definir esse centro claramente destacado pelo governo enérgico brilhante, criador, de Kubitschek? Pois bem, trata-se, em última instância, de uma espécie de bismarckismo mitigado. Na época, certos jovens intelectuais muito brilhantes empregavam a palavra. Quer dizer que precisávamos de um Estado, uma espécie de pacto de dominador modernizador, cujo modelo teria podido ser um Estado promotor de desenvolvimento com as características japonesas e alemãs, se pensarmos naturalmente no século passado, na revolução Meiji e na época bismarckiana. Mas infelizmente esse efeito de bismarckismo -é por isso que falo de bismarckismo muito mitigado- foi financiado pela inflação. Finalmente, ele armou esse elemento diabólico que, desde então, naturalmente, nos atormenta e nos esgota, a inflação. O nascimento da inflação crônica do Brasil data, apesar de tudo, desse período, porque cumpria fazer com que nenhuma das classes -principalmente as representadas no jogo político da época- pagasse a conta. A inflação era a fórmula mágica que permitia que nem os trabalhadores nem os empresários, nem mesmo naturalmente o Estado pagassem a conta. Isso representava, ainda assim, o sacrifício de outras camadas, de outras possibilidades de desenvolvimento, como, por exemplo, um desenvolvimento agrário muito mais adiantado. Mas foi uma fórmula irresistível e, infelizmente, ela se arraigou, nós sabemos até que ponto. Chegou por fim a modernização autoritária do período seguinte, a partir de 64. Uma questão historiográfica de primeira importância: nasceu tal modernização autoritária da luta de classes, como já se propôs em diversos trabalhos? Ou, pelo contrário, nasceu ela de um impasse político que tinha seus condicionamentos sociais, é certo, mas que se caracterizava sobretudo por um fracasso do modelo democrático? Por um fracasso, na falência total do populismo infelizmente epigônico de João Goulart, que experimentava fórmulas que Vargas tinha podido utilizar, seja porque ele possuía gênio político, seja porque o Brasil era tão totalmente diverso que não havia sentido repeti-las 30 anos mais tarde, em um Brasil já semi-industrializado e muito mais urbanizado da época "goulartiana"?

Esboços atuais
Hoje em dia, e essa é certamente a minha última pergunta, o que há como esboço de projetos nacionais? Ainda assim, falei de seis ou sete projetos nacionais: o projeto "Andrada", o primeiro projeto liberal oligárquico; o projeto do jacobinismo positivista a que se opôs a democracia -ela também oligárquica- dos fazendeiros; o consulado "getuliano" modernizador e autoritário; o semibismarckismo de Kubitschek; a modernização autoritária que terminou faz cinco anos.
Hoje em dia, temos instalado um projeto de República sindicalista que constitui a resposta de certos meios de homens políticos, de sindicalistas intelectuais muito notáveis, ao capitalismo de elites, ao capitalismo tal como ele se apresentou até nossos dias no contexto brasileiro. Por outro lado, nós temos como projeto rival um projeto que significa uma marcha "a toque de tambor" na direção de um neocapitalismo produtivo que é o exato oposto do capitalismo sobretudo especulativo que a cultura da inflação estava arraigando entre nós. Portanto, trata-se de buscar um neocapitalismo produtivo, e não mais sobretudo especulativo, que significa, aliás, o esgotamento de um Estado produtor, de um Estado cuja influência sobre a economia foi sempre muito forte em todas essas décadas de industrialização e que deve também significar, de modo necessário, o fim do "cartorialismo"; essa relação simbiótica entre o "senhorismo" capitalista e o Estado patrimonial que sempre deformou o florescimento de nosso capitalismo. Isso apresenta imediatamente duas tarefas principais. Isso coloca diante de nós, brasileiros de hoje em dia, dois desafios cujo detalhe nos será proporcionado pelo professor Jaguaribe. Mas, por meu lado, só quero terminar olhando um pouco na direção do futuro imediato. Em primeiro lugar, o futuro exige uma refuncionalização do Estado. Direi que de um Estado cujo papel, na prática, e não na retórica oficial, foi sobretudo até agora o papel de um Estado diretamente produtor em vários domínios, se deve passar a um outro modelo em que o Estado deve sobretudo ser não mais produtor, não mais produtor direto, mas justamente promotor e protetor. Promotor do quê? Protetor de quem? Promotor, é claro, de estratégias globais de desenvolvimento, porque há uma diferença muito grande entre os sonhos de certos neoliberais de quase eliminação do Estado e seus papéis, segundo me parece, ainda tão evidentes e tão necessários, e do mesmo Estado no que diz respeito a certas definições estratégicas quanto ao futuro de nossa economia e de nossa sociedade. Não se pode pura e simplesmente destruir o Estado e eu não falo apenas do Estado como ordem jurídica, como ordem legal. Falo também como Estado Dux. Nós não podemos renunciar ao Estado Dux, o que devemos afastar de nós é o estatismo, que é um outro fenômeno. Mas a abolição do estatismo (e eu o declaro com franqueza, sem ser partidário nem advogado dessa idéia) nada tem a ver com a simples e sumária eliminação -aliás, quimérica- do Estado Dux, isto é, do Estado estrategista. Portanto, Estado promotor, sim. Estado produtor? Não. Mas Estado protetor dessas imensas camadas da população brasileira que carecem de teto, que não comem apropriadamente, que não dispõem de escola e de acesso à Justiça. Temos, é verdade, um sistema judiciário tão desenvolvido quanto a maior parte dos outros -mas o acesso real, prático e eficaz da população a esse sistema permanece uma mentira. Portanto essas quatro dimensões devem ser imediatamente cuidadas nesses grandes desafios sociais brasileiros, e isso não pode ser feito sem o Estado. Ainda uma vez, recursos que foram não apenas empregados, mas desperdiçados pelo Estado produtor, produtor, aliás, numa parte muito grande, ineficaz, devem ser redistribuídos, reorientados no sentido do Estado protetor.

O problema agrário
Por fim, dir-vos-ei algumas palavras sobre a questão da terra. O professor Ignacy Sachs, num estudo recente, fazia com que observássemos que o "rumpsteak act", a que se deve o essencial da redistribuição agrária nos Estados Unidos há cerca de 120 anos, em 1862, soube, ainda assim, proporcionar 100 milhões de hectares a um milhão de famílias. O mesmo perito, cujos trabalhos são conhecidos por seu rigor e por sua objetividade, estima que o Brasil poderia resolver o seu problema agrário com a distribuição de um pouco mais de um terço dessa extensão. Portanto, vós vedes aí a profundidade ainda de um problema agrário no Brasil, ainda que seja por inteiro utópico e mesmo demagógico apresentar a questão da reforma agrária como se ela não andasse de mãos dadas com a questão "revolução agrícola", quer dizer, uma questão econômica e tecnológica tão importante quanto a questão propriamente jurídica e social.
Direi, para terminar, que saímos (se assim o entenderdes, é uma observação cultural para fechar tudo que acabo de dizer), ao fim desse primeiro século da República, de um grande tema cultural, entre nós como entre nossos vizinhos da América espanhola, da problemática da identidade nacional, que era inteiramente normal e legítima numa certa época e que era mesmo necessária para nos proporcionar a consciência de nossa realidade étnica, cultural, religiosa, filosófica... Em termos de psicologia coletiva, era absolutamente necessária, mas isso correspondia a um momento determinado de nossa formação como nação que se modernizava. E agora, digamos um meio século mais tarde, porque os principais esforços daquele época correspondem a obras como a de Gilberto Freyre, estamos em via de deixar essa problemática, de deslocá-la simplesmente para uma nova problemática que já não é mais a problemática da identidade, mas a da integração.
Vejo a coisa em termos diacrônicos, em termos, portanto, de mudança histórica entre esses dois pólos: havia uma problemática da identidade que se impunha ao espírito brasileiro, há 40 ou 50 anos. Há agora uma problemática inteiramente diversa, que é uma problemática não mais de identidade, mas da integração.
E integração a que e de quê? Pois bem, integração das massas a níveis de conforto e de prosperidade, tarefa que não se pode mais adiar; integração regional, latino-americana, que, felizmente, se encaminha, cada vez mais, para resultados finalmente concretos; e integração nas grandes correntes e aos dinamismos da economia-mundo, para recorrer a essa palavra braudeliana, isto é, à economia internacional. Eu vejo esses três níveis, que naturalmente não se deixam de articular, como os três grandes domínios em que o esforço de integração (e não mais a busca da identidade) vai determinar o que há de melhor nas preocupações e nas próprias angústias do espírito brasileiro neste momento.



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