São Paulo, Domingo, 15 de Agosto de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA
Jean-Claude Bernardet analisa "Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos", em cartaz em São Paulo
O espectador como montador

JEAN-CLAUDE BERNARDET
especial para a Folha

"Nós que Aqui Estamos por Vos Esperamos" é quase inteiramente composto de material de arquivo. O trabalho de montagem de um filme como este dá-se principalmente no nível do plano (ou parte dele): um plano é extraído de seu contexto -o filme original é desmontado- para ser inserido numa nova montagem.
Nessa transposição, ele perde sua significação original, ou parte dela, e adquire outra que lhe é atribuída pelo novo contexto imagético e sonoro. O que era patético na montagem original pode tornar-se cômico na nova. Se, da primeira montagem, se guardarem dois planos consecutivos respeitando o corte, em geral não será com a finalidade de preservar o original, mas porque a nova montagem terá como que contaminado a montagem anterior, o filme em elaboração contamina o filme já feito.
A esse tipo de trabalho, poderia se aplicar a qualificação de "releitura", termo em moda? Sim e não. Não, porque ele trata as imagens originais como matéria-prima para seus fins próprios. Sim, se considerarmos que a ressignificação explora o potencial significativo da imagem original, o que pode repercutir no filme original.
Podemos tomar como exemplo o plano do cavalo caído que Masagão extraiu do filme de Walther Ruttmann "Berlim, Sinfonia de Uma Grande Cidade". No filme de Ruttmann, o cavalo caído é em seguida erguido; e deve-se notar que, embora as ruas estejam dominadas por carros, a tração a cavalo continua presente em Berlim. A queda do cavalo tem em Ruttmann um pouco o caráter de uma anedota, do tipo "coisas que acontecem numa cidade". Masagão guarda apenas o cavalo caído e lhe acrescenta o letreiro "a cidade já não cheirava a cavalo". O sentido que se imprime assim ao plano (desaparecimento da tração a cavalo) reverbera um pouco no filme de Ruttmann, porque, apesar da presença da tração a cavalo, sugere-se que ela está em via de desaparecimento, inclusive em Berlim, ou seja, o plano anedótico de Ruttmann pode se carregar de uma significação mais genérica.
Esse tipo de montagem tem uma vertente destrutiva e outra construtiva. A destruição consiste em extirpar uma imagem da montagem original e despojá-la da significação que lhe atribuía o contexto imagético, sonoro e verbal em que estava inserida. É construtiva a sua colaboração à composição do novo filme. Em realidade a destruição nunca é total.
Tomemos como exemplo o plano de uma mulher passando aspirador numa casa classe média. Pertencente provavelmente a um filme de ficção dos primeiros anos do século, ela perdeu os nexos significativos que lhe dava a montagem original e adquire outra pela sua inserção numa sequência do filme de Masagão. Mas essa perda não é total, há um resíduo: preserva uma certa narratividade (mulher passando aspirador...) e a sua característica de imagem do início do século.
Como vai funcionar o resíduo e como vai se dar o trabalho de ressignificação? A sequência em que ela é inserida trata da situação pós-Segunda Guerra das mulheres que trabalharam na indústria durante a guerra. Há um tempo relativamente preciso em atuação neste momento do filme: segunda metade dos anos 40. Há uma nítida relação causal entre essa guerra e a situação das mulheres. Aí um dos elementos residuais entra em operação: a surpresa provocada pelo aparecimento de uma imagem dos primeiros anos do século numa sequência que aborda um tema da segunda metade dos anos 40.
O efeito de surpresa é atuante: abole o efeito narrativo e a preocupação cronológica, projetando a significação em outro nível: o conceitual. Não se trata de descrever a situação das mulheres após os anos passados nas fábricas, mas de impostar a questão num nível de tipo sociológico: a volta às fábricas dos homens desmobilizados devolve as mulheres às tarefas domésticas e, no filme de Masagão, provoca uma depressão consequente.
As diversas imagens que compõem a sequência, ao conectar entre si épocas diversas, mulheres diversas, atividades domésticas diversas, diluem a particularidade de cada uma delas para evoluir para o genérico. Este se constrói quando o espectador percebe o denominador ou os denominadores comuns das várias imagens, expulsando as diferenças. Não é a soma de uma mulher dos anos 10 e de outra mulher dos anos 30 e mais outra dos anos 50, mas: a mulher pós-guerra -significação conferida pela nova montagem.
As diferenças são expulsas, o que não implica que fiquem totalmente inoperantes: a sua expulsão reforça o denominador comum. Para o espectador, é um processo que se dá no tempo, ele não começa na primeira imagem, mas na segunda ou na terceira; tendo sido rompidas a linha narrativa e a cronológica, o espectador se reequilibra em outro nível, o do genérico, o do conceito.
De fato, esse procedimento permite à linguagem cinematográfica evoluir em direção ao conceito e à impostação ensaística, o que é um desafio para uma linguagem que foi sobretudo orientada neste século para contar histórias e que em geral só escapa a isso graças à locução sobreposta às imagens, enquanto o filme de Masagão opera mecanismos que permitem, pela seleção e ordenação das imagens, uma impostação ensaística.
O que não quer dizer que Masagão descarte totalmente a palavra, no caso escrita. É uma frase que fecha a sequência das mulheres: "e a depressão". Esse letreiro vem sobreposto a uma imagem que representa uma mulher sentada num sofá de frente para a câmera. Diríamos que ela está triste, ou desanimada, ou pensativa, ou cansada, ou deprimida, por que não? Talvez o mais lógico seja dizer "cansada", já que a mulher sentada foi precedida por vários planos de tarefas domésticas. Essa significação é aceitável no contexto do filme, tanto mais que a lanterninha do quadro "New York Movie", de Edward Hopper, visto em sequência anterior, já tinha sido qualificada de "hoje cansada". Mas não é a essa significação, ou apenas a ela, que dessa vez Masagão quer levar o espectador, quer ir mais longe. No entanto, a conceituação não consegue se estabelecer exclusivamente por meio da composição imagética e da montagem, recorrer ao verbal foi necessário.
Nesse momento, acredito que o filme se situe em cheio num dos principais problemas encontrados pelas imagens do nosso século -ou pelas imagens em geral? Vivemos, costuma-se dizer, numa civilização na qual as imagens proliferam como cogumelos; no entanto, nesta civilização, raramente as imagens vêm sozinhas. É como se tivéssemos medo do seu potencial significativo, de sua plurissemia que dispara em todas as direções, ou ao contrário medo de que não signifiquem suficientemente.
Esses dois motivos contraditórios, operando alternada ou simultaneamente (sic), nos levam a usar parapeitos protetores para limitar a plurissemia e orientar a leitura. E isso vale para os outdoors publicitários, as fotografias jornalísticas e suas legendas, como para o monólogo de Glauber Rocha em "A Idade da Terra". Aqui, "depressão" orienta a leitura num determinado sentido, bloqueando outras direções: não interpretar a mulher sentada como apenas "cansada", nem como uma mulher que não tem o que fazer na vida.
Esse me parece ser um dos principais mecanismos em atuação no filme de Masagão. O filme trata do século 20 (principalmente da primeira metade, com prolongamentos), mas o faz diferentemente de outro filme igualmente composto com material de arquivo, como "Ce Siècle A Cinquante Ans". Aí existe a preocupação de usar as imagens como documentos para constituir uma narrativa que relata cronologicamente os fatos sociopolíticos considerados mais relevantes da primeira metade do século.
O filme de Masagão não despreza os fatos, mas estes não constituem seu objetivo maior. Ele usa alguns fatos (guerras, Muro de Berlim) como referências, mas o objetivo é antes algo como o imaginário, a mentalidade ou as mentalidades do século. É para a realização dessa proposta que se torna particularmente eficiente a quebra da cronologia das imagens, bem como a perda ou a enorme diminuição de seu teor narrativo.
O mecanismo que opera na sequência das mulheres pós-guerra e em várias outras é um dos mais importantes do filme, ou aquele de que eu mais gosto, mas não é o único. Não penso que se possa falar em ressignificação a respeito do uso feito do material que apresenta cenas urbanas por meio de um prisma, em voga nos anos 20, que multiplica a imagem dentro do quadro, enfatizando com esse recurso a agitação urbana.
Aqui, o imaginário urbano mobilizado por Masagão é o mesmo proposto pelo material original. Portanto seria nesse caso mais adequado falar em citação, já que as imagens conservam a significação do contexto original. É interessante tentar estabelecer uma relação entre essas citações e a ressignificação da sequência comentada acima. Essas imagens prismáticas me parecem resistir a um processo de ressignificação por ter uma elaboração visual forte (no caso, a composição plástica possibilitada pelo prisma e a duração do plano). Essa elaboração não se deixa facilmente diluir. A operação praticada na sequência das mulheres é bem resolvida por trabalhar com imagens menos destacadas, facilitando a diluição e a ressignificação. É necessário que o material tenha, digamos, uma certa neutralidade para que a operação se realize plenamente. É só imaginar o que ocorreria com a sequência das mulheres se uma delas, espanando algum aparador, fosse Marilyn Monroe, ou compará-la a "Home Stories", de Matthias Muller, que contém apenas material de arquivo, em que a personagem feminina se constrói com planos de Kim Novak, Doris Day, Grace Kelly e outras vedetes.
Essa forma de montagem é usada em várias sequências do filme, por exemplo, a do Muro de Berlim: a construção do Muro inicia-se no campo, prossegue em ambiente urbano, e a fuga do soldado se dá por cima de uma grade que nada tem a ver com o que vimos sendo construído. Trata-se indiscutivelmente do Muro de Berlim, mas como que desrealizado, a montagem nos remete a um fato (muro) e ao mesmo tempo distancia-se dele para possibilitar que nos encaminhemos para uma reflexão mais ampla, de teor político. Os regimes comunistas, a opressão. Mas a nossa reflexão é dirigida: não caminharemos tanto na direção de uma reflexão política geral, pois o primeiro plano do soldado que se prepara para a fuga, bem como os antecedentes do filme dedicado às "pequenas biografias", nos encaminha para a presença do muro na vida cotidiana de pessoas "insignificantes", um dos eixos temáticos do filme.
O filme de Masagão opera com outras formas de montagem que merecem consideração. Uma delas consiste na inserção de uma segunda imagem dentro de uma imagem principal. Essas incrustações quebram a montagem visual consecutiva que foi até agora a forma da montagem cinematográfica. Mas deixo de lado esse assunto, de que não se pode falar sem se deter longamente em Peter Greenaway. É bom, no entanto, anotar que Masagão trabalha no mínimo duas possibilidades da incrustação.
Numa delas, a imagem incrustada passa a ter um papel mais importante do que aquela em que está incrustada, a qual se torna um fundo. Assim, na longa sequência das mulheres, aparece um plano amarelo apresentando uma mulher que brinca com outras, que se encontram dentro de copos cheios de água, estilo Bela Época. Nessa imagem, virão se instalar outras que ocuparão a quase totalidade da tela, deixando espaço apenas para as bordas do plano amarelo, as quais passam a funcionar como moldura. É o que ocorre com o trecho comentado acima, que acaba com a "depressão". Nesse caso, a imagem incrustada tem o papel predominante, enquanto a outra funciona como uma espécie de "Leitmotiv" que contribui para assegurar a unidade e o fluxo de uma sequência longa, que integra materiais díspares e aborda diversas vertentes do tema principal.
Encontramos um outro uso da incrustação no plano de Artur Bispo do Rosário, "que fez uma roupa especial para se encontrar com Deus", nos diz o letreiro. Incrustada na capa de Bispo, instala-se uma imagem mostrando um homem que tenta voar com asas artificiais. A idéia de vôo, pela elevação física no céu, nos remete ironicamente ao aproximar-se de Deus e a "perto de Deus", que é um dos temas da sequência das religiões, conforme indicação dos letreiros.
Tal incrustação, de curta duração, complementa a imagem-base sem lhe contestar a primazia. Além disso, ela tem outra função, pois expande, a distância, a significação da sequência, vista anteriormente, do alfaiate que se jogou da Torre Eiffel para voar. Na sequência do alfaiate já havia uma incrustação, a de um pássaro voando, o que apontava para o aspecto físico do vôo, sem introduzir uma transcendência, nem que seja irônica. Essa reverberação significativa a distância precisa da memória do espectador para funcionar. Se, na altura do bispo, tiver sido esquecido o alfaiate, é claro que o efeito de enriquecimento não se produzirá.
Em vários momentos, o filme de Masagão solicita a memória ativa do espectador. Gostaria de citar outro exemplo: já se estabeleceu uma relação entre a mulher deprimida e a lanterninha cansada do quadro de Hopper. Mais adiante, aparecerá outro quadro famoso do mesmo pintor, "Hotel Room", com uma mulher sentada numa cama. Os letreiros que acompanham essa imagem dizem todos respeito ao pintor, nenhum à personagem do quadro. Nesse vazio, a sedimentação do "cansaço" e da "depressão", se a memória do espectador funcionar bem, lhe permitirá trabalhar essa nova personagem feminina.
Nesse caso, assim como na passagem para o conceptual, o filme solicita um espectador ativo que, de alguma forma, prolonga a montagem nele próprio. Podemos ir mais longe e tornar o espectador um montador. Será uma montagem ativada pelo sistema do filme, suas associações de materiais díspares, sua circulação por imagens e significações, a grande liberdade que lhe permite essa montagem de tipo ensaística. Dou um exemplo do que seria uma montagem off (caso essa expressão faça algum sentido), isto é, uma montagem com material que não está no filme. A insistência do filme sobre a primeira metade do século nos permite mobilizar a nossa memória e trazer à tona o filme de Chaplin "Em Busca do Ouro", quando na sequência de Serra Pelada aparece o letreiro "atrás do ouro".
Tal operação, aparentemente delirante, parece sugerir que o espectador pode comportar-se de qualquer maneira diante do filme de Masagão, mas não é o caso. Trata-se apenas de explorar ativamente o sistema em operação no filme e de prolongar as pistas que ele nos abre. No caso de mobilizarmos o filme de Chaplin não faremos nada mais do que nos valer de uma deixa que o próprio filme nos oferece ao associar, ao plano de um homem que vende maçãs na rua, o letreiro "o engenheiro que virou maçã", que remete ao título de um filme de João Batista de Andrade, sem a presença de nenhuma imagem proveniente desse filme.
O teor deste artigo, que tenta analisar algumas linhas de trabalho de Masagão, permite uma reinterpretação do título. Nós (mortos, ossos) que aqui (cemitério) estamos por vós (vivos) esperamos -nós (imagens) que aqui (bancos de imagens) estamos por vós (novos cineastas, novos filmes) esperamos.


Jean-Claude Bernardet é crítico, roteirista e escritor, autor de "Cinema Brasileiro - Propostas para uma História", "Aquele Rapaz" (Brasiliense) e "A Doença" (Companhia das Letras).


Texto Anterior: Economistas falam da 'dependência'
Próximo Texto: Livros - Samuel Titan Jr.: Despertar de um candidato
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.