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LIVROS
Romance de Vargas Llosa sobre Canudos antecipa pendor político do autor
Despertar de um candidato
SAMUEL TITAN JR.
especial para a Folha
O relançamento de "A Guerra
do Fim do Mundo", 18 anos depois de sua primeira edição, oferece ao público brasileiro a ocasião de reavaliar esta que deve ser,
para bem ou para mal, a versão
romanesca definitiva do episódio
de Canudos. O centenário da
campanha deixou bom saldo de
obras de crítica e história, mas
não trouxe nenhum novo esforço
literário digno de nota ou capaz
de maior apelo. Seja porque o país
não lê, seja porque a memória coletiva corre hoje por outros veios,
o fato é que Euclides e o Conselheiro parecem condenados a dividir o espaço exíguo que lhes reservam os currículos escolares e
os debates acadêmicos. Por onde
o romance de Vargas Llosa fugiria
a esse destino?
Quando chegou às livrarias em
1981, o livro deve ter causado surpresa aos leitores fiéis do autor.
Não só pelo topete inusitado
-um peruano escrevendo sobre
os nossos jagunços!-, mas também pela virada que parecia marcar. O romance anterior, "Tia Julia e o Escrevinhador" (1977), não
parecia prenunciar nada do gênero. Nele assistíamos aos primeiros
passos do artista quando jovem,
às voltas com a mais literária das
ambições (escrever contos cerebrinos à maneira de Borges) numa terra semi-analfabeta, à sombra incipiente dos meios de comunicação de massa, ainda por
cima com a tia-e-esposa para sustentar.
Esse leque de impossibilidades
encarnava-se na figura heteróclita
do "escribidor" Pedro Camacho:
ignorante a não poder mais, vivia
segundo um ideal quase cavaleiresco de vocação literária, exercendo-a num meio que justamente prescinde da palavra impressa
e, não obstante, trazendo para a
ficção todo o país real, mestiço,
violento, contraditório -que o
jovem Varguitas tentava captar
em seus malogrados esboços. A
graça maior do livro, uma jóia de
leveza e humor, vinha então do
imenso e discreto "savoir-faire"
com que o autor maduro lograva
fixar os dilemas de sua juventude
que agora, por obra da escrita e ao
menos no espaço da ficção, viam-se destituídos de seu poder adverso.
Dessa perspectiva, "A Guerra
do Fim do Mundo" é a sequência
natural de "Tia Julia": fixada e esconjurada a constelação de problemas que algum dia o afligiram,
Vargas Llosa enfrentava agora a
tarefa de se igualar a Pedro Camacho naquele que parecia seu terreno exclusivo, a literatura para
massas de enorme ressonância
pública. Canudos forneceu o tema que lhe fazia falta; para ordenar a "árvore de histórias" relativas às peregrinações do Conselheiro e às quatro campanhas militares contra seu arraial, ainda
por cima sem descambar no pastiche de "Os Sertões", Llosa contava com o pleno domínio do ofício,
patente em livros como "A Cidade e os Cachorros" (1963) e "Conversa na Catedral" (1969).
É justa e estritamente por essa
destreza que o livro impressiona e
pode reclamar para si a distinção
de romance definitivo sobre o tema, até porque hoje seria difícil
encontrar romancista brasileiro
com uma mão tão segura. Escrevendo para um público internacional, não podia nem sequer dar
por entendidos termos como
"sertão", "caatinga" ou "jagunço"; por outro lado, tinha que inserir um sem-fim de dados, datas
e generais tão exóticos quanto os
mandacarus para a maioria de
seus leitores.
Llosa vale-se de todo tipo de expediente para inserir esse lastro
expositivo na própria trama narrativa: um personagem estrangeiro (o anarquista Gall) encarrega-se de diminuir a estranheza do lugar por meio de cartas, conversas
e monólogos interiores; nos diálogos entre o jornalista míope, o barão e os chefes militares insinuam-se todos os lugares-comuns e todas as explicações históricas sobre o conflito; e o uso do
"flashback" e dos múltiplos pontos de vista permite avançar a
ação segundo um molde romanesco, isto é, segundo o fio das peripécias dos protagonistas.
Este último traço, em especial,
afasta do romance o fantasma de
Euclides, mais inclinado aos panoramas e aos movimentos de
grandes massas. Como se sabe, o
método é de inspiração faulkneriana e está presente em toda a
obra de Llosa, que chegou a falar
da afinidade entre o romance de
Faulkner e a própria realidade latino-americana ("Faulkner en Laberinto", 1981). Nas mãos do autor norte-americano, como ainda
em "A Casa Verde" (1966), de seu
discípulo peruano, servira para
recriar na ficção algo da opacidade, da violência e da fragmentação do mundo real.
Mas, a partir de "Pantaleão e as
Visitadoras" (1973), Llosa começa
a impor novo sentido ao procedimento, que passa a servir antes à
lepidez narrativa, mais à economia de traços que à investigação
paciente de personagens prismáticas. Esse processo chega ao ápice
em "A Guerra do Fim do Mundo", em que a ambição épica faz
sentir seu peso: as várias sequências narrativas estão lá só e tão-somente na medida em que se quadram ao grande quebra-cabeça,
na medida em que contribuem
para o grande efeito geral. A semelhança com Leon Uris e com as
novelas de TV é mais que acidental.
Quem paga o preço mais alto
são os personagens, que perdem
muitíssimo da densidade das
grandes figuras de romance. Em
Faulkner e no primeiro Llosa, o
personagem só se revela por
aproximações sucessivas, às vezes
retrospectivas, nem sempre imediatamente concordantes; aqui,
ao contrário, o ritmo narrativo
acaba por resumi-las a vinhetas
de si mesmas, a dois ou três traços
salientes que permitem o rápido
reconhecimento e o avanço expedito da trama: os olhos profundos
do Conselheiro, a cabeleira de
Gall, a cicatriz de Pajeú, a voz salmodiante do Beatinho etc.
A massa dos jagunços mal tem
tempo de entrar em cena e dizer
"Louvado seja o Bom Jesus Conselheiro!" antes de tombar de volta no anonimato. Feitas as contas,
é como se um dos episódios rocambolescos de "Tia Júlia" tivesse
escapado ao controle de seu demiurgo boliviano ("elefantíase?
acromegalia?", perguntaria Pedro
Camacho).
Isso tudo impede que a tese central do romance (e pobre do romance que precise de uma tese
central!) possa se entranhar no
enredo: o gigantesco "mal-entendido" que Llosa vê no episódio
encontra formulação explícita
numa conversa entre o jornalista
desencantado e seu novo empregador, mas não na fala, nos atos,
nas esperanças e nas contradições
dos personagens, a cada página
mais e mais reduzidos a marionetes solenes. Impõe-se a comparação com "Grande Sertão: Veredas", livro admirado pelo autor
peruano e no qual tudo, mesmo a
invenção linguística mais de
"vanguarda", é filtrado pela experiência concreta dos personagens.
Falando ainda sobre Faulkner
("Sanctuary - Santuário do Mal",
1990), Llosa afirmava que em seus
romances a própria forma tornava-se tão visível quanto os personagens, sem prejuízo do resultado
final; com perdão do preciosismo,
digamos que em "A Guerra do
Fim do Mundo", a técnica do autor torna-se protagonista, e aliás
protagonista maior. Pois o maior
contraste do romance não se dá
entre sertanejos e citadinos, jagunços e republicanos, mas sim
entre a limitação geral das perspectivas, responsável pelo banho
de sangue, e a superior proficiência do narrador, que, de tanto cortar, manejar e encaixar, acaba
roubando aos eventos sua consistência trágica e inelutável.
Essa disposição resolutiva, de
quem tudo ordena e prevê, tão
destoante do amargor dos romances dos anos 60 ou do equilíbrio irônico de "Tia Júlia", é a verdadeira novidade do livro. Com a
vantagem retrospectiva, o leitor
atual desta "Guerra do Fim do
Mundo" pode testemunhar o nascimento, ainda em âmbito ficcional, do futuro candidato à Presidência do Peru.
A OBRA
A Guerra no Fim do Mundo
- Mario Vargas Llosa. Trad. Remy
Gorga Filho. Companhia das Letras
(r. Bandeira Paulista, 702, cj. 72,
CEP 04532-002, SP, 0/xx/11/866-0801). 706 págs. R$39,00.
Samuel Titan Jr. é doutorando em teoria literária na USP.
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