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CINEMA
Jean-Claude Bernardet analisa "Nós que Aqui Estamos por Vós Esperamos", em cartaz em São Paulo
O espectador como montador
JEAN-CLAUDE BERNARDET
especial para a Folha
"Nós que Aqui Estamos por
Vos Esperamos" é quase inteiramente composto de material de
arquivo. O trabalho de montagem
de um filme como este dá-se principalmente no nível do plano (ou
parte dele): um plano é extraído
de seu contexto -o filme original
é desmontado- para ser inserido
numa nova montagem.
Nessa transposição, ele perde
sua significação original, ou parte
dela, e adquire outra que lhe é
atribuída pelo novo contexto
imagético e sonoro. O que era patético na montagem original pode
tornar-se cômico na nova. Se, da
primeira montagem, se guardarem dois planos consecutivos respeitando o corte, em geral não será com a finalidade de preservar o
original, mas porque a nova montagem terá como que contaminado a montagem anterior, o filme
em elaboração contamina o filme
já feito.
A esse tipo de trabalho, poderia
se aplicar a qualificação de "releitura", termo em moda? Sim e não.
Não, porque ele trata as imagens
originais como matéria-prima
para seus fins próprios. Sim, se
considerarmos que a ressignificação explora o potencial significativo da imagem original, o que
pode repercutir no filme original.
Podemos tomar como exemplo
o plano do cavalo caído que Masagão extraiu do filme de Walther
Ruttmann "Berlim, Sinfonia de
Uma Grande Cidade". No filme
de Ruttmann, o cavalo caído é em
seguida erguido; e deve-se notar
que, embora as ruas estejam dominadas por carros, a tração a cavalo continua presente em Berlim. A queda do cavalo tem em
Ruttmann um pouco o caráter de
uma anedota, do tipo "coisas que
acontecem numa cidade". Masagão guarda apenas o cavalo caído
e lhe acrescenta o letreiro "a cidade já não cheirava a cavalo". O
sentido que se imprime assim ao
plano (desaparecimento da tração a cavalo) reverbera um pouco
no filme de Ruttmann, porque,
apesar da presença da tração a cavalo, sugere-se que ela está em via
de desaparecimento, inclusive em
Berlim, ou seja, o plano anedótico
de Ruttmann pode se carregar de
uma significação mais genérica.
Esse tipo de montagem tem
uma vertente destrutiva e outra
construtiva. A destruição consiste
em extirpar uma imagem da
montagem original e despojá-la
da significação que lhe atribuía o
contexto imagético, sonoro e verbal em que estava inserida. É
construtiva a sua colaboração à
composição do novo filme. Em
realidade a destruição nunca é total.
Tomemos como exemplo o plano de uma mulher passando aspirador numa casa classe média.
Pertencente provavelmente a um
filme de ficção dos primeiros anos
do século, ela perdeu os nexos significativos que lhe dava a montagem original e adquire outra pela
sua inserção numa sequência do
filme de Masagão. Mas essa perda
não é total, há um resíduo: preserva uma certa narratividade (mulher passando aspirador...) e a sua
característica de imagem do início do século.
Como vai funcionar o resíduo e
como vai se dar o trabalho de ressignificação? A sequência em que
ela é inserida trata da situação
pós-Segunda Guerra das mulheres que trabalharam na indústria
durante a guerra. Há um tempo
relativamente preciso em atuação
neste momento do filme: segunda
metade dos anos 40. Há uma nítida relação causal entre essa guerra
e a situação das mulheres. Aí um
dos elementos residuais entra em
operação: a surpresa provocada
pelo aparecimento de uma imagem dos primeiros anos do século
numa sequência que aborda um
tema da segunda metade dos anos
40.
O efeito de surpresa é atuante:
abole o efeito narrativo e a preocupação cronológica, projetando
a significação em outro nível: o
conceitual. Não se trata de descrever a situação das mulheres após
os anos passados nas fábricas,
mas de impostar a questão num
nível de tipo sociológico: a volta às
fábricas dos homens desmobilizados devolve as mulheres às tarefas domésticas e, no filme de Masagão, provoca uma depressão
consequente.
As diversas imagens que compõem a sequência, ao conectar
entre si épocas diversas, mulheres
diversas, atividades domésticas
diversas, diluem a particularidade
de cada uma delas para evoluir
para o genérico. Este se constrói
quando o espectador percebe o
denominador ou os denominadores comuns das várias imagens,
expulsando as diferenças. Não é a
soma de uma mulher dos anos 10
e de outra mulher dos anos 30 e
mais outra dos anos 50, mas: a
mulher pós-guerra -significação
conferida pela nova montagem.
As diferenças são expulsas, o
que não implica que fiquem totalmente inoperantes: a sua expulsão reforça o denominador comum. Para o espectador, é um
processo que se dá no tempo, ele
não começa na primeira imagem,
mas na segunda ou na terceira;
tendo sido rompidas a linha narrativa e a cronológica, o espectador se reequilibra em outro
nível, o do genérico, o do
conceito.
De fato, esse
procedimento
permite à linguagem cinematográfica
evoluir em direção ao conceito e à impostação ensaística, o que é um
desafio para uma linguagem que
foi sobretudo orientada neste século para contar histórias e que
em geral só escapa a isso graças à
locução sobreposta às imagens,
enquanto o filme de Masagão
opera mecanismos que permitem, pela seleção e ordenação das
imagens, uma impostação ensaística.
O que não quer dizer que Masagão descarte totalmente a palavra,
no caso escrita. É uma frase que
fecha a sequência das mulheres:
"e a depressão". Esse letreiro vem
sobreposto a uma imagem que representa uma mulher sentada
num sofá de frente para a câmera.
Diríamos que ela está triste, ou
desanimada, ou pensativa, ou
cansada, ou deprimida, por que
não? Talvez o mais lógico seja dizer "cansada", já que a mulher
sentada foi precedida por vários
planos de tarefas domésticas. Essa
significação é aceitável no contexto do filme, tanto mais que a lanterninha do quadro "New York
Movie", de Edward Hopper, visto
em sequência anterior, já tinha sido qualificada de "hoje cansada".
Mas não é a essa significação, ou
apenas a ela, que dessa vez Masagão quer levar o espectador, quer
ir mais longe. No entanto, a conceituação não consegue se estabelecer exclusivamente por meio da
composição imagética e da montagem, recorrer ao verbal foi necessário.
Nesse momento, acredito que o
filme se situe em cheio num dos
principais problemas encontrados pelas imagens do nosso século -ou pelas imagens em geral?
Vivemos, costuma-se dizer, numa civilização na qual as imagens
proliferam como cogumelos; no
entanto, nesta civilização, raramente as imagens vêm sozinhas.
É como se tivéssemos medo do
seu potencial significativo, de sua
plurissemia que dispara em todas
as direções, ou ao contrário medo
de que não signifiquem suficientemente.
Esses dois motivos contraditórios, operando alternada ou simultaneamente (sic), nos levam a
usar parapeitos protetores para limitar a plurissemia e orientar a
leitura. E isso vale para os outdoors publicitários, as fotografias
jornalísticas e suas legendas, como para o monólogo de Glauber
Rocha em "A Idade da Terra".
Aqui, "depressão" orienta a leitura num determinado sentido, bloqueando outras direções: não interpretar a mulher sentada como
apenas "cansada", nem como
uma mulher que não tem o que
fazer na vida.
Esse me parece ser um dos principais mecanismos em atuação no
filme de Masagão. O filme trata do
século 20 (principalmente da primeira metade, com prolongamentos), mas o faz diferentemente de outro filme igualmente composto com material de arquivo,
como "Ce Siècle A Cinquante
Ans". Aí existe a preocupação de
usar as imagens como documentos para constituir uma narrativa
que relata cronologicamente os
fatos sociopolíticos considerados
mais relevantes da primeira metade do século.
O filme de Masagão não despreza os fatos, mas estes não constituem seu objetivo maior. Ele usa
alguns fatos (guerras, Muro de
Berlim) como referências, mas o
objetivo é antes algo como o imaginário, a mentalidade ou as mentalidades do século. É para a realização dessa proposta que se torna
particularmente eficiente a quebra da cronologia das imagens,
bem como a perda ou a enorme
diminuição de seu teor narrativo.
O mecanismo que opera na sequência das mulheres pós-guerra
e em várias outras é um dos mais
importantes do filme, ou aquele
de que eu mais gosto, mas não é o
único. Não penso que se possa falar em ressignificação a respeito
do uso feito do material que apresenta cenas urbanas por meio de
um prisma, em voga nos anos 20,
que multiplica a imagem dentro
do quadro, enfatizando com esse
recurso a agitação urbana.
Aqui, o imaginário urbano mobilizado por Masagão é o mesmo
proposto pelo material original.
Portanto seria nesse caso mais
adequado falar em citação, já que
as imagens conservam a significação do contexto original. É interessante tentar estabelecer uma
relação entre essas citações e a ressignificação da sequência comentada acima. Essas imagens prismáticas me parecem resistir a um
processo de ressignificação por
ter uma elaboração visual forte
(no caso, a composição plástica
possibilitada pelo prisma e a duração do plano). Essa elaboração
não se deixa facilmente diluir. A
operação praticada na sequência
das mulheres é bem resolvida por
trabalhar com imagens menos
destacadas, facilitando a diluição
e a ressignificação. É necessário
que o material tenha, digamos,
uma certa neutralidade para que a
operação se realize plenamente. É
só imaginar o que ocorreria com a
sequência das mulheres se uma
delas, espanando algum aparador, fosse Marilyn Monroe, ou
compará-la a "Home Stories", de
Matthias Muller, que contém apenas material de arquivo, em que a
personagem feminina se constrói
com planos de Kim Novak, Doris
Day, Grace Kelly e outras vedetes.
Essa forma de montagem é usada em várias sequências do filme,
por exemplo, a do Muro de Berlim: a construção do Muro inicia-se no campo, prossegue em ambiente urbano, e a fuga do soldado
se dá por cima de uma grade que
nada tem a ver com o que vimos
sendo construído. Trata-se indiscutivelmente do Muro de Berlim,
mas como que desrealizado, a
montagem nos remete a um fato
(muro) e ao mesmo tempo distancia-se dele para possibilitar
que nos encaminhemos para uma
reflexão mais ampla, de teor político. Os regimes comunistas, a
opressão. Mas a nossa reflexão é
dirigida: não caminharemos tanto na direção de uma reflexão política geral, pois o primeiro plano
do soldado que se prepara para a
fuga, bem como os antecedentes
do filme dedicado às "pequenas
biografias", nos encaminha para a
presença do muro na vida cotidiana de pessoas "insignificantes",
um dos eixos temáticos do filme.
O filme de Masagão opera com
outras formas de montagem que
merecem consideração. Uma delas consiste na inserção de uma
segunda imagem dentro de uma
imagem principal. Essas incrustações quebram a montagem visual
consecutiva que foi até agora a
forma da montagem cinematográfica. Mas deixo de lado esse assunto, de que não se pode falar
sem se deter longamente em Peter
Greenaway. É bom, no entanto,
anotar que Masagão trabalha no
mínimo duas possibilidades da
incrustação.
Numa delas, a imagem incrustada passa a ter um papel mais
importante do que aquela em que
está incrustada, a qual se torna
um fundo. Assim, na longa sequência das mulheres, aparece
um plano amarelo apresentando
uma mulher que brinca com outras, que se encontram dentro de
copos cheios de água, estilo Bela
Época. Nessa imagem, virão se
instalar outras que ocuparão a
quase totalidade da tela, deixando
espaço apenas para as bordas do
plano amarelo, as quais passam a
funcionar como moldura. É o que
ocorre com o trecho comentado
acima, que acaba com a "depressão". Nesse caso, a imagem incrustada tem o papel predominante, enquanto a outra funciona
como uma espécie de "Leitmotiv"
que contribui para assegurar a
unidade e o fluxo de uma sequência longa, que integra materiais
díspares e aborda diversas vertentes do tema principal.
Encontramos um outro uso da
incrustação no plano de Artur
Bispo do Rosário, "que fez uma
roupa especial para se encontrar
com Deus", nos diz o letreiro. Incrustada na capa de Bispo, instala-se uma imagem mostrando um
homem que tenta voar com asas
artificiais. A idéia de vôo, pela elevação física no céu, nos remete
ironicamente ao aproximar-se de
Deus e a "perto de Deus", que é
um dos temas da sequência das
religiões, conforme indicação dos
letreiros.
Tal incrustação, de curta duração, complementa a imagem-base sem lhe contestar a primazia.
Além disso, ela tem outra função,
pois expande, a distância, a significação da sequência, vista anteriormente, do alfaiate que se jogou da Torre Eiffel para voar. Na
sequência do alfaiate já havia uma
incrustação, a de um pássaro
voando, o que apontava para o aspecto físico do vôo, sem introduzir uma transcendência, nem que
seja irônica. Essa reverberação
significativa a distância precisa da
memória do espectador para funcionar. Se, na altura do bispo, tiver sido esquecido o alfaiate, é claro que o efeito de enriquecimento
não se produzirá.
Em vários momentos, o filme de
Masagão solicita a memória ativa
do espectador. Gostaria de citar
outro exemplo: já se estabeleceu
uma relação entre a mulher deprimida e a lanterninha cansada do
quadro de Hopper. Mais adiante,
aparecerá outro quadro famoso
do mesmo pintor, "Hotel Room",
com uma mulher sentada numa
cama. Os letreiros que acompanham essa imagem dizem todos
respeito ao pintor, nenhum à personagem do quadro. Nesse vazio,
a sedimentação do "cansaço" e da
"depressão", se a memória do espectador funcionar bem, lhe permitirá trabalhar essa nova personagem feminina.
Nesse caso, assim como na passagem para o conceptual, o filme
solicita um espectador ativo que,
de alguma forma, prolonga a
montagem nele próprio. Podemos ir mais longe e tornar o espectador um montador. Será uma
montagem ativada pelo sistema
do filme, suas associações de materiais díspares, sua circulação
por imagens e significações, a
grande liberdade que lhe permite
essa montagem de tipo ensaística.
Dou um exemplo do que seria
uma montagem off (caso essa expressão faça algum sentido), isto
é, uma montagem com material
que não está no filme. A insistência do filme sobre a primeira metade do século nos permite mobilizar a nossa memória e trazer à
tona o filme de Chaplin "Em Busca do Ouro", quando na sequência de Serra Pelada aparece o letreiro "atrás do ouro".
Tal operação, aparentemente
delirante, parece sugerir que o espectador pode comportar-se de
qualquer maneira diante do filme
de Masagão, mas não é o caso.
Trata-se apenas de explorar ativamente o sistema em operação no
filme e de prolongar as pistas que
ele nos abre. No caso de mobilizarmos o filme de Chaplin não faremos nada mais do que nos valer
de uma deixa que o próprio filme
nos oferece ao associar, ao plano
de um homem que vende maçãs
na rua, o letreiro "o engenheiro
que virou maçã", que remete ao
título de um filme de João Batista
de Andrade, sem a presença de
nenhuma imagem proveniente
desse filme.
O teor deste artigo, que tenta
analisar algumas linhas de trabalho de Masagão, permite uma
reinterpretação do título. Nós
(mortos, ossos) que aqui (cemitério) estamos por vós (vivos) esperamos -nós (imagens) que aqui
(bancos de imagens) estamos por
vós (novos cineastas, novos filmes) esperamos.
Jean-Claude Bernardet é crítico, roteirista
e escritor, autor de "Cinema Brasileiro - Propostas para uma História", "Aquele Rapaz"
(Brasiliense) e "A Doença" (Companhia das
Letras).
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