São Paulo, domingo, 15 de julho de 2001

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Um roteiro intelectual


Ataques ao marxismo, à psicanálise e às vanguardas deixam entrever uma coerência crítica que rejeitava todos os tipos de dogmatismo


por Sergio Paulo Rouanet

No prefácio a "As Idéias e as Formas", José Guilherme Merquior se perguntou: "É possível atacar o marxismo, a psicanálise e a arte de vanguarda sem ser reacionário em política, ciências humanas e estética?". A resposta de Merquior foi evidentemente afirmativa. Tanto a pergunta quanto a resposta constituíam um verdadeiro roteiro intelectual. O que Merquior estava nos dizendo, em síntese, é que seu pensamento era vertebrado por três linhas de força, uma reflexão sobre a política, sobre o homem e sobre a arte; que, nessa reflexão, o autor tomava partido do progresso e da modernidade; e que, nessa tomada de partido, ele rejeitava o marxismo, o freudismo e o formalismo estético. Em política, Merquior aderiu sem reservas à democracia liberal. Num meio como o nosso, fortemente saturado pela tradição marxista, isso significou, em primeira instância, uma vigorosa rejeição do marxismo. Mas, por maiores que fossem as suas objeções a Marx, Merquior reconhecia a grandeza histórica do pensador alemão. Marx pelo menos tinha admitido a importância da ciência e do progresso econômico. O chamado "marxismo ocidental" não se beneficia dessas circunstâncias atenuantes e por isso não encontra a mínima indulgência aos olhos de Merquior.

Liberalismo com democracia
Depois de ter se encantado, na juventude, com autores como Adorno e Marcuse, Merquior passa a escrever coisas devastadoras contra todos eles. O Lukács de "História e Consciência de Classe" é demolido. Gramsci é tratado com alguma deferência, mas Merquior é implacável com a Escola de Frankfurt, desde seus fundadores até Habermas, e não poupa sarcasmos aos althusserianos. Para Merquior, os pecados de origem do marxismo ocidental são sua "Kulturkritik" pessimista, não baseada em nenhuma análise concreta, e sua rejeição sumária da modernidade e da ciência.
Merquior não perdoa os autores da "Dialética do Esclarecimento" por terem atacado o Iluminismo e considera frívola a crítica adorniana ao progresso científico. A "grande recusa" de Marcuse é um ataque irresponsável contra uma modernidade que, longe de ser unidimensional, assegura possibilidades de escolha até então insuspeitadas pela humanidade. "Tudo bem considerado", fulmina Merquior, "a época desse marxismo foi apenas um episódio na longa história de uma antiga patologia do pensamento ocidental: o irracionalismo".
A alternativa de Merquior, seja ao socialismo real, seja ao marxismo ocidental, é conhecida: o liberalismo. Mas, se ele sempre defendeu a economia de mercado como o regime que mais convinha ao liberalismo em seu sentido integral, estava longe de se filiar ao liberalismo conservador de Bagehot e Spencer, que radicalizaram o medo à democracia que já havia em embrião na primeira geração de liberais, como Constant e Tocqueville. Partilhava a preocupação com a igualdade, de liberais modernos como Norberto Bobbio e John Rawls. Enfim, para ele a democracia política era crucial. Na grande revolução européia de 1989, ele não viu essencialmente uma luta a favor do capitalismo, mas contra a tirania totalitária.
Merquior acreditava que a liberdade econômica garante a liberdade política, mas acreditava também em duas outras coisas, frequentemente esquecidas pelos pretensos liberais.
A primeira é que sacrificar a liberdade política para assegurar a economia de mercado, como aconteceu no Brasil durante a ditadura militar e no Chile de Pinochet, é a mais grosseira das falsificações do liberalismo. A segunda é que a liberdade política será sempre precária sem o aperfeiçoamento da igualdade. Como observou Celso Lafer, Merquior mostra que, "se hoje a linguagem do neoliberalismo é o liberalismo da economia de mercado..., o liberalismo a isso não se reduz".
Merquior sempre aderiu a uma concepção iluminista do homem, fundada no primado da inteligência sobre as paixões. A razão é o mais alto atributo do homem. Ela pode e deve ser usada para varrer a noite, como faz Sarastro em "A Flauta Mágica", e não é ela própria vulnerável às investidas da obscuridade. A idéia de uma razão "possessa", que, parecendo lúcida, está a serviço do delírio, era profundamente alheia a Merquior. Por isso ele evitava usar o conceito marxista de ideologia, falsa razão a serviço do poder, e rejeitava com todas as suas forças o conceito de racionalização, pela qual o sujeito mente sem saber que está mentindo. A grandeza e a dignidade do homem estão em sua consciência, e a hipótese de que grande parte da vida psíquica do indivíduo se desse numa esfera inconsciente era para Merquior um escândalo intolerável. Em grande parte era o que estava por trás do seu visceral antifreudismo. Que dizer dessa posição? Os que passaram pela experiência analítica sabem como é difícil discutir com os que não a viveram. O diálogo acaba sendo um diálogo de surdos, porque o crítico simplesmente está falando de coisas sobre as quais não tem um conhecimento direto. Além disso um "fair play" mínimo nos impede de usar intuições que devemos ao processo psicanalítico. A afirmação de que a veemência do nosso interlocutor se deve a uma atitude defensiva, a uma angústia diante da análise, seria provavelmente verdadeira, mas irrelevante, porque as regras do jogo da argumentação pública nos proíbem de invocar no debate um saber privilegiado e incomunicável.

Devastações saudáveis
Estaremos em terreno mais seguro se dissermos que, descartando Freud, Merquior abriu mão de um valiosíssimo aliado na cruzada iluminista. Freud é o último e mais radical dos iluministas. Os filósofos do século 18 se limitavam a dizer que o homem já era, de saída, racional, deixando-o com isso prisioneiro do irracional, cujos limites a Ilustração desconhecia. Freud descobriu esses limites e com isso armou o homem para a conquista da razão. Ela não é um ponto de partida, mas de chegada. Onde havia id, que passe a haver ego. Onde havia caos, que passe a haver sentido. Onde havia impostura, que passe a reinar a verdade. É a mais alta afirmação dos direitos da inteligência e ao mesmo tempo todo um programa de luta contra o obscurantismo: "Écrasez l'infâme". Por ignorar Freud, Merquior privou-se da ajuda desse Voltaire da alma e reduziu seu poder de fogo diante dos verdadeiros inimigos do espírito.
Mas Merquior era tão diabolicamente inteligente que tinha razão mesmo quando não a tinha. O freudismo não é irracionalista, e nisso sua crítica estava fora de foco, mas está cercado de irracionalismo por todos os lados -e por isso essa crítica provocou devastações saudáveis. Quando ouvimos em certos institutos de formação psicanalítica palavras como "satori", mais associadas ao zen-budismo que aos ensinamentos de Freud, ou somos informados de que a relação de transferência é uma corrente mística, uma "singularidade inefável", que circula de inconsciente a inconsciente, somos tentados a dar razão a José Guilherme Merquior e a consagrar-nos, como os behavioristas, a estudar os conflitos existenciais dos ratos.
Merquior dedicou a melhor parte de sua vida a questões estéticas. Foi de crítica literária seu livro de estréia, "Razão do Poema", e seu último livro publicado em vida, "Crítica", é uma coletânea de ensaios sobre arte e literatura. Em seus primeiros ensaios, Merquior cultiva com mestria a técnica do "close reading", que ele aprendera com a Nova Crítica americana. Ele parece ignorar, com isso, o que se situa fora e além do texto, todas as articulações da vida psíquica e social. São justamente essas as dimensões que mais interessam ao Merquior maduro, cada vez mais impaciente diante de qualquer manifestação de formalismo. Podemos falar numa ruptura entre duas fases?
Evolução, sem dúvida; ruptura nunca. A deslumbrante análise textual de "Canção do Exílio", depois de escandir os iambos e anapestos da métrica de Gonçalves Dias, desemboca em considerações nada formalistas sobre o amor à pátria. Por meio da análise meticulosa, verso por verso, da "Máquina do Mundo", Merquior desentranha em Drummond toda uma visão humanista. Não há dúvida: o menino prodígio de 1965 já era tão antiformalista quanto o quarentão que nos anos 80 declarava guerra às vanguardas estéticas. Na essência, a crítica de Merquior é que o euromodernismo tomou o partido do hermetismo, da forma pura, e com isso se desprendeu de qualquer compromisso com o homem.
A vanguarda é uma forma extrema de arte pela arte -e nisso é herdeira do romantismo. Mas ao passo que românticos como Shelley, Lamartine e Hugo acreditavam no progresso, os modernistas são socialmente reacionários. É o caso de Yeats, Eliot e Pound.
A crítica literária mais recente seguiu o mesmo caminho, sobretudo na França. Ela é tão formalista quanto as obras que estuda. O paradigma formalista na crítica é um fenômeno parisiense, mescla de um elemento autóctone, a poética antidenotativa de Mallarmé, e de um componente estrangeiro, a linguística estrutural saussuriana. Os papas da crítica formalista são Barthes e sobretudo Blanchot, para quem a expressão é inimiga da autenticidade e para quem a literatura fala tanto mais quanto menos diz sobre o homem e o mundo. É o que, com sua infatigável inventividade verbal, Merquior chama de galo-estruturalismo.
O modernismo artístico e crítico é hostil à modernidade. Ele rejeita o progresso, repudia as conquistas da ciência e da técnica e tenta ultrapassar a modernidade por um salto para a frente ou para trás, pela regressão ao arcaico ou pela fuga para o pós-moderno.
É dessa relação antinômica entre modernismo e modernidade que Merquior parte para montar seu libelo contra as vanguardas formalistas e, por extensão, contra os intelectuais, fabricantes de modismos estéticos. O que esses profetas do apocalipse desejam é exercer a ditadura das idéias, uma "grafocracia" antimoderna, da qual a seita vanguardista é a manifestação mais acabada. Sua crítica aos intelectuais está nos antípodas da feita pela direita nacionalista européia, dirigida contra os "clérigos" que solapam os fundamentos da sociedade.
Ele não está deplorando o "desenraizamento" dos intelectuais, como Maurras e Barrès, e sim dizendo que os intelectuais não são suficientemente viris para levarem o desenraizamento às últimas consequências. Enquanto a direita protofascista criticava os intelectuais por serem modernos demais, Merquior os critica por não serem suficientemente modernos.
É com Julien Benda que Merquior deve ser comparado, não com Maurras. Para Merquior, como para Benda, a "trahison des clercs" consiste num ato de demissão histórica, na incapacidade dos intelectuais de defenderem o legado democrático e laico da Ilustração e da Revolução Francesa.
A unidade da obra de Merquior aparece agora com muita clareza. Cada um dos três blocos temáticos é um grande "plaidoyer" a favor da razão e da modernidade. O marxismo é retrógrado porque tenta destruir o mundo moderno por uma utopia do século 19 e é anti-racional porque se ossificou num dogma. O freudismo é retrógrado porque deslegitima a sociedade moderna, dizendo que ela se funda na repressão, e é anti-racional porque sabota o primado da vida consciente. O vanguardismo estético, o crítico e o filosófico são retrógrados porque contestam a modernidade industrial e científica e anti-racionais porque colocam a sensibilidade, a paixão e a intuição num plano superior à inteligência -ou as vêem como agentes da dominação.
Passaram-se dez anos. O que aconteceu com os três alvos da crítica de Merquior? A resposta parece fácil: a história sepultou o marxismo, a ciência refutou a psicanálise e o pós-modernismo decretou o fim das vanguardas estéticas. A guerra terminou, e Merquior está no campo dos vencedores. Ele estaria feliz, se ressuscitasse. A menos que...
A menos que esse incorrigível polemista achasse que não foram suas causas que venceram, e sim sua contrafação. O que ele não aceitava no marxismo era o dogmatismo, mas não é o liberalismo, agora, que é dogmático, com sua afirmação arrogante de que não há mais alternativas ao capitalismo global? O que ele detestava na psicanálise era sua pretensão de ver em toda a parte conflitos infantis inconscientes, mas estaria ele disposto a aceitar o biologismo contemporâneo, que substitui o determinismo psíquico pelo determinismo do genoma e, em vez de atribuir a genialidade de Leonardo da Vinci a uma experiência de infância, prefere atribuí-la a uma proteína?
Ele se distanciava das vanguardas, mas não sentiria saudades delas se tivesse que se defrontar com a literatura pós-colonial, com a "écriture" feminina (não traduzo por escritura, porque Merquior se revoltava contra essa linguagem notarial que tinha transformado as faculdades de letras do Brasil em cartórios), com as intermináveis "desconstruções" empreendidas pelos departamentos de inglês das universidades americanas, com os "cultural studies" que destronam os cânones hegemônicos apenas para colocarem em seu lugar um enxame de mediocridades politicamente corretas?
Não, Merquior não defenderia hoje nem Marx nem Freud nem Joyce. Mas, graças à sua verve, à sua cultura e à sua combatividade, teria contribuído para que não sentíssemos tanta falta desses três grandes artífices daquela modernidade que ele tanto admirava.


Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de, entre outros, "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".



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