São Paulo, Domingo, 15 de Agosto de 1999
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LIVROS
Romance de Vargas Llosa sobre Canudos antecipa pendor político do autor
Despertar de um candidato

SAMUEL TITAN JR.
especial para a Folha

O relançamento de "A Guerra do Fim do Mundo", 18 anos depois de sua primeira edição, oferece ao público brasileiro a ocasião de reavaliar esta que deve ser, para bem ou para mal, a versão romanesca definitiva do episódio de Canudos. O centenário da campanha deixou bom saldo de obras de crítica e história, mas não trouxe nenhum novo esforço literário digno de nota ou capaz de maior apelo. Seja porque o país não lê, seja porque a memória coletiva corre hoje por outros veios, o fato é que Euclides e o Conselheiro parecem condenados a dividir o espaço exíguo que lhes reservam os currículos escolares e os debates acadêmicos. Por onde o romance de Vargas Llosa fugiria a esse destino?
Quando chegou às livrarias em 1981, o livro deve ter causado surpresa aos leitores fiéis do autor. Não só pelo topete inusitado -um peruano escrevendo sobre os nossos jagunços!-, mas também pela virada que parecia marcar. O romance anterior, "Tia Julia e o Escrevinhador" (1977), não parecia prenunciar nada do gênero. Nele assistíamos aos primeiros passos do artista quando jovem, às voltas com a mais literária das ambições (escrever contos cerebrinos à maneira de Borges) numa terra semi-analfabeta, à sombra incipiente dos meios de comunicação de massa, ainda por cima com a tia-e-esposa para sustentar.
Esse leque de impossibilidades encarnava-se na figura heteróclita do "escribidor" Pedro Camacho: ignorante a não poder mais, vivia segundo um ideal quase cavaleiresco de vocação literária, exercendo-a num meio que justamente prescinde da palavra impressa e, não obstante, trazendo para a ficção todo o país real, mestiço, violento, contraditório -que o jovem Varguitas tentava captar em seus malogrados esboços. A graça maior do livro, uma jóia de leveza e humor, vinha então do imenso e discreto "savoir-faire" com que o autor maduro lograva fixar os dilemas de sua juventude que agora, por obra da escrita e ao menos no espaço da ficção, viam-se destituídos de seu poder adverso.
Dessa perspectiva, "A Guerra do Fim do Mundo" é a sequência natural de "Tia Julia": fixada e esconjurada a constelação de problemas que algum dia o afligiram, Vargas Llosa enfrentava agora a tarefa de se igualar a Pedro Camacho naquele que parecia seu terreno exclusivo, a literatura para massas de enorme ressonância pública. Canudos forneceu o tema que lhe fazia falta; para ordenar a "árvore de histórias" relativas às peregrinações do Conselheiro e às quatro campanhas militares contra seu arraial, ainda por cima sem descambar no pastiche de "Os Sertões", Llosa contava com o pleno domínio do ofício, patente em livros como "A Cidade e os Cachorros" (1963) e "Conversa na Catedral" (1969).
É justa e estritamente por essa destreza que o livro impressiona e pode reclamar para si a distinção de romance definitivo sobre o tema, até porque hoje seria difícil encontrar romancista brasileiro com uma mão tão segura. Escrevendo para um público internacional, não podia nem sequer dar por entendidos termos como "sertão", "caatinga" ou "jagunço"; por outro lado, tinha que inserir um sem-fim de dados, datas e generais tão exóticos quanto os mandacarus para a maioria de seus leitores.
Llosa vale-se de todo tipo de expediente para inserir esse lastro expositivo na própria trama narrativa: um personagem estrangeiro (o anarquista Gall) encarrega-se de diminuir a estranheza do lugar por meio de cartas, conversas e monólogos interiores; nos diálogos entre o jornalista míope, o barão e os chefes militares insinuam-se todos os lugares-comuns e todas as explicações históricas sobre o conflito; e o uso do "flashback" e dos múltiplos pontos de vista permite avançar a ação segundo um molde romanesco, isto é, segundo o fio das peripécias dos protagonistas.
Este último traço, em especial, afasta do romance o fantasma de Euclides, mais inclinado aos panoramas e aos movimentos de grandes massas. Como se sabe, o método é de inspiração faulkneriana e está presente em toda a obra de Llosa, que chegou a falar da afinidade entre o romance de Faulkner e a própria realidade latino-americana ("Faulkner en Laberinto", 1981). Nas mãos do autor norte-americano, como ainda em "A Casa Verde" (1966), de seu discípulo peruano, servira para recriar na ficção algo da opacidade, da violência e da fragmentação do mundo real.
Mas, a partir de "Pantaleão e as Visitadoras" (1973), Llosa começa a impor novo sentido ao procedimento, que passa a servir antes à lepidez narrativa, mais à economia de traços que à investigação paciente de personagens prismáticas. Esse processo chega ao ápice em "A Guerra do Fim do Mundo", em que a ambição épica faz sentir seu peso: as várias sequências narrativas estão lá só e tão-somente na medida em que se quadram ao grande quebra-cabeça, na medida em que contribuem para o grande efeito geral. A semelhança com Leon Uris e com as novelas de TV é mais que acidental.
Quem paga o preço mais alto são os personagens, que perdem muitíssimo da densidade das grandes figuras de romance. Em Faulkner e no primeiro Llosa, o personagem só se revela por aproximações sucessivas, às vezes retrospectivas, nem sempre imediatamente concordantes; aqui, ao contrário, o ritmo narrativo acaba por resumi-las a vinhetas de si mesmas, a dois ou três traços salientes que permitem o rápido reconhecimento e o avanço expedito da trama: os olhos profundos do Conselheiro, a cabeleira de Gall, a cicatriz de Pajeú, a voz salmodiante do Beatinho etc.
A massa dos jagunços mal tem tempo de entrar em cena e dizer "Louvado seja o Bom Jesus Conselheiro!" antes de tombar de volta no anonimato. Feitas as contas, é como se um dos episódios rocambolescos de "Tia Júlia" tivesse escapado ao controle de seu demiurgo boliviano ("elefantíase? acromegalia?", perguntaria Pedro Camacho).
Isso tudo impede que a tese central do romance (e pobre do romance que precise de uma tese central!) possa se entranhar no enredo: o gigantesco "mal-entendido" que Llosa vê no episódio encontra formulação explícita numa conversa entre o jornalista desencantado e seu novo empregador, mas não na fala, nos atos, nas esperanças e nas contradições dos personagens, a cada página mais e mais reduzidos a marionetes solenes. Impõe-se a comparação com "Grande Sertão: Veredas", livro admirado pelo autor peruano e no qual tudo, mesmo a invenção linguística mais de "vanguarda", é filtrado pela experiência concreta dos personagens.
Falando ainda sobre Faulkner ("Sanctuary - Santuário do Mal", 1990), Llosa afirmava que em seus romances a própria forma tornava-se tão visível quanto os personagens, sem prejuízo do resultado final; com perdão do preciosismo, digamos que em "A Guerra do Fim do Mundo", a técnica do autor torna-se protagonista, e aliás protagonista maior. Pois o maior contraste do romance não se dá entre sertanejos e citadinos, jagunços e republicanos, mas sim entre a limitação geral das perspectivas, responsável pelo banho de sangue, e a superior proficiência do narrador, que, de tanto cortar, manejar e encaixar, acaba roubando aos eventos sua consistência trágica e inelutável.
Essa disposição resolutiva, de quem tudo ordena e prevê, tão destoante do amargor dos romances dos anos 60 ou do equilíbrio irônico de "Tia Júlia", é a verdadeira novidade do livro. Com a vantagem retrospectiva, o leitor atual desta "Guerra do Fim do Mundo" pode testemunhar o nascimento, ainda em âmbito ficcional, do futuro candidato à Presidência do Peru.



A OBRA
A Guerra no Fim do Mundo - Mario Vargas Llosa. Trad. Remy Gorga Filho. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 72, CEP 04532-002, SP, 0/xx/11/866-0801). 706 págs. R$39,00.



Samuel Titan Jr. é doutorando em teoria literária na USP.


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