São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2004

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JACQUES SEM FATALISMOS

O PENSADOR, QUE PARTICIPA DE COLÓQUIO NO RIO NESTA SEMANA, ATACA O USO IDEOLÓGICO DO TERROR E DIZ QUE CABE À FILOSOFIA FUNDAR UM NOVO CONCEITO DE POLÍTICA PARA O SÉCULO 21

Evando Nascimento
especial para a Folha

Jacques Derrida vem sendo lido no Brasil, em momentos distintos e com estratégias diferenciadas, por intelectuais como Silviano Santiago, Haroldo de Campos e Leyla Perrone-Moisés, entre outros. Na França, ele publicou mais de 70 livros e, somente neste ano, três periódicos de prestígio fizeram dossiês em sua homenagem: "Magazine Littéraire", "Europe", "Cahiers de l'Herne". Em seu diálogo com a psicanalista Elizabeth Roudinesco (no livro "De Que Amanhã...", ed. Jorge Zahar), esta diz que o pensamento de Derrida triunfou e que o mundo cada vez mais se lhe assemelha. Porém ele discorda sobretudo do uso da palavra triunfo, pois não se pode dizer que a desconstrução é vitoriosa, levando-se em conta os enormes preconceitos e resistências que encontra em toda parte.
Todavia, com efeito, determinados fatores, tais como o advento das novas tecnologias, o questionamento do etnocentrismo e do valor filosófico de verdade, que haviam sido indiciados ainda em 1967 pela "Gramatologia" e por "A Escritura e a Diferença", só fizeram se ampliar posteriormente. A preocupação do filósofo em relação a questões contemporâneas, manifesta em livros como "Papel-Máquina", fez com que se falasse cada vez mais numa virada política ou ética de Derrida, a partir dos anos 1990. Isso é falso porque seus textos sempre envolveram uma problemática política, tal como o famoso ensaio "A Farmácia de Platão", no qual as formas de dominação e exclusão do outro se encontram amplamente discutidas, por meio de uma interlocução ferrenha com os diálogos platônicos.
Por esse motivo ele enfatiza cada vez mais a necessidade de uma "democracia por vir", que não seria a utopia de uma democracia futura. A democracia por vir é iminente e, de certo modo, virtual e real. Não sendo uma idéia reguladora, no sentido kantiano, ela tende ao aperfeiçoamento e à crítica de si própria, no limite do "auto-imunológico", que é o processo biológico em que o organismo tende a voltar o ataque de imunização contra si mesmo. Relacionado à "democracia por vir", o procedimento enfatiza a autocrítica sem condescendência do valor democrático.
Não por acaso o tema da palestra de Derrida no Rio de Janeiro se desenvolverá em torno do perdão. Para ele, a prova de fogo do perdão é perdoar o imperdoável. Mas perdoar não significa esquecer, ao contrário, perdoa-se para ter a viva memória do mal praticado, como sinal permanente de advertência.
O "perdão incondicional" é decerto o que há de mais difícil de aceitar na desconstrução dos dogmas ocidentais, mas é sem dúvida o legado mais profícuo de um pensamento que não teme chegar aos limites da aporia. Para Derrida, só há decisão ética (ou hiperética) onde parece não haver saída: se o caminho já foi previamente trilhado, não há responsabilidade, porém somente o cumprimento de um programa preestabelecido. O desafio do pensamento verdadeiramente ético é reinventar suas próprias normas diante do desconhecido.

"Pensar a desconstrução" é o título geral do colóquio que se realizará no Rio em torno de seus textos. Quais as relações entre pensamento e desconstrução ou, em outras palavras, o que é um "pensamento desconstrutor"?
Gostaria primeiramente de esclarecer que nem toda filosofia é um pensamento e que nem todo pensamento é de tipo filosófico. Sendo assim, pode-se pensar a filosofia sem pensá-la de maneira filosófica. A desconstrução é um modo de pensar a filosofia, ou seja, a história da filosofia no sentido ocidental estrito e, conseqüentemente, de analisar sua genealogia, seus conceitos, seus pressupostos, sua axiomática, além de naturalmente fazê-lo não apenas de maneira teórica, mas também levando em conta as instituições, as práticas sociais e políticas, a cultura política do Ocidente.
Não se trata de um gesto negativo, como a palavra desconstrução poderia dar a entender, mas de um gesto de dessedimentação de genealogias, de análise num certo sentido, embora a palavra análise tampouco seja adequada, pois sempre supõe um elemento simples como último recurso, enquanto a desconstrução parte sempre de um lugar de complexidade, e não de simplicidade.
Em todo caso, trata-se de um gesto afirmativo, mas que não é uma doutrina filosófica e que diz respeito à filosofia ocidental, porém sem ser um elemento desta, não sendo tampouco, por definição, "ocidentalista".
Daí seu vínculo atualmente cada vez mais preciso com o movimento "altermundialista", com os movimentos que tendem a transformar o direito internacional fundado em conceitos ocidentais ou na filosofia ocidental. Politicamente, é isso que está em jogo na desconstrução.

Em sua opinião, o que na verdade se encontra implicado no terrorismo e no medo que ele suscita, especialmente nos EUA e na Europa, mas também em outros países do mundo?
O cuidado prévio que se deve ter em relação a uma tal resposta é analisar o conceito de terrorismo. Acho que se faz um uso um tanto confuso e abusivo desse conceito. Como se sabe, muitas vezes chamou-se de terroristas movimentos que em seguida foram reconhecidos como libertadores, emancipacionistas, como movimentos de independência. Foram chamados de terroristas, por exemplo, os resistentes da França ou os resistentes durante a guerra de independência da Argélia. Há, portanto, um uso sempre orientado e ideologicamente instrumentalizado da palavra terrorismo.
E a palavra vem do terror da época revolucionária francesa, ou seja, desse movimento que fundou os direitos do homem.
Chamou-se também de terroristas os movimentos violentos, organizados, de grupos que visavam à instituição ou à restauração de um Estado-nação: os terroristas israelenses, por exemplo, visavam à instauração do Estado de Israel, os terroristas palestinos fazem o mesmo pelo Estado da Palestina, os terroristas argelinos, os terroristas irlandeses tinham sempre como finalidade, até aqui, a constituição ou a reconstituição ou ainda a liberação de um Estado-nação enquanto tal. Por conseguinte, eles tinham uma política.
Já atualmente o que se chama de terrorismo internacional, por exemplo, aquele que se designa de maneira metonímica como Al Qaeda, não tem nenhuma pretensão política desse tipo, pois não visa ao estabelecimento de nenhum Estado-nação. Não é, portanto, um terrorismo efetivo, não é o que se pode chamar estritamente de terrorismo. O que favorece esse tipo de ação violenta decorre do fato que, após a Guerra Fria -pois foi esta quem forneceu as premissas desse movimento-, não houve mais o equilíbrio do terror entre os EUA e a União Soviética, que de algum modo prevenia contra os movimentos de violência selvagem, de utilização de destruição em massa, incontrolável etc.

Como vê o papel da filosofia nos estabelecimentos de ensino e na sociedade do século 21? Existe um futuro para os filósofos?
Acredito que não somente há um futuro para os filósofos, mas também que apenas haverá futuro se a filosofia continuar a ser praticada, ensinada, desenvolvida. E isso não somente como história da filosofia, como memória de certo modo da filosofia grega, latina, alemã ou européia em geral, porém como análise nova, tentativa de criação de novos conceitos destinados a fundar um novo conceito do político e um novo direito internacional. Julgo que são os filósofos, profissionais ou não, aliás, que se encontram em boa posição para pensar o que acontece hoje com a crise da soberania, com a transformação do direito internacional (mais necessária do que nunca), com a transformação da ONU (esta deveria inclusive ser deslocada e não ter mais sua sede em Nova York), com a transformação de todos os órgãos mundiais que regulam a ordem do mundo, como a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, o G-8 etc.
Para tudo isso, serão necessários novos conceitos jurídicos, que também são conceitos filosóficos: por exemplo, a instauração de um tribunal penal internacional supõe um novo direito, implicando um questionamento da soberania dos Estados -chefes de Estado atualmente podem ser julgados, em princípio.
E tudo isso supõe, portanto, uma transformação do direito, ou seja, juntamente com o direito, a transformação de todos os conceitos que o constituem: o conceito de responsabilidade, de personalidade, de sujeito, de norma jurídica. É nesse sentido que se precisa mais do que nunca dos filósofos.
Acredito que um Estado que não forme filósofos livres -pois não há filosofia sem liberdade- será um Estado condenado à regressão e ao totalitarismo. Acredito mais do que nunca na necessidade de desenvolver a filosofia, mesmo que seja graças à desconstrução, quer dizer, graças ao questionamento de um certo dogmatismo filosófico. E penso que, por exemplo, o Brasil, que atualmente atravessa uma experiência a um só tempo apaixonante e arriscada, difícil e temerária, imprevisível, precisa de reflexão filosófica. Acredito que os filósofos e o discurso filosófico são mais do nunca necessários e que, se não se der a palavra aos filósofos dignos desse nome, muito se perderá com isso.


Evando Nascimento é professor-adjunto de teoria da literatura na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "Derrida e a Literatura" (editora da Universidade Federal Fluminense). É um dos organizadores do Colóquio Internacional Jacques Derrida 2004.


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