São Paulo, domingo, 15 de agosto de 2004

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Ponto de fuga

Síndrome de Stendhal

Patrick Hertzog - 15.set.2003 /Associated Press
A restauradora Cinzia Parnigoni faz limpeza no Davi, de Michelangelo, na Galeria de Arte em Florença, onde a escultura está desde 1873


Jorge Coli
especial para a Folha

Os americanos, quando são felizes, produzem dólares. Os italianos, quando ficam felizes, produzem obras-primas. A primeira dessas considerações, certamente injusta, não impede que a fórmula, de Stendhal, seja sugestiva. Felizes ou infelizes, os italianos, ao longo de sua história, produziram tanta arte que, lá, os sentidos se saturam.
Em 1817, visitando Florença, Stendhal descreveu também um mal-estar: "Absorvido na contemplação da beleza sublime, eu a via de perto, podia tocá-la, por assim dizer. Tinha chegado a esse ponto de emoção em que se encontram as sensações celestes oferecidas pelas Belas-Artes e os sentimentos apaixonados. Saindo de Santa Croce, o coração batia forte, a vida se esvaía em mim, eu andava com medo de cair". Vertigens, perda da identidade e do sentido da orientação, dores violentas no peito, taquicardia, depressão: esses sintomas, produzidos pelo contato com os poderes embriagadores da obra de arte, são hoje conhecidos com o nome de "síndrome de Stendhal". O hospital florentino de Santa Maria Nuova tem mesmo uma psiquiatra especialista na questão, seus serviços apresentam a média de dez a 12 casos tratados por ano.
A Toscana e Florença, em particular, reúnem obras em quantidade fabulosa, desproporcional ao tamanho da cidade, da região, ao número de habitantes, sem contar a boa parte dispersa desse patrimônio pelas coleções e museus do mundo. De fato, talvez seja o único lugar neste planeta onde se tenha a impressão de poder tocar a beleza com as mãos e de sentir no ar a presença da genialidade criadora.

Outros - Lucca encontra-se a 70 km, se tanto, de Florença. Mas é o bastante para que uma cultura visual, com uma fisionomia bem distinta, se delineie. Esse ambiente artístico foi marcado, na segunda metade do século 14, por Matteo Civitali, criador de primeira água, embora não dentre os de maior celebridade.
Era sobretudo escultor, mas praticou também pintura e arquitetura. Trabalhava no mármore de Carrara, na terracota, colorida e dourada, na madeira; neste último caso, a camada de pintura lisa e brilhante reveste as estátuas que, por vezes, alcançam tamanho natural. A imitação dos tons da pele, dos olhos, dos lábios, completam uma convicção mimética impregnada por meditação e serenidade.
Há pouco, encerrou-se, no Museu Nacional de Villa Guinigue, em Lucca, uma exposição consagrada a Civitali e à sua época, reunindo um formidável conjunto de artistas da cidade à volta desse nome maior. É o evidente resultado de uma pesquisa sólida, longa, aprofundada, é o exemplo de uma exposição que toma seu sentido no rigor, no conhecimento, que tem por resultado novas descobertas de beleza.

Paraísos - Em Florença e sua região, museus e monumentos célebres lotam durante o verão. A atração das obras míticas é compreensível e torna-se mesmo comovente o esforço que se faz para chegar mais perto do "Davi", de Michelangelo, ou da "Primavera", de Botticelli, rodeados por um grupo compacto. Mas, em Santa Apolônia, de frente à estupenda "Santa Ceia", de Andrea del Castagno, juntam-se dois ou três visitantes. Assim também no museu Horne ou na Galleria d'Arte Moderna, onde está a mais bela concentração de "Macchiaioli", que foram, antes dos franceses, os impressionistas da Toscana. Em Prato, cidadezinha ao lado de Florença, o museu do Duomo, numa apresentação renovada, leve e luminosa, permite que o visitante solitário passeie por entre Caravaggio, Uccello, Bellini, Donatello.

Mestre - Asia Argento vaga pelas salas da Galeria degli Uffizzi, em Florença. Diante de Botticelli, de Caravaggio, é tomada por uma vertigem, como um naufrágio em si mesma. Será perseguida por um terrível assassino cujos impulsos ela terminará incorporando. Obra-prima de solidão e esquizofrenia, o filme, italiano, de 1996, se intitula "Síndrome de Stendhal". Frases de Dario Argento, o diretor: "A arte é perigosa. Mais o artista é profundo, mais o artista é perigoso. Dá à sua alma algo de novo a perceber; se você é fraco, pode morrer".


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